25 Outubro 2024
Francisco lançou uma nova carta encíclica chamada Dilexit nos (Amou-nos) sobre o Sagrado Coração de Jesus. A quarta encíclica de seu pontificado, ela segue Lumen fidei, coescrita com Bento XVI, Laudato si' e Fratelli tutti. Aqui, quatro de nossos editores compartilham suas primeiras impressões da mais recente encíclica — nossa opinião do coração, se preferir. Você pode ler Dilexit nos completa abaixo.
O comentário é de Ricardo da Silva, Sam Sawyer, Colleen Dulle, Zac Davis, membros da equipe de America, publicado por America, 24-10-2024.
Parece quase óbvio demais, talvez até simples, mas o Papa Francisco acha que precisamos ouvir: estamos em um período da civilização humana em que estamos, na melhor das hipóteses, sob séria ameaça de perder nosso coração, ou já o perdemos e precisamos desesperadamente recuperá-lo.
O coração revela “quem realmente somos” (n. 6), escreve o Papa Francisco, pois é “a morada do amor em todas as suas dimensões espirituais, psíquicas e até físicas” (n. 21), “um núcleo que se esconde por trás de todas as aparências exteriores, mesmo por trás dos pensamentos superficiais que podem nos desviar” (n. 4).
Nossas perguntas existenciais mais profundas — “Quem sou eu, realmente? O que estou procurando? Que direção quero dar à minha vida, minhas decisões e minhas ações? Por que e com que propósito estou neste mundo? … Quem eu quero ser para os outros? Quem sou eu para Deus?” — podem ser respondidas por uma única e mais fundamental pergunta: “Eu tenho um coração?” (n. 23). Essas perguntas que nos ocupam profundamente e nos permitem dar sentido à nossa existência são ponderadas e mantidas no coração, assim como Maria que, nos diz São Lucas, prezava e ponderava sobre todas as coisas em seu coração. (n. 19; consulte Lc 2,19 e 51).
O coração não é apenas a sede da “profunda emoção” (n. 16), onde descobrimos quem somos, mas é também o lugar onde nasce o amor: o amor incondicional de Deus por nós, e do qual flui nossa capacidade de amar os outros. Em nosso coração, descobrimos o “fogo ardente” dessa capacidade, permitindo-nos “nos tornar, de forma completa e luminosa, as pessoas que devemos ser, pois todo ser humano é criado acima de tudo para o amor. Na fibra mais profunda do nosso ser, fomos feitos para amar e ser amados” (n. 21).
E é, em última análise, nesta descoberta do amor de Deus por nós, na profundidade e unidade do nosso ser, que aprendemos a amar os outros, que é a essência do que significa ser seguidores de Cristo. “O conhecimento de que Cristo morreu por nós não permanece conhecimento; mas necessariamente se torna afeição, amor” (n.º 27). E, o papa está convencido, este é o coração que precisamos recuperar se quisermos curar o nosso próprio coração. “O amor de Cristo pode dar um coração ao nosso mundo e reavivar o amor onde quer que pensemos que a capacidade de amar foi definitivamente perdida” (n. 218).
— Ricardo da Silva, SJ
Na seção de abertura da encíclica, Francisco contrasta a complexa riqueza do coração com “o domínio mais facilmente controlável da inteligência e da vontade”. Embora muitos possam se retirar para espaços aparentemente mais seguros, Francisco diz que isso resulta “em um atrofiamento da ideia de um centro pessoal, no qual o amor, no fim, é a única realidade que pode unificar todas as outras” (n. 10).
Francisco continua sua crítica a uma mentalidade excessivamente racionalista ou tecnocrática, que tem sido uma marca registrada de seu papado. Ele também alerta que nossos pensamentos e vontades, distintos de nossos corações, são “facilmente previsíveis e, portanto, capazes de serem manipulados”, inclusive por algoritmos digitais que nos alimentam com informações personalizadas (n. 14).
Para corrigir uma dependência excessiva da clareza conceitual que pode parecer transmitir a verdade sem resultar em conversão profunda, ou mesmo se transformar em um “moralismo autossuficiente” (n. 27), Francisco faz referência à atenção de Santo Inácio de Loyola à “afeição”, dizendo que a reforma da vida “não se trata de conceitos intelectuais que precisam ser colocados em prática em nossa vida diária, como se a afetividade e a prática fossem meramente os efeitos de — e dependentes de — dados do conhecimento” (n. 24).
O capítulo 2 da encíclica é lido quase como um minirretiro, no estilo inaciano, visando à conversão e ordenação da afetividade. (Isso também ecoa a abordagem de Francisco, em Fratelli Tutti, de usar uma reflexão estendida sobre a parábola do Bom Samaritano como um princípio organizador para uma encíclica.) Citando 38 passagens bíblicas nos 16 parágrafos do capítulo, Francisco nos convida a experimentar o desejo e o cuidado do coração de Jesus, perguntando em referência ao encontro de Jesus com o jovem rico em Mc 10,21, “Você consegue imaginar aquele momento, aquele encontro entre seus olhos e os de Jesus?” (n. 39).
— Sam Sawyer, SJ
Desde o início de seu papado, Francisco tem alertado fortemente contra a tendência da Igreja de voltar seu olhar para si mesma ou de se absorver no que ele chama de “mundanismo espiritual”. Em “Dilexit nos”, ele continua esse tema, dizendo que “o coração de Cristo também nos liberta de outro tipo de dualismo encontrado em comunidades e pastores excessivamente envolvidos em atividades externas, reformas estruturais que pouco têm a ver com o Evangelho, planos de reorganização obsessivos, projetos mundanos, modos seculares de pensar e programas obrigatórios” (n. 88).
Vindo em uma encíclica emitida durante a segunda sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, na qual muitos tópicos associados à mudança estrutural e organizacional foram transferidos para grupos de estudo, essa crítica é impressionante. A esperança de Francisco é que, ao refletir sobre o coração de Cristo, que ele chama de “a síntese encarnada do Evangelho”, a Igreja seja movida não apenas pela análise crítica de questões teológicas e sociais, mas muito mais por um poderoso amor afetivo por Cristo (n. 90).
Francisco parece estar implorando àqueles que se deixam levar por seus próprios planos e visões para a Igreja, seja por meio de rigorosa adesão às estruturas atuais ou por uma reforma radical delas, para que se reorientem para a necessidade de um amor reavivado. Na conclusão da encíclica, ele diz que, em vez de “estruturas e preocupações ultrapassadas, apego excessivo às nossas próprias ideias e opiniões e fanatismo em qualquer número de formas”, a Igreja precisa “do amor gratuito de Deus que liberta, anima, traz alegria ao coração e constrói comunidades” (n. 219).
— Sam Sawyer, SJ
Ao longo do documento, o Papa Francisco expressa sua consciência de que o Sagrado Coração e imagens devocionais relacionadas podem ser facilmente descartados como kitsch, mas ele adverte contra descartar a devoção como um todo. “Certas dessas representações podem de fato nos parecer de mau gosto e não particularmente propícias à afeição ou à oração”, escreve Francisco, “mas isso é de pouca importância, pois são apenas convites à oração” (n. 57).
Ele leva isso um passo adiante, criticando — como ele frequentemente faz — pessoas que descartam tais expressões de piedade popular como sendo excessivamente emocionais ou carentes de profundidade. Ele escreve: “Pio XII descreveu como 'falso misticismo' a atitude elitista daqueles grupos que viam Deus como tão sublime, separado e distante que consideravam expressões afetivas de piedade popular como perigosas e necessitadas de supervisão eclesiástica” (n. 86).
Falando sobre a piedosa tradição dos católicos que buscam consolar Jesus em seu sofrimento, o papa pede pessoalmente “que ninguém menospreze a fervorosa devoção do santo povo fiel de Deus”, acrescentando: “Também encorajo todos a considerar se pode haver maior razoabilidade, verdade e sabedoria em certas demonstrações de amor que buscam consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e nominais que às vezes são praticados por aqueles que afirmam possuir uma fé mais reflexiva, sofisticada e madura” (n. 160).
— Colleen Dulle
Uma parte da devoção ao Sagrado Coração envolve fazer “reparações” ao coração de Jesus por nossos próprios pecados e pelos pecados do mundo, que trouxeram e continuam a trazer-lhe tristeza. No entanto, um foco exagerado na reparação pode levantar preocupações sobre duvidar da suficiência da redenção de Cristo, mas Francisco acredita que o impulso devocional para consolar o coração de Jesus é puro. “Pode parecer a alguns que este aspecto da devoção ao Sagrado Coração carece de uma base teológica firme, mas o coração tem suas razões. Aqui o sensus fidelium percebe algo misterioso, além de nossa lógica humana, e percebe que a paixão de Cristo não é meramente um evento do passado, mas um evento do qual podemos compartilhar pela fé” (n. 154).
Dito isso, Francisco encoraja um enquadramento adequado das reparações. Ele convoca Santa Teresa de Lisieux para fornecer um contexto histórico e espiritual. “Teresa estava ciente de que em certos setores uma forma extrema de reparação havia se desenvolvido, baseada na disposição de se oferecer em sacrifício pelos outros e de se tornar, em certo sentido, um ‘para-raios’ para os castigos da justiça divina” (n. 195). Tanto Teresa quanto o Papa Francisco têm uma visão sombria dessa forma de devoção. “Uma ênfase tão grande na justiça de Deus pode eventualmente levar à noção de que o sacrifício de Cristo foi de alguma forma incompleto ou apenas parcialmente eficaz, ou que sua misericórdia não foi suficientemente poderosa” (n. 195).
Somente Jesus salva e redime o mundo. No entanto, o Papa Francisco está propondo uma estrutura de reparações que as vê como uma “participação livremente aceita em seu amor redentor”. Como fazemos isso? Amando nosso próximo.
“Agradaria ao coração que tanto nos amou se nos deleitássemos em uma experiência religiosa privada ignorando suas implicações para a sociedade em que vivemos?” (n. 205). Francisco conclui que não. Somos chamados a nos reconciliar com amigos, familiares e estranhos a quem prejudicamos e que nos prejudicaram. Somos chamados a construir sociedades de justiça, paz e fraternidade. Mas essa ação é fundamentalmente animada por um amor intenso e também está conectada, de acordo com o Papa Francisco, tanto à evangelização, seu foco na Evangelii Gaudium quanto às suas encíclicas sociais Laudato si' e Fratelli Tutti (n. 217). “Ao contemplarmos o Sagrado Coração, a missão se torna uma questão de amor. Pois o maior perigo na missão é que, em meio a todas as coisas que dizemos e fazemos, deixamos de promover um encontro alegre com o amor de Cristo que nos abraça e nos salva” (n. 208).
Em suma, a compunção pelos nossos pecados que trespassaram o Sagrado Coração de Cristo deve nos levar à tristeza, mas uma tristeza que nos mova não à autopiedade ou ao perfeccionismo, mas a um amor maior a Deus e ao próximo.
— Zac Davis
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As 5 principais conclusões de 'Dilexit nos', a nova encíclica do Papa Francisco sobre o Sagrado Coração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU