10 Outubro 2023
"O Papa Francisco oferece um paraquedas ao mundo antes que seja tarde demais", escreve Mario Marazziti, jornalista e ex-deputado italiano, em artigo publicado por L'Unità, 05-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco continua a ser a nossa consciência coletiva, num mundo que precisa dela mais do que nunca porque parece ocupado com outra coisa e porque muitos, incluindo governos e instituições internacionais, esperam fazer as coisas certas com o mínimo custo, presos a outras lógicas.
Mas o mundo, assim, morre e muitos já estão pagando a conta. É um presente para os governos, para as instituições internacionais e para todos nós, porque corremos o risco de sermos arrastados pelas hesitações da transição energética e pela crise das mudanças climáticas.
O presente do Papa chega no dia de São Francisco através da Exortação Apostólica a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática. É um discurso à humanidade, um convite também aos crentes de outras religiões e aos que não o são, e só no final se dirige aos cristãos de uma forma mais direta.
Chega oito anos depois da encíclica Laudato Si', que nasce do fato de que a situação do mundo piorou e quase constitui o seu apêndice científico. Representa um ponto definitivo, detalhado, que com documentação e serenidade preocupada, limpa o campo das narrativas e das contranarrativas sobre o aquecimento global, sobre o negacionismo, sobre o que fazer.
E une as reformas nos mecanismos decisórios e de controle de governos e instituições internacionais ao raciocínio sobre as causas, inclusive éticas, do que até agora é um preocupante retrocesso e fracasso global, até os comportamentos pessoais como fator relevante para a necessária mudança paradigma e cultural.
O Papa Francisco regista o fato de que os Estados e o mundo, apesar de saberem, não conseguem encontrar a força para fazer as coisas certas, e tenta oferecer as motivações e os caminhos para encontrar aquela coragem ética que até agora as classes dirigentes internacionais não conseguiram.
Conhece as grandes forças que pressionam, de forma míope, para interesses de curto prazo e apenas nacionais, bem como os gigantescos interesses econômicos que confundem a narrativa e - contra os seus próprios interesses - as opiniões públicas.
O Papa Francisco oferece um paraquedas ao mundo antes que seja tarde demais. Ele sabe e explica como na raiz desse suicídio da humanidade, doce para quem está melhor e já amargo para quem está pior, há uma tentação antiga: “tornar-se como Deus”. Daí o título: “Laudate Deum é o nome desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo."
E daí a decisão de “partilhar com todos vós, irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta, a minha profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum. Mas, com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos reagindo de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está desmoronando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura".
O mundo – é difícil não concordar – não é nosso: “A Bíblia conta que ‘Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa’ (Gen 1, 31). D’Ele é ‘a terra e tudo o que nela existe’ (Dt 10, 14). Por isso diz-nos Ele: ‘Nenhuma terra poderá ser vendida definitivamente porque ela é minha, e você são estrangeiros e hóspedes’ (Lv 25, 23). Assim, essa responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo".
No centro está uma das afirmações centrais da Laudato Si', tão verdadeira que não desencadeou grandes mudanças, que marcariam uma inversão de tendência nos modelos sociais, econômicos e de desenvolvimento. É o que o Papa chama de “paradigma tecnocrático”, que está na base do atual processo de degradação ambiental, ou seja, “uma forma desordenada de conceber a vida e a ação do ser humano que contradiz a realidade a ponto de a arruinar”. Em essência, consiste em pensar “como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia."
O paradigma tecnocrático como doença do mundo, sem Deus e contra as mulheres e os homens concretos, tornados irrelevantes: “Como consequência lógica, daqui passa-se facilmente para a ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos das finanças e da tecnologia".
Na visão do Papa, tudo está ligado: crescimento infinito e sentido de omnipotência, poder dos poderes fortes nos mercados e de uma tecnologia independente da primazia do homem, ausência do sentido de limite, na vida e na pesquisa, uma quase onipotência – aceita na cultura contemporânea também sob a pressão de campanhas de pensamento – independente da centralidade humana.
São muitas as passagens que, se levadas em conta, seriam suficientes para desencadear uma mudança, também pessoal, redescobrindo o gosto pelo bem comum: “Deus uniu-nos a todas as suas criaturas. Contudo, o paradigma tecnocrático pode isolar-nos daquilo que nos rodeia e engana-nos fazendo esquecer que o mundo inteiro é uma ‘zona de contato’”. O Papa Francisco nos devolve uma visão em que as pessoas estão no centro da vida, mas não de forma predatória e excludente. Isso é o que ele chama de “antropocentrismo situado”. Isto é, reconhecer que a vida humana é incompreensível e insustentável sem as outras criaturas. Já é uma agenda para a COP 28, a Conferência mundial da ONU sobre as mudanças climáticas. Mas é uma agenda para o futuro do mundo que depende de todos nós.
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A tecnocracia quer ser Deus, mas é o antideus. Artigo de Mario Marazziti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU