19 Outubro 2024
"Olhos postos na emergência climática, resta claro que o colapso ecológico chegou de vez. Dada a pressão sobre a natureza e o clima, pela primeira vez podemos dizer figuradamente que o planeta está em chamas", escrevem Gilberto Natalini e Marcus Eduardo de Oliveira, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Gilberto Natalini é médico-cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo pelo Partido Verde (PV) em 2014.
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental, mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – USP. Autor de Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018) e A civilização em risco (Jaguatirica, 2024), entre outros.
Conter os danos ambientais levados ao corpo da Terra e as mais significativas alterações na base ecológica do mundo vivo, todas gestadas pelo avanço dos projetos economicistas predatórios, é, de longe, o desafio mais imediato de nossa civilização moderna. Assim sendo, a certeza que temos agora, diante de um modelo de produção e consumo global que faz a mais severa exploração comercial dos recursos verdes sem ao menos respeitar o tempo de regeneração da natureza, acelerando, portanto, a destruição da sociobiodiversidade e modificando o clima, é que nos encontramos na encruzilhada do aquecimento global.
Nesse caso, olhos postos na emergência climática, resta claro que o colapso ecológico chegou de vez. Dada a pressão sobre a natureza e o clima, pela primeira vez podemos dizer figuradamente que o planeta está em chamas.
Contudo, pela força das evidências, assusta saber que cada uma das últimas quatro décadas, pelos documentos oficiais do IPCC, foi sucessivamente mais quente do que qualquer outra década que a precedeu desde 1850.
Sendo breve e pensando sobretudo nas condições ambientais que asseguram o direito à vida e que estão no limite crítico justamente por conta do desempenho da economia global que dependente dos combustíveis fósseis, não há mais como esconder os fatos aterradores, a começar pelo aumento do desmatamento tropical (redução da capacidade das florestas pela derrubada criminosa de árvores, nossa riqueza que realiza a fotossíntese, absorve dióxido de carbono, libera oxigênio, ajuda a mitigar os efeitos das emissões de gases de efeito estufa e melhora a qualidade do ar) e também pela fragilização dos ambientes naturais, dois contributos à perda de equilíbrio ecológico.
De resto, numa sociedade que aprendeu a acenar para o modelo de acumulação e que ainda ignora sobremaneira que o planeta é finito, tudo converge para a incidência do que se pode chamar, em termos mais diretos, de ruptura metabólica, razão pela qual a qualidade de vida da humanidade, e é isso o que mais importa, segue bastante comprometida.
No mais das vezes, vendo a questão de forma ampliada, não podemos deixar de dizer abertamente que a lógica da produção e do consumo, ao mesmo tempo em que reproduz a mais antiecológica das lógicas pensadas pela inteligência humana, a expansão do capitalismo global com o qual se pretende organizar a sociedade moderna, corporifica, a rigor, toda a nervura (a estrutura) da própria de crise em si, quer dizer, a busca de uma economia de crescimento sem fim (convenhamos, a mais absoluta das impossibilidades) que se dá acima da capacidade de suporte do planeta.
Logo, diante do contexto da exploração e apropriação da natureza pelo setor produtivo, para repetir o óbvio, a Terra, como tão bem sinalizam os especialistas, se aproxima de “pontos de inflexão do risco”.
Isso significa dizer ainda que, num mundo com dificuldades de manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, mais significativas tendem a ser as deformações no funcionamento geral da biosfera.
Por isso a certeza de que o colapso/deterioração ambiental, per si, configura um quadro de destruição/devastação da natureza – e esgotamento de recursos, é claro – jamais presenciado.
E se ainda permanecer alguma dúvida, podemos começar lembrando, entre outros, que: i) um terço das terras aráveis e férteis (12 bilhões de hectares) do mundo estão improdutivas, impactando na produção, na reserva de água e no sequestro de carbono; ii) nada menos que 70% dos sinais vitais da Terra, devido os efeitos das mudanças climáticas, estão em estado crítico.
Bem entendido essa primeira parte nevrálgica, continuemos explicando: i) 77% da terra e 87% do oceano foram [radicalmente] alterados pelo antropocentrismo dominador; ii) a metade conhecida das zonas úmidas do planeta (pântanos, mangues, charcos, turfeiras) desapareceu devido aos impactos da agricultura, urbanização e poluição; iii) o derretimento do gelo (a saber, 2023 foi o ano em que o mundo perdeu mais gelo do que em pelo menos cinco décadas) e das geleiras, hoje mesmo, ameaça frontalmente a segurança hídrica das sociedades modernas. No caso, os especialistas não se cansam de sinalizar sobre a possibilidade real de que 40% das reservas hídricas da Terra podem desaparecer até 2030, devido às mudanças climáticas.
Complementando, todos sabem pelo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) que, em 2023, o ano mais quente dos últimos 100 mil anos, os rios do mundo tiveram a pior seca em pelo menos 30 anos; nesse pormenor, calor e seca estão minando cursos de água vitais. De igual modo, o Rangelands Atlas informa, em linhas gerais, que 54% da superfície terrestre do mundo consiste em áreas sem florestas, biomas não florestais, mas, todavia, somente 12% deles está sob proteção. Nos relatórios do World Wildlife Fund (WWF) lemos brevemente que houve declínio de 83% em relação aos animais que habitam os rios de água doce, principalmente na América Latina e Caribe. Por último, mas não por fim, a informação que vem da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), destaca, em tom de alerta, que 73% das raças de gado bovino no mundo estão ameaçadas de extinção. Das cerca de 7 mil raças de gado do planeta, apenas 1,3% dispõem de estoque de material genético suficiente para assegurar sua reconstituição em caso de extinção.
Assim sendo, não resta dúvida, portanto, de que estamos diante do mais grave sinal de empobrecimento da diversidade biológica da Terra. É esse, em síntese, o ponto mais nevrálgico da crise ecológica atual.
De um lado, focos de queimadas, extração de madeira, e, em alguns lugares, total ausência de chuvas, mudando, pois, velhos habitats ao longo das bordas da floresta. Do outro, tempestades destrutivas e cada vez mais intensas, pesca excessiva, poluição por fertilizantes e pesticidas que comprometem a rica história de biodiversidade do mundo vivo. No fim das contas, como acabamos de dizer, eis a pesarosa situação de empobrecimento da diversidade biológica da Terra.
Ponto preocupante, como o planeta que habitamos não dispõe de recursos em abundância e tampouco dispomos de outro planeta à nossa (irresponsável) disposição, não é difícil inferir, daí em diante, que milhões de pessoas, animais e vegetais, em diversas partes do mundo, serão ainda mais afetadas por conta do desequilíbrio da natureza. De toda sorte, olhos postos na crise de biodiversidade atual, permanece o alerta: se nada for feito de forma radical em termos de mudanças, o tempo crítico, ousamos presumir, está definido: até 2075, como indicam várias estimativas, a biodiversidade local poderá ser reduzida em 75%.
Portanto, nessa perigosa situação de destruição do mundo natural e de absoluto comprometimento dos ecossistemas planetários em que nos encontramos, se o mundo moderno não enfrentar com determinado vigor as mudanças climáticas, até 2030 (e isso nos parece uma questão central na articulação de mudanças políticas significativas) mais de 120 milhões de pobres e desprotegidos estarão aptos a ingressar no quadro assustador que agora chamamos de refugiados climáticos (vítimas ambientais).
Dessa perspectiva, ajustando interpretações, nos resta concluir dizendo sobretudo que, na realidade em que estamos inseridos, hoje, como ontem, ainda “seduzidos” pelo imaginário do progresso que “faz” da ideia do crescimento perpétuo (a impossibilidade que já mencionamos) imperativo político, resta claro que as tramas do equilíbrio planetário não passarão ilesas.
Nessa mesma direção, e sem a pretensão de fugir de nossas responsabilidades, temos o dever de reconhecer que, por conta da aceleração da mundialização que se impôs sobre o mundo natural, agora temos conosco a mais violenta lógica de destruição do mundo vivo.
Assim sendo, sem que se desvie o olhar de todo esse processo de desgaste ambiental, importa não esquecer as causas e as consequências do desajuste planetário, tendo em vista, primeiramente, que: 1) os grandes rios do mundo continuam sendo impiedosamente desviados e contaminados com química pura; 2) o ar que respiramos está cada vez mais poluído, tanto que a Organização das Nações Unidas, ONU, classifica a poluição atmosférica como a “maior assassina do planeta”, responsável por um quarto das mortes prematuras e doenças em todas as partes do planeta; 3) os espaços ambientais se fragmentam em velocidade nunca vista; 4) os oceanos, os maiores ecossistemas conhecidos, seguem comprometidos pela poluição de microplásticos; 5) a elevação do nível dos mares é cada vez mais preocupante; 6) a diminuição da água potável, hoje, como sempre, se tornou sinônimo de risco imediato à vida na Terra; e 7) a Humanidade, força geológica que nos tornamos, já alterou 70% da superfície terrestre da Terra provocando a perda de mais de 20% da biodiversidade original, gestando, como se supõe, muito mais agravos à saúde humana.
Curiosamente, insistindo no assunto, a reflexão que melhor retrata essa desconexão socioambiental, chamemos assim, diz respeito à confirmação de que toda a Humanidade, a fim de moldar seu estilo de vida consumista e opulento, ao menos, é claro, para a parte mais rica e abastada do planeta (20% da população mundial do Norte do planeta) vem usando quase 150% dos recursos oferecidos pela Terra, ignorando, no curso dos acontecimentos, os efeitos mais indesejados possíveis, notadamente se o clima está ou não sendo alterado pelas emissões de gases de efeito estufa “produzidas” pela queima de carvão, petróleo e gás mineral, pelo aumento da queda florestal e também pela agricultura e pecuária, alheias, como se sabe, à (boa) causa ambiental.
Fechando o raciocínio, queremos apenas registrar mais um ponto relevante: por conta do avanço da sociedade de crescimento, quer dizer, desse atual modelo de economia global que [sobretudo] quer nos convencer que sem aumento da produção (ideologia das quantidades) não é possível alcançar progresso e modernidade, nem avanços e nem prosperidade, agora temos, em nossa vida cotidiana, os mais sérios problemas na estabilidade dos ecossistemas e especialmente na vida das florestas, mas também nas nascentes (no mundo das águas) e nos solos férteis que nos dão o alimento.
Enfim, temos a mais grave crise ecológica instalada no Lar Natural onde habitam todas as espécies vivas. Como procuramos deixar claro, temos um Corpo Planetário (a Casa Comum, a Casa da Vida) gravemente adoecido e maltratado pela economia global que nos guia, e pelo antropocentrismo dominador, a força humana.
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A crise do mundo vivo. Artigo de Gilberto Natalini e Marcus Eduardo de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU