18 Outubro 2024
A mobilização social ganhou em outubro um novo impulso, estimulada pelos vetos presidenciais a leis aprovadas pelo Congresso que pretendiam aumentar as aposentadorias ou melhorar o financiamento das universidades públicas.
O artigo é de Eduardo Giordano, Jornalista argentino, publicado por El Diário, 17-10-2024.
Com o passar dos meses e as medidas econômicas que foram adotadas pelo governo ultraliberal de Javier Milei, o apoio popular ao presidente já começa a se fragmentar entre diversos setores da população: os jovens, em particular os estudantes universitários; os aposentados, os profissionais de classe média da área da saúde, da educação e de outros serviços públicos, bem como o conjunto da população afetada pela grande discrepância entre a contenção dos salários e o aumento dos preços de todos os bens e serviços.
Enquanto o governo continuava a aprofundar sua política de desmantelamento do Estado, cortando recursos para a educação e a saúde pública, o protesto social ganhou em outubro um novo impulso, incentivado pelos vetos presidenciais a algumas leis essenciais aprovadas pelo Congresso, como a norma de aumentos das aposentadorias (mobilidade aposentadoria) e o sistema de financiamento das universidades públicas, a Lei de Financiamento Universitário. Em ambos os casos, o governo de Milei declarou que essas normativas colocavam em risco o déficit zero, sua obsessão macroeconômica. O veto presidencial foi ratificado com o apoio de um terço dos congressistas — somando votos do macrismo —, e embora quase dois terços dos deputados tenham votado a favor de manter a lei, o resultado foi apresentado como um triunfo do governo, que conseguiu assim enviar um sinal aos mercados sobre a continuidade do ajuste fiscal.
Os cortes no sistema público de saúde impulsionaram um protesto que no dia 8 de outubro culminou com uma marcha à Plaza de Mayo convocada por médicos residentes de todo o país. Ao mesmo tempo, a política de cortes orçamentários abriu outro importante foco de luta no setor de saúde. O estopim foi o anúncio do fechamento do Hospital Bonaparte, o único hospital nacional especializado em saúde mental, com a consequente desassistência dos pacientes e a tentativa de demitir todos os seus trabalhadores — que ocuparam a sede para evitar isso. Somado aos cortes em outros hospitais públicos, como o Garrahan, o maior hospital pediátrico nacional, isso incentivou um protesto que culminou no dia 8 de outubro com uma marcha à Plaza de Mayo convocada por médicos residentes de todo o país.
As medidas de força continuaram nos dias subsequentes. Simultaneamente, professores e estudantes de várias faculdades da Universidade de Buenos Aires ocuparam as salas de aula e convocaram aulas públicas nas ruas, como medida de pressão para que o Congresso não aceitasse o veto de Milei à Lei de Financiamento Universitário aprovada no Senado. Um protesto que rapidamente se estendeu às universidades de quase todas as províncias.
Por outro lado, os conflitos de interesses com os trabalhadores de empresas em processo de privatização, como a Aerolíneas Argentinas, resultaram na convocação de uma greve nacional de transporte. Nesse clima social, alguns dirigentes da Confederação Geral do Trabalho (CGT) já começam a vislumbrar uma nova greve geral. Pablo Moyano, líder dos Caminhoneiros e cossecretário geral da CGT, afirmou que é hora de "confrontar o governo". No entanto, a tendência majoritária da principal central sindical recebeu críticas de estudantes e aposentados por manter uma atitude de diálogo com o governo.
As últimas medidas econômicas implementadas pelo governo de Milei, e em particular a regularização de capitais, proporcionaram o que se chamou de um inesperado “veranico financeiro” favorável à sua gestão econômica. O governo aguardava há meses o esperado fluxo de dólares que permitisse aumentar as reservas do Banco Central e reduzir a pressão sobre o dólar paralelo, que chegou a ser cotado a 1.500 pesos por unidade em 12 de julho de 2024, 50% a mais que em janeiro (1.005 pesos). Três meses depois, em meados de outubro, o valor do dólar blue caiu para menos de 1.200 pesos, limitando sua alta desde janeiro a 17%. Quem comprou dólares em julho para se proteger da inflação em moeda argentina teria perdido em outubro cerca de 30% do capital investido.
Diversas condições possibilitaram essa mudança de tendência na política monetária. A primeira foi a entrada de divisas por meio da generosa regularização concedida pelo governo, com isenção fiscal total para capitais opacos de até 100 bilhões de dólares, e uma alíquota muito reduzida para valores mais altos, sem limite de quantidade. Tratando-se de uma economia praticamente bimonetária, o governo, com escassez de divisas, recorre aos cidadãos para que depositem seus ativos não declarados no sistema bancário e façam os dólares circularem.
Outra medida que facilitou a valorização do peso foi a redução do imposto sobre importações, o chamado imposto PAIS, que caiu de 17% para 7,5% sobre o valor declarado. Além disso, em setembro, houve maiores receitas pela liquidação de impostos do setor agroexportador, a principal fonte de divisas do Estado, após o governo reduzir em agosto as retenções para alguns produtos agroindustriais, como a carne.
Essas condições particulares permitiram ao Executivo intervir no mercado de câmbio, inundando a praça com dólares para reduzir a pressão da demanda, ao mesmo tempo que secava a economia nacional de pesos, contendo sua emissão. A regularização resultou na entrada de uma quantidade de dólares em espécie nos bancos, próxima a 13 bilhões de dólares, quase o dobro dos capitais “exteriorizados” durante a regularização de 2016, realizada no governo de Mauricio Macri. Naquela época, o capital regularizado que ficava isento de impostos era uma sexta parte do limite atual.
Mas o chamado “veranico financeiro” não se refere apenas à valorização do peso — uma moeda que o presidente Milei chamou de “excremento” durante sua campanha eleitoral, prometendo a dolarização —, mas também a outros fatores relacionados a esse fenômeno. Junto com a contínua valorização do peso no mercado paralelo de câmbio, houve uma redução do chamado “risco país” e um aumento no valor dos títulos e ações da Argentina na bolsa de valores dos EUA.
O problema é que essa valorização (temporária) da moeda local não vem acompanhada de uma desaceleração total da inflação. A curva inflacionária, embora não tão acentuada quanto nos primeiros meses do ano, manteve sua trajetória ascendente em setembro, com um aumento mensal de 3,5% — o menor índice alcançado até agora —, atingindo uma taxa anual de 209%. Nos primeiros nove meses de 2024, o índice oficial de preços acumulou um aumento de 101%. Apesar do cenário recessivo geral, da perda massiva de empregos, do congelamento de aposentadorias e salários, não parece que os aumentos de preços diminuirão até o final do ano, impulsionados em grande parte pelos aumentos tarifários e pelos cortes nos subsídios ao transporte público.
Com uma previsão de inflação próxima de 130% até o final do ano, apesar da valorização do peso, a Argentina tornou-se um país muito caro não apenas para seus habitantes, mas também para os visitantes estrangeiros. O turismo estrangeiro, em particular de países vizinhos, é um dos setores que mais sofre com o impacto do “veranico financeiro” deste governo, já que a afluência de turistas foi muito reduzida com uma moeda claramente sobrevalorizada e um nível de preços que aumenta a cada mês.
Por outro lado, a inflação está subestimada nas estatísticas, segundo a percepção geral das pessoas. No decorrer do ano, os aluguéis aumentaram 50% acima da inflação. O "sinceramento" (remoção de subsídios) das tarifas dos serviços públicos e do transporte consome quase toda a renda de um aposentado que recebe a pensão básica. Os aumentos nas mensalidades dos planos de saúde também são muito superiores ao índice de inflação. E assim por diante.
De qualquer forma, as variáveis financeiras favoráveis ao governo não modificam os dados estruturais da economia, que, nas melhores previsões, terá em 2024 um crescimento negativo de -4%, apesar do aumento da dívida pública, que chegou a 81 bilhões de dólares em 30 de agosto de 2024, segundo dados do pesquisador Alejandro Olmos, que estima que o total devido pelo país já alcança 460 bilhões de dólares. Olmos também afirma que a soma dos valores destinados à educação e à saúde no orçamento apresentado pelo governo para 2025 é equivalente aos pagamentos de capital e juros da dívida durante o mesmo período (cerca de 25 bilhões de dólares).
Por outro lado, o consumo de massa continua em queda, com números tão alarmantes que os meios de comunicação do establishment se atrevem a publicar que "continua em queda livre" e que este ano pode terminar com "a pior marca desde a crise de 2001" (Clarín, 08/10/2024). Em agosto, a redução interanual foi de 17%, a maior retração do consumo desde março de 2021, durante a pandemia. Em setembro, essa tendência se agravou ainda mais, com uma queda de 21% em relação ao ano anterior.
O ajuste fiscal de Milei e sua política econômica recessiva provocaram um enorme aumento da pobreza, que, segundo as estatísticas oficiais do INDEC, passou de 41,7% da população para 52,9%. Mais de cinco milhões de pessoas passaram a engrossar o número de pobres durante o primeiro semestre de 2024. A indigência também aumentou, passando de 11,6% para 18,1% da população no mesmo período.
O caso dos aposentados é o mais representativo dessa situação de precariedade. Segundo estimativas da Defensoria da Terceira Idade da cidade de Buenos Aires, mais de cinco milhões de aposentados vivem abaixo da linha da pobreza. Sete milhões recebem a aposentadoria mínima. Muitos deles não conseguem pagar pelos medicamentos ou têm que escolher entre comprá-los ou comer. A Defensoria da Terceira Idade considera que a cesta básica de um aposentado gira em torno de 800 mil pesos mensais, enquanto a aposentadoria mínima, incluindo o bônus adicionado pelo governo, chega a 295 mil pesos.
Se até a metade do seu primeiro ano de governo as pesquisas apresentavam Milei como vitorioso, mantendo os mesmos níveis de popularidade que nas eleições que o levaram à presidência, todas as pesquisas realizadas durante o terceiro trimestre do ano mostraram um apoio gradualmente decrescente à figura de Javier Milei. Essa tendência é evidente nas últimas pesquisas divulgadas pelos principais meios de comunicação, que revelam uma crescente desaprovação entre os jovens de setores populares que votaram em Milei.
O veto presidencial à Lei de Financiamento Universitário radicalizou o protesto juvenil, agravado pelas falaciosas declarações de Milei ao afirmar que apenas os jovens ricos desfrutam da universidade pública, quando na verdade quase metade das famílias (48,5%) dos estudantes da Universidade de Buenos Aires (UBA) estão abaixo da linha da pobreza. Após o veto presidencial, a rebelião estudantil se espalhou para cerca de cem universidades em todo o país, muitas delas ocupadas pelos alunos. Incluem-se várias sedes em cidades onde o apoio ao presidente era majoritário. Por exemplo, é significativo que as ocupações incluam várias faculdades da Universidade Nacional de Córdoba (UNC), uma das províncias onde a vitória eleitoral de Milei foi mais contundente, graças ao apoio dos jovens.
Diante das ocupações das universidades, a ultradireita governante ameaça com a repressão. O porta-voz presidencial Manuel Adorni qualificou as ocupações como um crime e enviou a polícia para enfrentar os jovens dentro de algumas faculdades e desobstruir as ruas bloqueadas pelos estudantes. Na Universidade de Quilmes, um punhado de extremistas da LLA foram interromper uma assembleia, e ao serem expulsos, atacaram vários participantes com gás de pimenta. O chefe do Gabinete de Ministros, Guillermo Francos, justificou essas ações com argumentos antiquados: “Na década de 1970, também ocupavam universidades, e depois geraram movimentos que usaram a violência para expressar suas posições. Isso se transformou em guerrilha subversiva e depois gerou repressão”. E assim a situação se agrava. Depois que vários congressistas do partido de Milei visitaram algumas prisões meses atrás para homenagear os repressores da ditadura, agora o governo ameaça indiretamente voltar a usar essa violência, já superada, contra os jovens que reivindicam seu futuro.
“A medição de setembro da gestão Milei registra o nível mínimo do índice de confiança desde o início de seu governo”, pode-se ler em um documento da Escola de Governo desta universidade privada, uma referência para alguns setores sociais influentes. A pesquisa, realizada pela Poliarquia Consultores, “investiga as expectativas dos entrevistados sobre a melhoria da economia, a avaliação geral da gestão, a eficiência nos gastos públicos, a honestidade dos funcionários e a capacidade de resolver os problemas do país”.
Outra pesquisa realizada pela consultoria Opina Argentina, em outubro, concluiu que a desaprovação à gestão do governo em setembro foi de 56%. O número não é esmagador, mas é um importante indício de mudança de tendência, já que essas consultorias concluíam, até recentemente, que mais da metade da população continuava apoiando Milei. Mais significativo ainda é o dado fornecido pela Opina sobre a avaliação de Milei entre aqueles que votaram nele nas eleições gerais, cuja imagem caiu 20 pontos em um mês, de 84% em agosto para 64% em setembro.
Além de demonstrar sua inépcia para conter o protesto da juventude universitária, o desprestígio do governo atingiu um ponto de inflexão irreversível, inclusive entre seus próprios eleitores, com a repressão brutal contra os aposentados que se manifestaram em frente ao Congresso no final de agosto, se opondo ao veto presidencial que rejeitou a recomposição de seus benefícios conforme a inflação. A operação repressiva, comandada pelo Ministério da Segurança, incluiu três forças armadas — Gendarmeria, Polícia Federal Argentina e Prefectura Naval — que enfrentaram os aposentados com cassetetes, gás de pimenta e balas de borracha.
A repressão resultou em vários manifestantes feridos. Foi qualificada como “brutal” por alguns meios de comunicação, e se repetiu três semanas depois, em 18 de setembro, em outra marcha convocada pelos aposentados em frente ao Congresso, como fazem todas as quartas-feiras. Nesta ocasião, havia menos participantes que na semana anterior, mas a polícia se empenhou em castigá-los. A CGT emitiu um comunicado de repúdio, rejeitando “enfaticamente a vergonhosa repressão” contra “um grupo de aposentados que se manifestava pacificamente”. Por sua vez, a vice-presidente da Câmara dos Deputados, Cecilia Moreau (Unión por la Patria, peronista), cunhou uma frase que logo se tornaria viral: “De bater em um aposentado não se volta”.
Uma contundente desqualificação moral que resume o cansaço de muitos argentinos diante do exercício da crueldade.
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A popularidade de Milei desmorona enquanto se multiplicam os protestos contra os cortes na Argentina. Artigo Eduardo Giordano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU