26 Setembro 2024
A maioria das histórias que Liana Badr conta tem voz feminina. “As mulheres palestinas são muito fortes”, ressalta ao jornal Público. “Elas são as guardiãs do lar”, onde “tudo se preserva: os filhos, a água, o alimento”. São experiências que aborda em romances e contos. Sua capacidade de retratar a realidade palestina a levou a receber diversos prêmios de relevância internacional, como a homenagem no Festival Internacional de Cinema do Cairo, em 2000. Por isso, no último dia 24 de setembro, a Casa Árabe a convidou para proferir a conferência inaugural do ciclo Aula Árabe Universitária 6.
A reportagem-entrevista é de Emilia G. Morales, publicada por Público, 25-09-2024. A tradução é do Cepat.
Em uma das salas de reuniões desta instituição, Badr respondeu às perguntas de todas as jornalistas espanholas que a interpelaram ao longo do dia. A do jornal Público é a sétima e última de todas as entrevistas. O cansaço não a impede de sorrir afavelmente. Liana Badr se senta, pega um copo de água e, após tomar um bom gole, inicia.
“A oliveira é muito importante para nós”, diz, enquanto aponta para a tatuagem desta árvore em uma das pessoas presentes na sala. Não espera a pergunta e prossegue: “Após dar à luz, durante vários dias, as mulheres banham os seus filhos com azeite de oliva”. “É uma tradição muito antiga”, afirma. “Agora, os israelenses queimam ou arrancam as oliveiras”.
Exatamente como se pode ver no vídeo que viralizou recentemente nas redes, no qual um palestino grita e chora desesperado ao ver como um colono israelense corta os galhos e troncos de suas árvores com a permissividade dos militares israelenses lá presentes. É fácil concluir que, com este gesto humilhante, os colonos não buscavam retirar apenas o sustento material das famílias, mas também o simbólico: separar a identidade palestina das terras que até o momento povoavam.
“Em um dos meus documentários, conto a história de quatro mulheres que tentam impedir que a ocupação israelense destrua as oliveiras dos seus antepassados”. Este foi “um filme muito premiado”, orgulha-se. Zeitounat, como é chamado o documentário mencionado por Badr, foi o segundo filme que lançou. Foi no ano 2000 e depois deste vieram outros cinco. O último foi Al Quds, My City, em 2010.
Sua produção artística a tornou uma das escritoras e cineastas palestinas mais prolíficas de seu tempo. Afirma que o talento é abundante entre as mulheres deste povo: “Você se surpreenderia ao ver o número de mulheres [da Faixa de Gaza] que receberam uma boa educação e possuem estudos acadêmicos”. “Antes [de 7 de outubro], vi coisas incríveis em Gaza”. Por exemplo, os bordados tradicionais palestinos, considerados Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
Acrescenta também que os melhores pintores da região estão na Faixa de Gaza. Considera que isto se deve às cores vistas neste pequeno pedaço de terra, que são “mais ricas no sul” por causa do “calor do clima”. De Gaza é possível ver “o mar, os pássaros” e se percebe “mais felicidade”. “Gaza era um lugar cheio de pessoas talentosas”, conclui. Fala no passado porque agora o pó cinzento dos escombros cobre toda a Faixa.
Essa paisagem de destruição é o que alguns sionistas radicais irão contemplar dos navios de cruzeiro que param diante da costa de Gaza. “Aqueles que fazem viagens de barco para ver Gaza arder são monstros, não seres humanos”, diz Badr.
Por isso, considera que a atual intervenção militar sionista “vai muito além de um genocídio”. “Estão destruindo tudo”, afirma categoricamente. E esse “tudo” abrange uma concepção ampla da sociedade palestina. Uma sociedade à qual Israel, avalia, “está acabando”. Das mais de 40.000 pessoas – metade delas meninos e meninas – às suas casas, universidades, centros culturais e “museus privados espetaculares”, com os quais Israel tem sido cruel, manifesta-se a escritora. Algumas das peças e joias romanas que cuidavam, explica, foram roubadas. “Digamos claramente: [o de Benjamin Netanyahu] é um governo profundamente de extrema direita, com sede de matar”.
A noção antropológica de genocídio inclui também a destruição do legado cultural de um grupo étnico e/ou político, real ou sentido. Ou seja, não apenas a aniquilação física dos membros deste grupo, mas também das suas formas de vida e dos produtos culturais delas gerados. Esta definição se encaixa com o que Badr busca transmitir quando afirma que o exército israelense “busca apagar tudo, sim. (...) Não deixam nada vivo”.
Contudo, nem sempre foi assim, lembra-se. Em Jerusalém, houve um tempo em que “se alguém fazia um bolo, partilhava com os seus vizinhos”, independentemente de sua identidade religiosa. “Eu vi isso quando pequena. As pessoas não perguntavam aos outros qual era a sua religião”. É que ela também não acredita “que o que está acontecendo agora possui qualquer relação com a religião”. “Esta é apenas a desculpa”, afirma. Considera que a única razão desta guerra perpetuar é que, recentemente, descobriram reservas de gás e petróleo em Gaza. Refere-se às reservas encontradas em suas costas, nos últimos anos. Especialmente a de Leviatã, descoberta em 2017 e cujas instalações foram iniciadas em 2020. Esta reserva é capaz de satisfazer o consumo de Israel por 40 anos, segundo publicação da revista Ecologistas en Acción.
Esta visão de uma convivência relativamente pacífica entre a população muçulmana e judaica que povoava Jerusalém, em meados do século passado, não nega a existência do conflito. Embora, conforme relata, “muitos dos ataques provinham das forças repressoras do Mandato Britânico”. É difícil saber o quanto corresponde esta afirmação, já que Badr nasceu em 1950, dois anos após o Reino Unido ter retirado as suas tropas desse território e as milícias israelenses tomarem Jerusalém – e 78% do território até então considerado Palestina – e fundarem Israel.
Agora, Liana Badr não pode voltar à cidade onde passou a sua infância. Apesar da jovialidade, tem 74 anos e diz estar “cansada” de ter que passar pelo checkpoint que a separa de sua família. Atravessá-lo significa se expor a esperar por horas em pé para que, finalmente, um soldado israelense decida se você pode passar ou não. Algo que, às vezes, depende “dele estar de bom ou mau humor”. Todos os palestinos que, como ela, vivem em Ramallah, bem como em qualquer outra cidade da Cisjordânia ocupada ou na Faixa de Gaza, têm de passar por esta corrida de obstáculos, caso queiram chegar a Jerusalém.
Além disso, durante esta travessia, são expostos a muitos riscos. “Sempre que você viaja de um lugar para outro, qualquer pessoa pode te parar”. Seus colegas do Departamento de Arte, do Ministério da Cultura palestino, onde Liana Badr trabalhou até alguns meses atrás, sofriam frequentemente com isso. Alguns tinham de viajar muitas vezes de Hebron, onde viviam, até Ramallah, onde fica a sede da maior parte das instituições da Autoridade Palestina. Os 62,5 km que separam as duas cidades podem ser percorridos em pouco mais de uma hora, afirma. “No entanto, em muitas ocasiões, são parados pelos soldados e passam a noite toda na rua, dentro de seus carros. E nem sequer podem ir ao banheiro”.
Em outros casos, “qualquer colono pode parar todos os carros palestinos”. Foi o que aconteceu com alguns de seus familiares que viajavam em um ônibus de Ramallah até Nablus. Segundo relata, alguns colonos pararam o ônibus e bateram neles. Dado o contexto, diz que não deseja se arriscar a viajar. Nem seus familiares, sendo alguns “idosos” e que, inclusive, “passaram por operações cardíacas”.
Conta que viajar de uma cidade para outra era relativamente mais fácil até o início deste século, quando ia frequentemente visitar os familiares que viviam na cidade santa. No entanto, tudo mudou após a Segunda Intifada (2001-2002), durante o Governo ultradireitista de Ariel Sharon (Likud). Em resposta à sublevação popular e das milícias do Hamas, o então primeiro-ministro de Israel impôs ainda mais restrições de mobilidade aos palestinos. Desde então, os checkpoints, tanto fixos como temporários, multiplicaram-se.
Enquanto Israel avançava na burocratização do apartheid palestino, a comunidade internacional, absorta no trauma do 11 de setembro de 2001, virava o rosto. Parece que todos acordaram de uma vez, em 7 de outubro de 2024. “Israel diz que faz tudo isso por vingança, mas é mentira. É se vingar assassinar uma criança?”, questiona. Em sua boca, a realidade da Palestina oscila entre o horror e o absurdo.
“Foi [Benjamin] Netanyahu que permitiu a existência do Hamas para dividir a população entre eles e a Autoridade Palestina”. E ironiza: “Será que antes eram bons e agora são maus?”. Ela mesma responde: “Não”. Deste lado do Mediterrâneo, os meios de comunicação fazem uma descrição monolítica do Hamas: simples terroristas fundamentalistas que atuam sem razão ou lógica. Esta redução é fruto da islamofobia, ressalta Badr.
A realidade é mais complexa: “Para o Hamas, a religião é um componente essencial da identidade palestina e isso é algo que também pode ser visto em outros países”. Dá como exemplo a Itália, onde os democratas-cristãos ressurgiram, em 2019, sob o guarda-chuva da Unione di Centro e cujos princípios são amparados na doutrina da Igreja Católica.
“O Hamas é apenas mais uma parte da sociedade palestina”, afirma. “Muitas nações têm partidos e grupos diferentes. Temos que obedecer a um partido ou a um homem específico? Por que a Palestina não pode ser diversa como são os outros países?”.
Badr defende a existência de seu povo em toda a sua escala de tons, que oscila entre o seu próprio posicionamento político – que pode ser interpretado como eminentemente laico e feminista – e o islamismo radical do Hamas.
Mas é difícil aprofundar esta complexidade quando aqueles que a podem narrar, os jornalistas palestinos, estão sendo massacrados. Sob as bombas de Gaza, “os melhores e mais jovens jornalistas foram assassinados”, lamenta Badr. Afirma que Israel sabe perfeitamente quem são quando os mata. “Os drones têm câmeras e quem os opera” vê o que fazem. “Como a sociedade internacional pode aceitar isto?”. Durante a entrevista, Liana repete esta pergunta várias vezes. E, repetidamente, recebe um silêncio obsceno como resposta.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Liana Badr, escritora palestina: “Estão destruindo tudo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU