19 Agosto 2024
Na semana passada, a ultradireita do Reino Unido saiu do armário, gerando dezenas de mobilizações a partir do assassinato de três meninas esfaqueadas por um desequilibrado de 17 anos em Southport.
A reportagem é de Julián Varsavsky, publicada por Página|12, 15-08-2024.
A tragédia foi usada por uma empresária que publicou na rede X uma mentira dizendo que o assassino era o muçulmano Ali Al Shakati, que havia chegado de barco pedindo asilo político e estava sendo vigiado pelo serviço secreto M16. Ela então apagou a postagem, mas já havia tocado uma fibra íntima de seus 53.000 seguidores, que começaram a incendiar as redes e abandonaram o panóptico digital cheios de ódio, para passar à ação anti-imigração em cidades da Inglaterra e da Irlanda: confrontos com a polícia e cerco a comércios de estrangeiros, hotéis para refugiados e mesquitas, além de multiplicar suas campanhas digitais contra políticos e ONGs que ajudam a imigração. Algumas consignas marcadas foram “basta é basta” e "que voltem para os barcos". Depois, descobriu-se que o autor do crime nasceu na Inglaterra, seus pais são de origem ruandesa e ele não é muçulmano.
O sul-africano radicado nos EUA, Elon Musk, meteu-se na situação a partir de seu trono cibernético, compartilhando em sua conta, seguida por 193 milhões, uma capa fake verossímil do jornal Telegraph, denunciando o primeiro-ministro trabalhista Keir Starmer por querer enviar os manifestantes de ultradireita para um “campo de detenção de emergência” nas Ilhas Malvinas. Meia hora depois, ele apagou sua postagem, mas uma captura de tela mostrou que ela havia alcançado 2 milhões de visualizações. Musk também compartilhou uma mensagem de Ashlea Simon, dirigente do grupo de ultradireita Britain First, onde ela dizia “estamos sendo deportados para as Malvinas”. A razão, segundo o falso artigo, era que as prisões inglesas estavam sobrecarregadas.
O orgulhoso Musk não se desculpou pela mentira apagada e continuou postando críticas ao trabalhismo inglês por frear as manifestações racistas e se preocupar com a necessidade de colocar limites ao ódio digital baseado em mentiras. Musk é um cruzado libertário e considera que cada um pode publicar o que quiser, sem se importar com as consequências. Em um de seus posts, ele reclamou: “Apoiem a liberdade de expressão no Reino Unido”. Depois, criticou Stephen Parkinson, uma espécie de defensor do povo, que declarou que a polícia estava revisando as redes sociais para frear as incitações ao ódio racial. Isso lhe pareceu uma péssima ideia, e Musk acusou Parkinson no X de pertencer à “The Woke Stasi”, algo assim como um progressismo de tipo stalinista ao estilo romeno que só existe em sua imaginação (é parecido com o que Javier Milei chama de “boluprogres”).
Musk também tuitou em apoio a quem ataca os funcionários do sistema judiciário por prender pessoas que publicaram comentários racistas, defendendo sua postura de uma “liberdade de expressão absolutista”. Para argumentar, postou o meme de um personagem animado amarrado a uma cadeira elétrica e comparou a cena com o castigo que os ingleses enfrentariam por publicar suas opiniões online em 2030.
Como bom hater, Musk escolheu Keir Starmer como inimigo-chave. De seu maniqueísmo primitivo, postou que em terras inglesas “a guerra civil é inevitável” e que a reação da polícia frente aos violentos tinha sido “contra um único lado”: ele está denunciando discriminação contra os discriminadores.
Diante de uma postagem fake de uma pessoa dizendo que uma patrulha de “muçulmanos armados” havia atacado civis, Musk perguntou a Starmer: “por que todas as comunidades não estão protegidas?” O líder trabalhista, inteligentemente, não respondeu para não dar mais combustível à provocação.
A reação ultra de Musk é coerente consigo mesmo. Desde que comprou a X em 2022 por 44 bilhões de dólares, ele tem sido acusado de afrouxar as políticas de controle anti notícias falsas nas postagens odiosas.
Elon Musk é um general libertário do ciberespaço. Mas os que transportam para o terreno seu ódio são os peões da ultradireita inglesa, onde há influenciadores que trabalham há anos em atiçar as frustrações pessoais para canalizá-las para bodes expiatórios. De seus bunkers caseiros, esses youtubers e instagrammers publicam endereços de asilos para imigrantes e dos advogados que os defendem para organizar queimas, ameaças e protestos. Também definem data e local para as mobilizações e oferecem tutoriais de coquetéis molotov. A Justiça inglesa tenta que o X apague essas postagens.
Inicialmente, os racistas ingleses usaram mais a rede Telegram para organizar os ataques, mas a empresa começou a reagir. O canal de Telegram “Southport Wake Up” foi criado após o assassinato das três meninas e cresceu com o impulso da indignação. Quando já tinha 15.000 seguidores, foi desativado pela empresa.
A rede X não age da mesma maneira. Antes de Musk a comprar, as políticas contra mensagens de ódio da então rede Twitter haviam feito com que os canais de ultradireita migrassem para o Telegram. Agora, dada a laxidão do megaempresário – uma espécie de rei do fake, amigo íntimo de Donald Trump e Javier Milei – os haters fascistas estão retornando de seu exílio para o antigo feudo digital da X. Um popular é Tommy Robinson, agora reabilitado na rede social: disse que Musk é “o melhor que aconteceu à liberdade de expressão neste século”. Em posts como este, Robinson marca Musk, que encantado o aceita, reimpulsionando assim a mensagem para milhões. Algo semelhante faz Javier Milei – em escala muito menor – com as publicações do influenciador profissional El Gordo Dan.
O computólogo Javier Blanco analisou esse surto de racismo para o Página|12:
“As redes sociais estão transformando drasticamente a estrutura social e a cena intelectual, apresentando desafios inéditos e novas formas de conhecimento e de ação diferida. Como indica Benjamin Bratton, o mundo atual está constituído por uma pilha de camadas digitais que possibilitam uma multiplicidade de operações. Não se deve entender essas camadas como formas representacionais abstratas que reduzem a realidade a meros dados, como costuma ser denunciado em muitas críticas. Pelo contrário, elas constituem uma nova forma de materialidade sobreposta à previamente existente que habilita múltiplas formas de percepção, cognição e ação, capazes de operar com uma efetividade inédita em muitas camadas: o ódio acumulado nas redes se materializa quando os racistas ingleses saem às ruas (não fica confinado na rede). Os fenômenos de rápida viralização em redes sociais com seus correlatos de desinformação e de ações políticas apressadas – frequentemente retrógradas e violentas – são apenas emergentes de uma profunda transformação das condições de possibilidade do político. Desde espaços políticos do campo popular, urge assumir o desafio de entender essas mediações, não apenas como uma ameaça, mas também como uma enorme oportunidade evolutiva para novos marcos de ação tecnopolítica”.
A proliferação de fakes news que afeta concretamente as ruas do Reino Unido remete à votação pelo Brexit onde se optou por abandonar a União Europeia a partir da difusão de silogismos falaciosos. Muitas vezes a ultradireita se nutre da frustração de trabalhadores com problemas de emprego e habitação. No caso do Brexit, acreditou-se que isso traria maior bem-estar, algo que não ocorreu. Agora, está-se conseguindo levar certas pessoas a acreditar que a origem de seus problemas não era a União Europeia, mas os imigrantes que ficariam com as casas, trabalhos e a segurança social. Na verdade, estão resolvendo um problema de primeiro grau: a taxa decrescente de natalidade na Europa.
Agustín Berti, pesquisador do Conicet sobre tecnologias digitais, explicou à Página|12:
"Os exabruptos de Musk na X não são novidade, mas representam uma mudança de gradação em uma ofensiva contra os sistemas democráticos. Quando ainda era Twitter, após uma postagem, um usuário deu a entender que o bilionário havia apoiado o golpe de Estado contra Evo Morales em 2019 por seu interesse no lítio. A resposta de Musk foi brutal: “Daremos golpe em quem quisermos. Aguente”. Essa cena característica da lógica do escândalo e da transgressão tem sido parte da estratégia de construção de personalidades nas redes sociais. E as novas direitas incorporaram isso ao seu repertório de estratégias comunicacionais. Mas tais declarações transcendem as meras operações de posicionamento e têm sido instrumentais para favorecer a polarização que a dinâmica de fóruns, redes e canais de streaming desdobra. A proliferação de fake news via WhatsApp durante a eleição que coroou Bolsonaro em 2018 são exemplos desse tipo de apropriação tática que as novas direitas fazem das tecnologias. Os distúrbios no Reino Unido são o contexto em que se despliega já uma estratégia de outro nível que evidencia a necessidade urgente de direcionar a dinâmica tecnológica corporativa.
Musk encarna uma figura do novo tipo de empreendedorista influencer. Se antes havia operadores nas sombras como Steve Bannon, agora eles se deixam ver à plena luz, aproveitando a massa de seguidores para torcer o debate público. Ao não acatar o pedido das forças policiais britânicas para apagar fake news, a X desafia a soberania estatal. Qualquer interação de Musk é amplificada pelo poder de propagação digital dentro de um partido desigual no qual o magnata é dono do estádio, do árbitro e da bola. Um sintagma tão breve quanto “guerra civil” se torna uma arma algorítmica perigosíssima no contexto de uma articulação dos discursos digitais e das ações diretas nas ruas, onde as plataformas de internet formam uma logística paraestatal de coordenação de grupos de choque. Estamos diante de um momento crítico do desafio aberto pelas corporações aos estados".
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A cruzada paranoica de Elon Musk - Instituto Humanitas Unisinos - IHU