09 Agosto 2024
“O Ecocídio, o Etnocídio e o Genocídio são armas de destruição em massa que, somadas, anunciam uma civilização que, como imperativo ético, não se sustenta, pois os seus alicerces estão baseados na política da destruição e a morte”, escreve Alfonso Insuasty Rodríguez, professor universitário, membro da Rede Interuniversitária pela Paz – REDIPAZ, em artigo publicado por Desinformémonos, 06-08-2024. A tradução é do Cepat.
No século XXI, os alicerces da hegemonia ocidental estão acelerando o seu colapso, desmoronando-se face a uma política global de destruição. No mundo atual, grande parte da riqueza gerada no hemisfério norte provém da apropriação de rendas da natureza transferidas do sul. Ao longo da história, as elites dominantes e as corporações, apoiadas pelo aparelho estatal, sequestraram o interesse geral para garantir a sua continuidade e privilégios, por meio de estratégias de exploração e atraso dos povos.
Essas práticas permitiram que certos estados, elites e corporações acumulassem riqueza e poder à custa de outros povos e nações. As políticas de expropriação e exploração do ambiente têm sido ferramentas fundamentais para as potências hegemônicos, levando à destruição de culturas, povos e ambiente natural. Hoje, esta lógica persiste, levada ao extremo com o uso de tecnologias avançadas que ameaçam a própria existência da humanidade.
A transferência de riqueza e poder segue a lógica espacial capitalista, afetando tanto os centros quanto os territórios periféricos. A crise da economia mundial evidencia uma tendência crescente de expropriação da periferia, que agora enfrenta desafios como a transição energética, a digitalização, a inteligência artificial e as guerras híbridas. A destruição acelerada da natureza e a violência contra as culturas e comunidades são sintomas de um sistema econômico em crise profunda, buscando perpetuar o seu domínio através da exploração intensiva de recursos e da opressão dos mais vulneráveis.
A civilização ocidental sustenta seu modelo de desenvolvimento em um crescimento ilógico e ascendente, aprofundando a exploração de recursos naturais, mesmo diante dos alertas de relatórios como o do IPCC, que indicam a ultrapassagem do limite de depredação da terra, precipitando uma crise ecológica sem precedentes (IPCC, 2023).
As florestas, fundamentais para o equilíbrio ecológico e a biodiversidade, estão sendo devastadas. O desmatamento e a conversão de terras para a agricultura industrial e a extração de minerais destroem habitats e espécies, comprometendo a capacidade dos ecossistemas de regular o clima e conservar a água (FAO, 2022).
O IPBES Global Assessment Report (2019) indica que aproximadamente um milhão de espécies estão em risco de extinção, muitas delas dentro de décadas. A atividade humana alterou significativamente 75% do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho. Os principais impulsionadores desta perda incluem mudanças no uso da terra e do mar, exploração direta de organismos, mudança climática, poluição e espécies invasoras.
Segundo o Living Planet Report 2022 (WWF), as populações de vertebrados diminuíram em média 69%, desde 1970. As espécies de água doce sofreram uma queda de 83%. Na América Latina e o Caribe, a diminuição foi de 94%. Os fatores desta diminuição incluem a perda de habitat, a superexploração, as espécies invasoras, a poluição, a mudança climática e as doenças.
O relatório Biodiversity and Ecosystem Services (2021) destaca como a perda de biodiversidade afeta as comunidades humanas, especialmente as mais pobres e indígenas, que dependem diretamente da natureza para a sua subsistência e cultura. Esses grupos sentem os impactos de forma mais aguda.
As potências globais, os governos e as entidades internacionais observam com alarmante passividade, enquanto estes processos destrutivos se aceleram (Córdoba e Burbano Narváez, 2023). As terras disponíveis são vistas como os últimos rincões para a exploração, conforme apontado tanto pela FAO quanto pelo Banco Mundial.
O relatório da FAO projeta a necessidade de alimentos para uma população mundial que ultrapassará 9 bilhões, em 2050 (FAO, 2009), e calcula a quantidade de terras férteis que resta disponível. O Banco Mundial, por sua vez, facilita a passagem dessas terras para as mãos de investidores e empresários, sob a lógica da acumulação e da espoliação, garantindo a destruição.
Os povos originários, guardiões de vastas áreas de biodiversidade e conhecimento, enfrentam uma ameaça existencial semelhante à da invasão colonial ocidental, no século XV. No século XXI, prosseguem a marginalização e o extermínio de povos originários, deslocando violentamente comunidades indígenas de suas terras para dar lugar a projetos de desenvolvimento e extração de recursos.
O relatório The State of the World’s Indigenous Peoples (UN DESA, 2021) examina as dificuldades que as comunidades indígenas enfrentam na defesa de seus direitos territoriais frente à pressão da indústria agropecuária, as indústrias extrativas, o desenvolvimento, a conservação e o turismo. Destaca a violação dos direitos a terras e recursos e registra os riscos enfrentados pelos defensores de terras indígenas, incluindo criminalização, perseguição, agressões e assassinatos.
O documento Indigenous Peoples and Local Communities are Essential Partners in Protecting at Least 30% of the Earth by 2030 (National Geographic, 2021) ressalta a importância das comunidades indígenas na conservação da biodiversidade global. Detalha como as terras indígenas têm sido objeto de desmatamento, mineração e práticas agrícolas industriais que deslocam as comunidades locais, e destaca a necessidade de uma mudança transformadora para enfrentar as emergências da biodiversidade e o clima, promovendo um paradigma de conservação que integre e respeite os direitos e a liderança indígenas.
Vários relatórios do Forest Peoples Programme registram casos específicos de espoliação territorial em regiões como a Amazônia e o Sudeste Asiático, fornecendo dados sobre as repercussões de projetos extrativistas e a resistência das comunidades locais. Estes relatórios detalham como as políticas de desenvolvimento e conservação levaram à expulsão e marginalização dos povos indígenas (Forest Peoples Programme, 2023).
O relatório anual da Global Witness Reports intitulado Land and Environmental Defenders registra a violência e os assassinatos de defensores de direitos ambientais e territoriais, muitos deles líderes indígenas. Esses relatórios destacam a impunidade dos perpetradores e o papel das corporações multinacionais em conflitos territoriais (Global Witness, 2022).
Estes relatórios oferecem uma visão abrangente do impacto destrutivo das políticas ocidentais sobre os povos indígenas e o seu ambiente. Os povos originários praticam modos de vida sustentáveis e possuem conhecimentos ancestrais sobre a gestão da biodiversidade, essenciais para a preservação da Mãe Terra. No entanto, a globalização e as políticas neoliberais favorecem as multinacionais que buscam explorar estes territórios, causando um dano irreparável tanto à natureza como às culturas indígenas.
Os povos indígenas lutam há séculos contra a exclusão social e a desigualdade impostas pela sociedade “moderna”. Graças à sua cosmovisão, integram a terra como um ser vivo, a mãe terra. Atualmente, enfrentam a ameaça do desaparecimento cultural, além do físico. Não se trata de fatos isolados, mas de um processo estrutural ligado à apropriação de território e recursos básicos pelas áreas metropolitanas do planeta.
O Ecocídio, o Etnocídio e o Genocídio são armas de destruição em massa que, somadas, anunciam uma civilização que, como imperativo ético, não se sustenta, pois os seus alicerces estão baseados na política da destruição e a morte.
O genocídio do povo palestino, perpetuado ao longo de décadas de ocupação e agressão militar, é um exemplo claro de como as resoluções da Organização das Nações Unidas e os princípios da justiça e da paz global são ignorados. Este desprezo pelos povos envia uma mensagem inequívoca ao sul global e às nações e povos originários: o interesse mercantil e a disputa pelo poder em uma nova ordem geoestratégica estão acima de seus direitos. Essa ofensa gravíssima à humanidade ocorre diante dos olhos do atual conglomerado social, demonstrando o que podem fazer quando decidem (Insuasty Rodríguez, Sudáfrica vs Israel. Desentrañando la batalla legal en medio del genocidio, 2024).
No Congo, os conflitos armados alimentados pela competição por recursos minerais estratégicos resultaram na morte de milhões de pessoas, no deslocamento forçado de comunidades e na destruição do tecido social (Fiore Viani, 2024). Da mesma forma, na Ucrânia, o conflito desencadeou uma crise humanitária com impactos devastadores sobre a população civil, incluindo a comunidade russa que vive nessas terras.
Na Colômbia, um genocídio político contínuo é alimentado pelas mesmas intenções de acumulação e espoliação (Tribunal Permanente de los Pueblos, 2021). Recentemente, a aplicação do caos como instrumento de dominação afetou cidades e comunidades inteiras no Haiti, Equador, Peru e Venezuela. O mais alarmante é que esta estratégia continuará sendo utilizada.
Todos estes casos compartilham a mesma matriz civilizacional, que inclui, em diferentes níveis, a suspensão de normas internacionais, a violação sistemática dos direitos humanos e um claro desprezo pelos povos, suas culturas e a própria vida. Além disso, observa-se uma nula determinação em impulsionar ações climáticas, o que agrava ainda mais a vulnerabilidade dessas comunidades.
Diante deste panorama de destruição e violência, acentua-se a necessidade do surgimento de uma nova ordem global multipolar. Idealmente, esta nova ordem deverá estar baseada no respeito à soberania dos povos, na justiça social e ambiental e na cooperação internacional para a paz e o desenvolvimento sustentável. No entanto, prevemos sérias dificuldades para alcançar este ideal sem uma consolidada organização e articulação de base popular.
É fundamental fortalecer os saberes e as resistências do sul global. As comunidades locais devem ser fortalecidas para defender os seus territórios e modos de vida. A integração de conhecimentos ancestrais com inovações tecnológicas pode oferecer soluções aos desafios ambientais e sociais contemporâneos.
A reflexão e ação coletivas são essenciais para reverter a tendência atual e construir um futuro no qual a humanidade e a natureza possam coexistir em equilíbrio. Esta luta global exige a participação ativa de todos os setores da sociedade, dos movimentos sociais aos governos e organizações internacionais. Entender que a luta eleitoral é uma via de ação, mas não a única, nem a principal, é crucial.
O século XXI nos confronta com a necessidade urgente de repensar a nossa relação com a Terra e entre nós mesmos. Só através de uma mudança radical em nossas estruturas de poder e sistemas econômicos poderemos evitar o colapso e garantir um planeta habitável para as gerações futuras. Em definitivo, a reflexão sobre a exploração histórica e contemporânea da riqueza nos leva a questionar as dinâmicas de poder e as estruturas econômicas que perpetuam a desigualdade e a destruição.
Muitas das respostas para este momento de desesperança estão nos saberes, sentires e cosmovisões de nossos povos originários do Sul Global. A sabedoria ancestral e a visão comunitária dessas culturas oferecem um caminho para a sustentabilidade e a justiça que pode guiar a humanidade em direção a um futuro mais equitativo e harmonioso.
Córdoba, M, y L A Burbano Narváez. “Cambio Climático y Cumbres Globales, entre espejismos y desafíos. Revista Kavilando”. Kavilando 15, nº 2 (2023): 301-313.
FAO. La Agricultura mundial en la perspectiva del año 2050. 13 de octubre de 2009. http://www.fao.org/fileadmin/templates/wsfs/docs/Issues_papers/Issues_papers_SP/La_agricultura_mundial.pdf.
—. The estate of the World´s Forest. marzo de 2022. https://openknowledge.fao.org/server/api/core/bitstreams/f81551bf-0a78-498b-a0a6-17f21467389d/content.
Fiore Viani, Gonzalo. Cinco genocidios actuales: El Congo invisibilizado. 7 de enero de 2024. https://prensacomunitaria.org/2024/01/cinco-genocidios-actuales-el-congo-invisibilizado/.
Forest Peoples Programme. Reports on indigenous Rights and environmental impac. 2023.
Global Witness. Financiando la deforestación: bancos centrales acusados de financiar la destrucción ambiental. 28 de septiembre de 2022. https://www.globalwitness.org/en/campaigns/forests/bankrolling-deforestation/.
Insuasty Rodríguez, Alfonso. El Banco Mundial ha entrado con fuerza al delicado negocio de la alimentación humana. 27 de septiembre de 2019. https://www.kavilando.org/lineas-kavilando/observatorio-k/7224-el-banco-mundial-ha-entrado-con-fuerza-al-delicado-negocio-de-la-alimentacion-humana.
—. Un nuevo etnocidio camina en América Latina. 13 de noviermbre de 2021. https://desinformemonos.org/un-nuevo-etnocidio-camina-en-america-latina/.
IPCC. Informe de síntesis AR6: Cambio climático 2023. 29 de marzo de 2023. https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle/.
Mausseau, F. El mejor postor lo toma todo: el esquema del Banco Mundial para privatizar los bienes comunes. 24 de enero de 2019. https://www.oaklandinstitute.org/highest-bidder-takes-all-world-banks-scheme-privatize-commons.
National Geographic. Indigenous Peoples and Local Communities are Essential Partners in Protecting at Least 30% of the Earth by 2030. 27 de octubre de 2020. https://news.nationalgeographic.org/indigenous-peoples-and-local-communities-are-essential-partners-in-protecting-at-least-30-of-the-earth-by-2030/.
Nuestra América. [Entrevista] Moira Millán, guerrera mapuche, habla de la lucha por el territorio #NuestraAmeric. 8 de mayo de 2022. https://youtu.be/qyLFvVG-6fk.
Tribunal Permanente de los Pueblos. Sentencia Condenatoria del TPP contra Colombia por Genocidio, Crímenes contra la Paz e Impunidad. Texto Completo. 20 de junio de 2021. https://kavilando.org/lineas-kavilando/conflicto-social-y-paz/8549-sentencia-condenatoria-del-tpp-contra-colombia-por-genocidio-crimenes-contra-la-paz-e-impunidad-texto-completo.
United Nations Department of Economic and Social Affairs. State of the World’s Indigenous Peoples. Rights to Lands, Territories and Resources. 2021. https://www.un-ilibrary.org/content/books/9789210054881.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Século XXI: a cara da destruição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU