03 Agosto 2024
"A configuração atual dos sistemas alimentares mundiais é totalmente errada, eu diria criminosa. A cadeia da alimentação é responsável por 37% das emissões de gases de efeito estufa e utiliza 70% da água doce. Além disso, cerca de metade da superfície agrícola global é usada para pecuária ou agricultura de tipo intensivo que dependem de fertilizantes e pesticidas e requerem maquinários agrícolas que usam combustíveis fósseis".
O alerta é de Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (editora Giunti e Slow Food), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 01-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Somos "Homo sapiens": seres humanos sapientes. No entanto, se um alienígena nos observasse do espaço e se detivesse em algumas de nossas características comportamentais, pensaria, por exemplo, que temos as mãos furadas. Digo isso porque, em apenas sete meses, nosso impacto ecológico (ou a nossa pegada) consumiu os recursos naturais que os ecossistemas do planeta têm condições de regenerar ao longo de um ano (no jargão técnico: biocapacidade). Hoje é, de fato, o Dia da Sobrecarga da Terra 2024, o dia em que entramos em dívida ecológica com a Terra e começamos a consumir alimentos, materiais e a emitir gases de efeito estufa referentes a 2025.
E pensar que em 1971, há pouco mais de 50 anos, essa data caiu perto do dia de Natal. Era, portanto, uma situação ideal: a oferta e a demanda de recursos naturais estavam quase em equilíbrio. A duplicação da população mundial (em 1970, éramos cerca de 4 bilhões, hoje somos 8 bilhões), a rápida industrialização de todos os setores da economia e o aumento das exigências, em parte induzido por um marketing frenético que nos convida a consumir cada vez mais, fizeram com que, em apenas meio século, antecipássemos a data em quase 150 dias.
Com nossos paradigmas baseados em uma lógica de extração e um modelo que busca o lucro cego como seu único fim, estamos perpetuando várias formas de injustiça com o meio ambiente e com a própria espécie "sapiens" à qual todos nós pertencemos. Digo isso porque, em um mundo onde tudo está interconectado, é impensável viver bem em um planeta degradado. Ao mesmo tempo, a proteção do meio ambiente não pode ser separada da promoção da justiça social para com os mais frágeis, o nosso futuro, as gerações mais jovens e as que ainda vão nascer, sob pena de vivermos em um mundo pobre e inóspito, onde a escassez crônica de recursos estará na ordem do dia, causando conflitos e sofrimento.
Entretanto, gostaria de deixar claro que meu uso do pronome "nós" não inclui toda a população mundial. Embora seja verdade que, em nível global, é como se estivéssemos usando 1,75 planetas para satisfazer as nossas necessidades, se analisarmos em detalhe cada país, a situação difere profundamente. Vamos tomas o caso da Itália: o dia de superação da Itália este ano foi 19 de maio. Em apenas cinco meses, consumimos todos os bens que a Mãe Terra reservou para nós até 2024. Se todos os habitantes do mundo adotassem os nossos estilos de vida, seriam necessários os recursos de quase três planetas por ano.
Como a Terra, no entanto, é uma só e é compartilhada por 8 bilhões de pessoas, como é possível que, nos últimos 50 anos, tenhamos conseguido viver acima da capacidade oferecidas pelo planeta para nos sustentar? Isso acontece porque vivemos em uma comunidade global profundamente desigual, na qual os chamados países avançados vivem às custas do Sul global, ou seja, consomem (ou melhor, saqueiam) seus recursos para continuar alimentando seu próprio bem-estar material.
Vejamos alguns exemplos: Gana, Indonésia e Guiné terão seu dia de superação este ano em 10, 24 de novembro e 27 de dezembro, respectivamente, ou seja, pelo menos seis meses depois do que nós, na Itália (que, de qualquer forma, globalmente, estamos longe de ser os piores). Não por acaso se trata de países onde a pobreza ainda está amplamente presente, ou onde práticas como a apropriação de terras e a exploração de recursos naturais internos pelo capital estrangeiro (para os mercados estrangeiros) são legitimadas. Esse cenário evidencia a injustiça que governa as sociedades atuais, que estão ainda mais ameaçadas pelo avanço galopante da crise climática que está atingindo e atingirá aqueles que menos contribuíram para causá-la.
Diante dessa situação, se é verdade que cada ação que realizamos em nossa vida diária tem um impacto, há uma que pesa mais do que outras: a alimentação. Na maioria dos países do Norte global, os alimentos que escolhemos e as formas pelas quais chegam às nossas mesas constituem o principal fator de nossa pegada ecológica individual, a ponto de metade da biocapacidade da Terra ser usada para nos alimentar. Isso se deve principalmente ao fato de que a configuração atual dos sistemas alimentares mundiais é totalmente errada, eu diria criminosa. A cadeia da alimentação é responsável por 37% das emissões de gases de efeito estufa e utiliza 70% da água doce. Além disso, cerca de metade da superfície agrícola global é usada para pecuária ou agricultura de tipo intensivo que dependem de fertilizantes e pesticidas e requerem maquinários agrícolas que usam combustíveis fósseis. As cadeias alimentares são cada vez mais longas e fragmentadas. Isso nos torna incapazes de atribuir valor ao alimento e, consequentemente, nos faz sentir no direito de perpetuar o desperdício como nunca antes.
Hoje, 30% dos alimentos produzidos são desperdiçados: uma quantidade que poderia alimentar quatro vezes mais pessoas do que as que atualmente passam fome. Essas disfunções prejudicam a saúde humana e planetária e destacam a urgência de transformar os sistemas alimentares para que sejam mais equitativos e sustentáveis. Reduzir pela metade o desperdício de alimentos em nosso dia a dia, substituir 50% do consumo de proteínas animais por alimentos de origem vegetal e comprar de produtores locais que adotam práticas agrícolas regenerativas são ações concretas que, com um pouco de esforço e boa vontade, todos nós podemos adotar.
A simples ação de reduzir pela metade o desperdício global de alimentos, por si só, ajudaria a postergar em 13 dias o dia de sobrecarga. E podemos considerar que seriam necessários apenas seis a cada ano para voltar a viver dentro dos limites planetários até a metade do século. Vista sob essa perspectiva, a mudança certamente continua sendo ambiciosa, mas certamente está ao nosso alcance. Se nos preocupamos com o futuro de nossa espécie, este é o momento de agir, e como e do que nos alimentamos pode ser o ponto de partida.
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Nós, sapiens vorazes, de mãos furadas não saldaremos a nossa dívida com o Planeta. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU