19 Junho 2024
O texto a seguir é um trecho do livro El Sucesor, resultado de três conversas entre o Papa Francisco e Javier Martínez-Brocal entre julho de 2023 e janeiro de 2024.
A entrevista é de Javier Martínez-Brocal, publicada por La Repubblica, 17-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como foi o seu primeiro encontro com Bento XVI depois da eleição?
Aconteceu dez dias depois, em 23-03-2013. Cheguei a Castel Gandolfo de helicóptero; ele estava me esperando na pista de pouso. Ali também trocamos nosso primeiro abraço. Estava muito frio e Bento vestia um casaco de penas. Oramos juntos em uma capela. Ele queria me dar o lugar de honra, mas o convidei a se ajoelhar comigo no mesmo banco. Ele hesitava, então lhe disse: ‘Somos irmãos’. Saiu assim, do coração. Depois ele me acompanhou até uma sala para conversarmos sozinhos.
Sobre o quê?
Ele se sentou a uma mesa, em cima da qual havia uma grande caixa e uma pasta. ‘Estes são os documentos da investigação’. Ele se referia às conversas dos três cardeais ‘investigadores’ sobre o caso Vatileaks, Jozef Tomko, Salvatore De Giorgi e Julián Herranz, com testemunhas e suspeitos. Herranz é meu grande amigo. Ele acaba de publicar um livro, Dois Papas.
Tenho a impressão de que dois casos faziam parte do escândalo Vatileaks: por um lado, o mordomo que, após ter roubado documentos confidenciais, os vazou para a imprensa; do outro, os “maus funcionamentos” da cúria. Um dia saberemos o que realmente aconteceu?
Havia uma verdadeira camarilha envolvida. Havia quem manobrava, quem enganava... Entre as vítimas estava também o então cardeal Pietro Parolin, queriam impedir a sua nomeação como secretário de Estado. Vou lhe contar uma coisa sobre as pessoas envolvidas: quem erra deve ser perdoado e se segue em frente. Algo bem diferente é o caso dos obstinados. Havia algumas pessoas com funções de segundo plano que estavam bastante envolvidas. Tomko, De Giorgi e Herranz investigaram durante meses e apresentaram as suas conclusões apenas a Bento XVI, sem passar pela secretaria de Estado e sem informar mais ninguém.
Por isso, naquele dia em Castel Gandolfo, Bento quis explicar-me pessoalmente as conclusões a que chegaram os três cardeais. Ele me entregou o material e disse: ‘Substituí essa pessoa, essa outra e essa também. Agora sugiro substituir também ele e ele...’. Ele me contou tudo. Dentro de um período razoável, substituí as pessoas que ele me indicou e também outras com base nas minhas avaliações.
O senhor nos contou que Bento nunca lhe impunha uma solução.
Quando lhe fazia uma pergunta, ele respondia: "Talvez possa olhar também nessa outra direção, manter em mente esse outro elemento". Ampliava o campo. Ele tinha a capacidade de ampliar o olhar para me ajudar a tomar a decisão certa.
Alguma vez teve a impressão de que ele discordava do senhor?
Não. Ele nunca dizia: ‘Não concordo’. Pelo contrário, dizia: ‘Está muito bem. Mas deveria também levar em consideração essa outra coisa’. Ampliava, sempre ampliava.
Tem alguma memória material?
Todas as cartas que ele me escreveu. Guardo todas elas.
Houve tensões com colaboradores que repercutiram no relacionamento entre vocês?
Bem, como você sabe, após a publicação do livro do Cardeal Robert Sarah, em teoria escrito com o Papa emérito, fui obrigado a pedir ao secretário de Bento XVI que solicitasse ‘um afastamento voluntário’ ou ‘licença voluntária’, mantendo o cargo de prefeito da Casa Pontifícia e o salário.
Nos últimos anos compreendi quão grande é a responsabilidade dos colaboradores de cada Papa.
Depois dessa experiência, e de outras, decidi dissolver imediatamente a secretaria papal. Os meus dois secretários também colaboram com outros departamentos e só me ajudam em tempo parcial. Eles ficam comigo por 4 ou 5 anos e depois são substituídos.
Por quê?
Ter um secretário onipotente não é bom. Nunca esquecerei uma anedota. Um bispo que costumava fazer pressão veio me visitar em Buenos Aires e disse que estava prestes a partir para Roma. Trazia uma sacola enorme e eu perguntei: ‘O que você tem aí?’ ‘Dulce de leche para os secretários de João Paulo II. Eles adoram’, respondeu ele. Bem, quando um secretário começa a receber presentes, começo a me preocupar. Às vezes acontece contra a sua vontade, mas tais mimos acabam por condicioná-lo. Ser secretário é muito difícil. Um bom secretário ajuda você sem deixar rastros de si mesmo.
Os últimos meses têm sido difíceis... Algumas das suas decisões foram contestadas, até por alguns bispos, especialmente os mais conservadores. O que não está sendo entendido sobre o seu trabalho?
Realmente não sei o que lhe dizer. Mas acredito que o problema é que, quando eles têm dúvidas, não dialogam. Peço a eles: ‘Perguntem, dialoguem, tragam os problemas reais para Roma, não as hipóteses dos problemas’. Acredito que os problemas devem ser sempre enfrentados com o diálogo (…). Às vezes se fica erroneamente na dúvida em vez de ir pedir explicações diretamente a quem tomou certas decisões.
Como o senhor lida com a situação?
Sinto um pouco. Talvez muitos o tenham dificuldade em compreender o quanto eu possa ser desorganizado, porque realmente sou. Eu deveria ter mais atenção com isso.
Talvez eles preferissem que o senhor ficasse apenas olhando.
Mas um papa não pode ficar imóvel. A Igreja está em caminho e o Papa caminha com a Igreja. Muitas questões dogmáticas e morais foram esclarecidas no último século. Já eram verdades presente, mas que era necessário esclarecer. Hoje dizemos que a pena de morte é imoral, mas dois séculos atrás isso não podia ser dito. Hoje eu digo isso e é aceito sem problemas. Hoje dizemos que a simples posse de armas atômicas é imoral, pelo risco que representam. Antes não podia ser dito. Como você pode ver, há um progresso no conhecimento da moral e da fé. Não é que mudam, algumas realidades simplesmente ficam mais claras.
Quando lhe perguntaram se era conservador ou progressista, o senhor respondeu: “As definições são limitantes. Eu procuro ser não conservador, mas fiel à Igreja e sempre aberto ao diálogo”.
Ser fiel à Igreja pressupõe estar aberto ao diálogo.
No Evangelho há uma promessa de Jesus a Pedro: “Orei por ti”. O que significa para o senhor?
Peço ao Senhor que não me deixe, que não me abandone. Nunca digo a ele para orar por mim, mas para não me deixar. Peço-lhe que me ajude a não criar problemas, mas que me perdoe se isso tivesse que acontecer comigo. Sempre peço ajuda a ele.
Por que na sua opinião Bento XVI renunciou ao papado?
Não é uma hipótese minha, eu sei porque foi ele mesmo que me disse. Uma vez estávamos conversando e surgiu a questão. Bento renunciou por honestidade. Sentia que suas forças o estavam abandonando, e isso era um problema, porque em julho de 2013 teria que enfrentar a viagem ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude. Sua renúncia foi um gesto de honestidade. Não era em nada apegado ao poder. Justamente neste momento estou lendo algumas coisas sobre isso.
O senhor vê mais vantagens ou desvantagens na possibilidade de um papa renunciar no futuro?
Acho que depende de cada um. Agora a porta está aberta. É uma opção que sempre existiu, mas Bento a tornou concreta. Alguns me perguntam se também tenho a intenção de renunciar. É uma possibilidade real, mas no momento não sinto a necessidade.
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“Ratzinger renunciou por honestidade. Depois do caso Gänswein apenas secretários em tempo parcial”. Entrevista com Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU