23 Mai 2024
"Tudo, mesmo as profissões de fé mais sinceras ou as tradições mais nobres dos anciãos, podem transformar-se em trancas que se torna necessário estourar quando está em jogo a vida ou a morte", escreve Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Settimana News, 20-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando Andrea Grillo me pediu para intervir como biblista no livro coletivo Senza impedimenti, recusei o convite. Porque a quantidade de coisas a fazer é um impedimento muito sério, mas também para deixar espaço para uma biblista como Emanuela Buccioni cuja idade atesta sem dúvida que a questão da investigação sobre o dado neotestamentário a respeito do papel das mulheres nas Igrejas originais não pertence aos cavalos de batalha das primeiras exegetas feministas, mas já se tornou um patrimônio adquirido da ciência bíblica.
Tendo sido abordada já há bastante tempo, não se revela de forma alguma um impedimento à solução de problemas atuais. O fato de que para as Igrejas protocristãs, as mulheres tenham passado só progressivamente, embora rapidamente, de ser um recurso a ser um problema, já não deveria escapar a nenhum exegeta nem a nenhum teólogo. E, consequentemente, o tema das possíveis relações entre mulheres e Igrejas pertence à história das comunidades eclesiais e como tal deveria ser sempre abordado.
Para confirmar isso, fiquei muito satisfeita pelo fato de que as três primeiras sessões em que se articulou, por vontade do Papa Francisco, o “seminário de estudos” reservado aos cardeais do C9 tenha positivamente deixado de fora qualquer aprofundamento bíblico para se concentrar em:
1) o arranjo de gênero da Igreja Católica,
2) o confronto com a Igreja Anglicana pela questão dos ministérios,
3) o background, decisivo para a eclesiologia, da relação Igrejas-culturas.
Tudo isso me dá esperança.
Não porque a Escritura não deva ser considerada na origem da Tradição e, portanto, o seu impacto não deva ser considerado fundacional, mas porque isso não entra em conflito com o fato de que, diante de sua progressiva inserção primeiro no judaísmo e depois nas cidades do Império, as Igrejas estabeleceram os seus ordenamentos, embora com modalidades e tons diferentes, em termos completamente compatíveis com as sociedades patriarcais das quais pretendiam fazer parte.
Assim, sinto que também eu posso dar, como biblista, uma pequena contribuição ao debate que se abriu sobre o tema da Tradição-tradições que representam certamente - como sempre, aliás - uma das referências irrenunciáveis para levar a sério as questões que surgem quando se deve e se quer enfrentar momentos importantes de reformas eclesiais.
Para esclarecer que toda a dinâmica interna à história das tradições religiosas exige sempre levar em conta como o mecanismo da transgressão é invocado diversamente por quem tem algum poder sobre o status quo e por quem, ao contrário, sente a necessidade, para não morrer, que aquele status quo são se esclerose, talvez bastaria citar a forte condenação de Jesus contra aqueles que transgredem o mandamento de Deus em nome da sua tradição dos anciãos (cf. Mt 15,1-20).
Na realidade, porém, parece-me ainda mais importante refletir sobre o fato que, para o evangelista Mateus, o debate sobre a tradição que contrapõe o comportamento dos discípulos de Jesus com as regras farisaicas, precede a narrativa de um episódio em que é mais a consideração que o próprio Jesus tem do seu messianismo a ser totalmente questionado pela pretensão da mulher siro-fenícia, que coloca antes de qualquer debate entre mandamento de Deus e tradição dos anciãos a sua necessidade pessoal, inevitável para uma mãe, a cura da filha.
Porque tudo, mesmo as profissões de fé mais sinceras ou as tradições mais nobres dos anciãos, podem transformar-se em trancas que se torna necessário estourar quando está em jogo a vida ou a morte. Não só de uma filha, mas também de uma mãe-Igreja.
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Sobre o diaconato feminino: “transgressão pela vida”. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU