05 Dezembro 2023
"Para alguns, a resposta deve ser reconduzida à natureza exemplar de Maria que, segundo os Evangelhos das origens com que Mateus e Lucas introduzem a sua narrativa evangélica, teria sido ela própria uma 'migrante'", escreve Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Donne Chiesa Mondo, dezembro de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não há dúvida de que a maternidade é um tema teológico: atravessa diversos âmbitos teológicos como a antropologia e a mariologia, a teologia bíblica e a eclesiologia. O mesmo pode ser dito da “maternidade migrante”? O que significa perguntar-se: existe um olhar teológico com o qual seja possível colocar em foco uma das tragédias do nosso tempo. Aliás, como sempre quando se trata de mulheres, uma tragédia ao quadrado: é difícil esquecer imagens de mães que veem morrer no mar seus filhos recém-nascidos, de bebês nascidos em botes salva-vidas ou mesmo de mães que, para salvá-los, entregam seus filhos a alguém que conseguiu um lugar num barco: o que a teologia pode dizer sobre tudo isso?
Como muitas vezes acontece, é necessário primeiro inverter a perspectiva e perguntar-se: o que o drama da maternidade migrante pode dizer à teologia? É uma das grandes e imensuráveis tragédias do nosso tempo que se soma a outras, que já se tornaram permanentes como a guerra e a fome e que, como crentes, nos desafia profundamente. Sabemos bem o quanto os gritos de dor da humanidade são muitas vezes fonte de escândalo para aqueles que acreditaram e esperaram que Deus seja capaz de ouvir o grito do seu povo e conhecer realmente os seus sofrimentos, como disse Moisés (Êxodo 3,7). Desse escândalo, que se traduz em revolta e rejeição, estão repletas as páginas da grande literatura de todos os tempos.
Talvez seja possível, no entanto, seguir outros caminhos. Ou seria melhor dizer, mais modestamente, trilhas.
Menciono duas, sabendo muito bem que não se trata de forma alguma de propor soluções, até porque às vezes pode se tornar quase uma blasfêmia pretender que a reflexão sobre Deus possa se tornar uma espécie de fármaco que tenha, ainda por cima, uma ação tópica.
Uma primeira sugestão chega da leitura de um livro agora decididamente datado, Sisters Rejoice: Paul's Letter to the Philippians and Luke-Acts As Received by First Century Philippian Women, mas daqueles que dificilmente se esquece porque impõe uma conversão decisiva ao nosso ponto de vista. A autora, Lilian Portefaix, biblista da Universidade de Uppsala, propõe olhar para a carta de Paulo aos cristãos de Filipos a partir de uma perspectiva completamente inédita: aquela das mulheres daquela cidade e, em particular, das mulheres para as quais a maternidade representava um verdadeiro drama. Paulo anunciava a alegria da salvação, mas elas viviam a maternidade como um destino social do qual só podiam esperar dor e morte. Estima-se que no século I. a expectativa de vida média de uma mulher era muito baixa e a principal causa de morte era o parto, sem contar o quanto tudo isso afetava também a vida de todas as outras mulheres, mesmo muito jovens, que se viam enfrentando situações familiares extremamente difíceis. O que significa então proclamar o evangelho àquelas cujas vidas estão imersas na tragédia? Existe uma “reserva de alegria” à qual possam aceder também as mulheres para as quais o nascimento de um filho é acompanhado, por exemplo, por uma tragédia como aquela da migração? É uma pergunta que só elas podem responder e, portanto, fazer-se eco para nós daquele anúncio de vida mais forte que a morte.
Uma segunda inspiração chega da decisão do Papa Francisco de introduzir três outras invocações na longa lista das ladainhas lauretanas: além de Mãe da Misericórdia e Mãe da Esperança, ele quis incluir Solacium migrantum (Conforto dos migrantes). Uma invocação que se soma àquelas que celebram Maria não pelo que ela é (Mãe, Virgem ou Rainha), mas pelo que pode fazer. Não é um louvor, mas uma súplica. Não deve surpreender se considerarmos o fato de que a história deste pontificado se cruza dramaticamente com a história de um fenômeno migratório de proporções nunca vistas. O que significa, porém, que Maria possa ser invocada não só como Saúde dos enfermos, Refúgio dos pecadores, Consoladora dos aflitos, Auxílio dos cristãos, mas também como Conforto dos migrantes?
Para alguns, a resposta deve ser reconduzida à natureza exemplar de Maria que, segundo os Evangelhos das origens com que Mateus e Lucas introduzem a sua narrativa evangélica, teria sido ela própria uma “migrante”.
De fato, o primeiro a apresenta, junto com José e o menino recém-nascido, viajando para o Egito para escapar da violência de Herodes e o segundo a descreve sempre viajando, para a casa de Isabel ou para Jerusalém para obedecer ao censo.
Talvez, porém, quando quis que fosse incluída na longa lista da Ladainha de Nossa Senhora a imploração de Maria como Conforto dos migrantes, o Papa Francisco desejou sobretudo que cada vez que o Rosário fosse recitado em qualquer parte do mundo, a maternidade universal de Maria pudesse lembrar aos crentes que o sofrimento das mães migrantes é um sinal que marca a fogo esta nossa época. Podemos invocar a Maria o conforto dos migrantes e fechar os nossos corações, as nossas fronteiras, as nossas igrejas?
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A ladainha de Maria, conforto dos migrantes. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU