"Faz tempo que estudiosos do clima avisaram que estamos num ponto já sem retorno. Talvez ainda tenhamos um pouco de tempo para mudanças radicais no nosso modo humano de viver em sociedade e na relação de cuidado com a natureza", escreve Dirceu Benincá, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB e FURG), campus Paulo Freire-Teixeira de Freitas, Bahia.
Eis o artigo.
No contexto das inundações reincidentes no Rio Grande do Sul, do caos generalizado e das mobilizações locais, nacionais e internacionais para prestar socorro e solidariedade, advém uma série de reflexões e questionamentos. Por que as águas caem de forma intempestiva e sobem tão depressa como em um novo dilúvio? E por que são tão devastadoras quando caem e sobem assim de repente? Quando as águas baixarem e mesmo enquanto elas permanecem caindo e subindo, é tempo (ainda) de pensarmos e agirmos em várias direções. A meu ver, nossas ações devem ser, fundamentalmente, em três níveis.
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Nível imediato: Em forma de resgate de pessoas e animais; oferecendo abrigo e doando gêneros de primeira necessidade; com serviços de apoio psicológico, médico, fraterno, espiritual, etc. Trata-se daquilo sem o qual a tragédia se ampliaria e agravaria. De um modo ou de outro, medidas dessa natureza podem ser e estão sendo tomadas por instituições, grupos, organizações e população em geral. Nesse sentido, a solidariedade está bem aflorada, o que é altamente louvável e humano e faz toda a diferença. Será que desta vez conseguiremos fixar a solidariedade como uma verdadeira cultura, um modo de ser ampliado e duradouro?
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Nível conjuntural: Ser solidário na hora da tragédia é vital, mas não basta. É preciso (re)planejamento urbano sob vários aspectos, incluindo a previsão de desastres, com os devidos sistemas de alerta e orientações de prevenção. Repensar a infraestrutura urbana é prioridade número zero, a considerar que, segundo o IBGE/2022, dos mais de 203 milhões de habitantes no Brasil, 84,72% da população já vive em zonas urbanas, o que ainda poderá aumentar.
Neste nível conjuntural emergem desafios como a criação de mecanismos eficientes de segurança; garantia de recursos para emergências; realocação de residências, de bairros ou até de cidades inteiras, etc. Isso implica um grande dilema, pois ao mesmo tempo em que é algo urgente e envolve muitos recursos, não pode ser feito sem o devido planejamento. Reconstruir no mesmo local, além de oneroso é temerário, pois ocorrências semelhantes poderão se repetir. Então, onde, como e com que recursos reerguer o que foi destruído?
- Nível estrutural e global: As mudanças climáticas e suas consequências diretas e intensas sobre os ecossistemas, a vida humana e as edificações materiais são um fato. Agora estamos numa crucial encruzilhada. Se seguirmos pela via neoliberal, consumista, individualista, predatória e negacionista, as tragédias inaturais, ou seja, produzidas pelo próprio ser humano tendem a ser sempre mais graves e dramáticas. Ainda em 2018, Raymond Pierrehumbert, professor de física da Universidade de Oxford, um dos autores do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) escreveu: “No que diz respeito à crise climática, sim, chegou a hora de entrarmos em pânico”.
Sem deixar de lado as ações no nível imediato e conjuntural, é essencial alargar ainda mais o horizonte. Entre outras medidas, é importante desenvolver uma educação socioambiental crítica e transversal, em todos os níveis e instituições. Repensar o modelo de desenvolvimento em curso, baseando-o na sustentabilidade dos ecossistemas e da biodiversidade, no emprego da ciência e da tecnologia em vista da justiça social, econômica e ambiental. Adequar a legislação e as políticas públicas de proteção do meio ambiente, considerando a realidade do aquecimento global e suas consequências tais como essa que se abate sobre o Rio Grande do Sul
Enquanto as águas caem, sobem e baixam; seja no rigor do frio ou do calor, é imperativo refletir e construir meios para evitar que outras tragédias inaturais e de tamanha gravidade sigam acontecendo. Faz tempo que estudiosos do clima avisaram que estamos num ponto já sem retorno. Talvez ainda tenhamos um pouco de tempo para mudanças radicais no nosso modo humano de viver em sociedade e na relação de cuidado com a natureza. Mas, isso é mais um desejo do que uma certeza!
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Quando as águas baixarem. Artigo de Dirceu Benincá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU