12 Abril 2024
"Seria uma pena se a declaração Dignitas Infinita fosse usada como escudo para fechar-se a qualquer diálogo. Os riscos da dignidade de cada pessoa tornam mais do que necessário o competente aprofundamento das questões e mais que plausível o exercício incansável da paciência argumentativa ao abordar os problemas morais do nosso mundo".
A opinião é do filósofo e teólogo Antonio Autiero, professor emérito de Teologia Moral da Universidade de Münster, na Alemanha. O artigo é publicado por Promundivita, 09-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Já o título da Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé, publicada no dia 8 de abril de 2024 merece uma atenção especial. A razão não é tanto pela sua originalidade, já que não se refere a uma expressão recorrente em textos anteriores do magistério pontifício, mas sim por aquele interessante e provocativo espaço evocativo criado pela figura do infinito, encerrada no adjetivo escolhido para qualificar a dignidade, da qual o documento quer falar.
No próprio tema da dignidade humana, a voz do magistério não é nova. Em particular, com o Concílio Vaticano II (Dignitatis humanae) e em diferentes pronunciamentos no período pós-conciliar, ele havia se expressado sobre o assunto. O documento atual, depois de uma longa fase de preparação que remonta a 2019, retoma na sua introdução (Nr. 1-9) o tema subjacente a esse ensinamento, quase como se quisesse recapitulá-lo e compactá-lo, utilizando também o método da referência abundante a textos magisteriais anteriores e inculcando a ideia de uma continuidade que não deve ser ignorada. Para entrar no tema, também é feito um esclarecimento prévio sobre a amplitude semântica do conceito de dignidade, distinguindo as suas dimensões ontológica, moral, social, existencial, com a clara indicação da importância fundamental da abordagem ontológica.
Esse fator não é marginal, porque na verdade cria tanto a modalidade de leitura quanto a opção interpretativa em que o documento pretende se colocar. Privilegiar o plano ontológico e colocar em conexão com ele os outros planos expressa uma orientação fundacional clara a partir da qual se quer intencionalmente propiciar solidez ao raciocínio, mas do qual também se deve esperar uma inevitável abstração no sistema teorético e uma característica de estaticidade e de estreiteza normativa na consideração de problemas concretos abordadas na parte final do documento. A tais riscos não era possível escapar. Mas o sistema rigidamente ontológico deveria ter sido integrado com uma visão fenomenológica, não menos rigorosa, mas certamente mais calibrada, flexível e promissora do ponto de vista hermenêutico. Precisamente essa abordagem, de fato, ajuda a contextualizar também uma temática tão fundamental, valorizando tanto o seu teor personalista quanto a sua dimensão histórica em que o ser pessoa se realiza, a percepção de dignidade se encarna e a explicitação dos direitos a ela ligados evolui.
Na arquitetura da Declaração, dividida em quatro partes, as três primeiras desenvolvem uma leitura que fundamenta o conceito de dignidade, não ignorando a sua presença tanto na elaboração da filosofia clássica como nas perspectivas bíblico-teológicas da tradição cristã. O confronto com correntes da filosofia moderna é lembrado sucintamente, sem, no entanto, dar a entender a real dimensão do valor que elas têm para a antropologia e a moral. Isso traz (nº 22 e 25) a uma consideração bastante funcional da liberdade, sem expressar a sua densidade fundadora do sujeito e da sua dignidade e sem indicar seu recurso emancipatório, para construir mais humanidade.
Maior atenção à percepção não suspeita da modernidade estaria em boa companhia com a riqueza de significado que a segunda e terceira partes do documento dedicam à reconstrução teológica do tema. O entrelaçamento de criação, encarnação e ressurreição (nº 20) como lugares reveladores da dignidade humana, tece um quadro de sentido para a dignidade, cujo substrato antropológico, por sua vez, é feito de real valorização da pessoa, da sua liberdade e da sua responsabilidade. Para não recair em regurgitações antimodernas, o nexo dignidade-liberdade deve obrigatoriamente ser mantido em seu regime como fator imprescindível e incondicional.
Nesse eixo de pensamento o documento constitui o ponto de partida para um precioso instrumento de diálogo com a cultura moderna, nas suas articulações filosóficas e antropológicas. De fato, colocar o tema da dignidade no centro do confronto com o mundo secular é uma formidável oportunidade de enriquecimento mútuo; apreciar e valorizar de efetivamente o caminho que a humanidade faz na percepção da dignidade de cada pessoa e dos seus inalienáveis direitos é uma condição indispensável para a igreja.
Por outro lado, é importante que a igreja preste contas – e o documento contribui intencionalmente a isso – do caminho que ela mesma, ao longo dos séculos, percorreu e ainda pretende fazer no reconhecimento da centralidade da dignidade de cada pessoa. Mas isso também exige consciência crítica em não ignorar resistências e lentidões com que determinados processos de emancipação foram sobrecarregados e atrasados pela perspectiva de uma antropologia cristã abstrata e separada da realidade. A ênfase certamente significativa (n. 17-21) no tema da dignidade em conexão com a ideia do homem como imagem de Deus adquire autenticidade e força, se não for esquecido o conturbado caminho que foi necessário para ser efetivamente considerada atribuída a cada ser humano. O adjetivo “infinita” no título não significa apenas que a dignidade não tem limites e não tem condições, mas também afirma que o seu reconhecimento está ligado a um esforço e a uma tarefa que ainda não terminaram e nunca terminarão. Nesse sentido a categoria de dignidade não pertence à esfera de uma norma definida de avaliação moral, mas estabelece um horizonte aberto de sentido e constrói uma heurística de orientações para discernir criativamente a realidade e para decidir como agir. Pensar na dignidade como a um princípio gerador de movimento e não como a uma barreira definida de uma vez por todas no seu rigor normativo significa, na verdade, manter aberto o leque de reconhecimento da realidade e de sua própria complexidade, sabendo orientar-se discursiva e dialogicamente para as escolhas morais a serem feitas.
No tema da dignidade, devem ser combinados seu valor fundador do horizonte de sentido e sua contribuição heurística para as decisões morais, onde o elo de ligação é dado pela densidade/dignidade da pessoa, pela sua responsabilidade pela liberdade própria e alheia. Se esse equilíbrio for quebrado, o conceito de dignidade torna-se um postulado com o qual se acredita poder resolver, sem as devidas mediações, as questões morais iminentes.
O documento alinha os três primeiros capítulos de caráter fundamental com um quarto capítulo no qual diversas áreas de temáticas éticas concretas são relacionadas ao tema da dignidade. Os treze temas abordados vão desde as problemáticas da pobreza, guerra, migração, abusos sexuais, violência contra as mulheres, tráfico de seres humanos, aborto, barriga de aluguel, eutanásia, tratamento de pessoas com deficiência, teoria de gênero, mudança de sexo, violência digital. A evidente amplitude dos temas atesta uma sensibilidade ética muito ampla, a que o magistério do Papa Francisco soube educar-nos. É capaz de debruçar-se sobre dimensões pessoais, interpessoais, sociais e estruturais das questões morais do nosso tempo, com o objetivo de trazê-las de volta à questão radical da dignidade humana ameaçada ou espezinhada.
Porém, no quarto capítulo do documento há uma heterogeneidade das questões – não apenas em termos de dimensões, mas também de complexidade – o que leva a simplesmente mencioná-las nas breves seções dos parágrafos a elas dedicados, a tal ponto que tanto a estrutura argumentativa quanto o efeito das formulações normativas resultam mortificadas. Há uma redução por vezes simplista das problemáticas e uma falta de elaboração discursiva que faz resultar o juízo moral apodítico. Além disso, devido à opção ontológica do fundamento da dignidade acima mencionada, os juízos normativos da última parte acabam sendo construídos com lógica principialista e dedutiva. O recuso a clichês, sem um adequado aprofundamento das questões impressiona negativamente e levanta a questão sobre o real respeito da condição existencial – e, portanto, da dignidade – dos sujeitos envolvidos (como no caso da passagem sobre a mudança de sexo, no 60º). Mas também os parágrafos dedicados à gestação por substituição (nº 48-50) e à teoria de gênero (nº 55-59) revelam uma consideração limitada da complexidade das questões.
Para a primeira expõe-se a uma recusa moral de curto-circuito argumentativo, sem qualquer diferenciação tipológica de fato em questão e com o pedido de proibição em nível universal (nº 48) que se presta a desígnios reacionários, ventilados nos programas políticos de muitas partes do mundo. Para a questão do gênero permanece-se numa compreensão parcial da mesma, fechados a qualquer esforço de aprofundamento das articulações tão diversificadas que há tempo os Estudos de Gênero nos têm fornecido e documentado. A linguagem rígida e severa com que o documento se expressa (basta considerar que é a única passagem em que se utiliza um adjetivo de avaliação moral no superlativo “teoria perigosíssima” – nº 56) sugere uma rigidez de juízo definitivo e irreformável.
Isso é ainda mais surpreendente se considerarmos que justamente nesse mesmo momento está sendo publicado o mais recente livro de Judith Butler, a autora mais representativa dos estudos de gênero, com o título Quem tem medo do gênero? (Farrar, Straus & Giroux, Nova York, 2024). Ela se pergunta por que há tanto medo em torno do tema gênero e lança um apelo à possibilidade de discussão e diálogo sobre esses temas, justamente para não cair em concepções pré-concebidas, construídas e enfatizadas sem o conhecimento adequado das questões em pauta.
Seria uma pena se a Declaração Dignitas Infinita fosse usada como escudo para fechar-se a qualquer diálogo. Os riscos da dignidade de cada pessoa tornam mais do que necessário o competente aprofundamento das questões e mais que plausível o exercício incansável da paciência argumentativa ao abordar os problemas morais do nosso mundo.
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Dignitas Infinita, um comentário. Artigo de Antonio Autiero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU