12 Abril 2024
Um novo documento do Vaticano defende as pessoas transgênero, rejeitando ao mesmo tempo a “teoria de gênero”, e enfatiza que aquelas pessoas cuja dignidade está ameaçada incluem todas aquelas ameaçadas pela pobreza, discriminação, violência e abuso, assim como os nascituros e os idosos.
O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente em português é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.
O artigo foi publicado por The Tablet, 11-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Entre aquelas pessoas na Igreja que atendem gays e transexuais, o nervosismo ficou à flor da pele antes da publicação do documento doutrinal de Roma sobre a dignidade humana, divulgado na segunda-feira. Ele ficou cinco anos em gestação, o que significa que antecede a reforma do dicastério doutrinal do Vaticano em 2021 e a nomeação como seu prefeito, no ano passado, do confidente de Francisco, o cardeal Víctor Manuel Fernández.
Mas o que mais os preocupou foi o que o Papa Francisco disse em março em um congresso em Roma intitulado “Homem-mulher: imagem de Deus”. Ele disse aos delegados que tinha pedido alguns estudos sobre a ideologia de gênero, “essa ideologia feia do nosso tempo, que apaga as diferenças e torna tudo igual”.
Assim, quando foi anunciado que o Dicastério para a Doutrina da Fé abordaria a questão em seu novo documento sobre a dignidade humana, muitas pessoas que passaram anos construindo pontes com a comunidade LGBT se prepararam para o que poderia vir.
O receio delas era de que fosse lançada uma grande denúncia do Vaticano sobre a ideologia de gênero por certos partidos da Igreja – guerreiros culturais dos Estados Unidos, alguns patriarcas do Oriente Médio e bispos da África e do Leste Europeu – contra pessoas gays e trans, legitimando a hostilidade e o preconceito contra elas.
Como pude constatar pessoalmente na assembleia sinodal de outubro passado, muitas autoridades da Igreja na África e no Oriente Médio afirmam que a homossexualidade não existe de fato e é uma criação de uma “ideologia de gênero” imposta pelo Ocidente colonial liberal (o cardeal Fridolin Ambongo, presidente do órgão episcopal africano Secam, cita regularmente Vladimir Putin para defender esse argumento).
Isso está muito longe do ponto de vista de Francisco, que parte da realidade da homossexualidade como uma variante cromossômica da natureza: ele diz regularmente às pessoas que Deus as fez assim. Ele utiliza a “ideologia de gênero” especificamente para descrever a noção de que a dicotomia homem-mulher não é fixa e de que as pessoas podem “escolher” seu gênero, que pode ser composto por fragmentos de ambos os sexos; e de que essa é a visão imposta ao mundo em desenvolvimento pelas agências ocidentais.
O documento repete essa advertência, mas evita o termo “ideologia de gênero” usado pelo papa em favor da “teoria de gênero”, que, como diz o texto, é objeto de um considerável debate entre especialistas científicos, mas, em seu cerne, corre o risco de “negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual” [n. 58].
Para tranquilizar um amigo em uma pastoral LGBT preocupado com o documento, sugeri que o que Francisco procurava fazer era defender os direitos e a dignidade das pessoas gays e transexuais, rejeitando ao mesmo tempo uma ideologia falsa e perigosa que pretende fazer avançar sua causa. Era um pouco como os papas do início do século XX, disse eu, que eram defensores apaixonados dos direitos dos trabalhadores, mas categóricos na denúncia dos erros doutrinais do comunismo.
Eu estava certo ao estar tranquilo ou os medos do meu amigo se concretizaram? A primeira surpresa é que você terá que passar por grande parte do documento Dignitas infinita para descobrir. Apenas em cinco dos 63 parágrafos são mencionadas a “teoria de gênero” e a “mudança de sexo”, tal como a 11ª e a 12ª das 13 “graves violações da dignidade humana” referidas na parte final do documento (as outras são a pobreza extrema, a guerra, o sofrimento dos migrantes, o tráfico de pessoas, os abusos sexuais, as violências contra as mulheres, o aborto, a chamada “barriga de aluguel”, a eutanásia e o suicídio assistido, o descarte das pessoas com deficiência e a violência digital).
A segunda surpresa é que a ideologia de gênero é tratada de forma categórica, mas dificilmente abrangente – e muito menos detalhadamente do que no documento de 2019 da Congregação para a Educação Católica intitulado “Homem e mulher os criou”, que Dignitas infinita mal reconhece.
Na coletiva de imprensa de segunda-feira, o cardeal Fernández ressaltou que cada um dos temas merece um documento completo por si sós, e que Dignitas infinita simplesmente esboça diferentes ameaças à dignidade humana no mundo de hoje. Seu principal objetivo, em vez disso, é oferecer em um único texto uma síntese do ensino central da Igreja sobre a dignidade humana, sobretudo tal como ele se desenvolveu neste pontificado: o Papa Francisco, observa o prefácio, pediu explicitamente que o documento pudesse “evidenciar no texto algumas temáticas estreitamente conexas ao tema da dignidade, como por exemplo o drama da pobreza, a situação dos migrantes, as violências contra as mulheres, o tráfico de pessoas, a guerra e outras”. Dignitas infinita, dessa forma, capta muito bem o modo como este pontificado enfatizou tais tópicos tanto como preocupações católicas centrais quanto a defesa daqueles que estão morrendo ou que ainda vão nascer.
A novidade, disse Fernández, foi organizar esse ensino em torno um eixo central da dignidade intrínseca (o documento chama-lhe “ontológica”) que está “além de todas as circunstâncias”, porque foi concedida pelo nosso amoroso Criador; e desenvolver o argumento a partir daí. Por isso o título, retirado de uma mensagem que São João Paulo II enviou às pessoas com deficiência em 1980, em Osnabrück, Alemanha: de que Deus ama todos os homens e as mulheres com um amor infinito que, assim, lhes confere uma “dignidade infinita”.
O que a declaração procura mostrar, diz Fernández no preâmbulo, é que o respeito pela dignidade humana, independentemente das deficiências das pessoas, é a “condição fundamental para que as nossas sociedades sejam verdadeiramente justas, pacíficas, sadias e, por fim, autenticamente humanas”. É a chave para a fraternidade humana.
O documento distingue quatro formas de compreensão da dignidade humana: ontológica, moral, social e existencial. A mais importante é a primeira, que é indelével; nós a temos porque Deus desejou a nossa existência e nos ama.
A dignidade moral refere-se à forma como nós usamos a nossa liberdade, em consonância ou não com essa dignidade; podemos perdê-lo pela forma como agimos.
A dignidade social refere-se às nossas condições de vida; algumas pessoas são forçadas a viver em situações que contradizem sua dignidade inalienável, mas, com isso, não perdem sua própria dignidade.
A dignidade existencial, por sua vez, é especialmente relevante hoje em dia para os debates sobre as leis que permitem o suicídio assistido: as pessoas podem não sentir falta de dignidade em suas condições de vida, mas, mesmo assim, lutam com o sofrimento ou com a solidão; elas ou aquelas pessoas que as rodeiam podem dizer que, portanto, lhes falta uma “dignidade de vida”.
O documento esboça o desenvolvimento da compreensão da dignidade humana na e a partir da Bíblia, nas ações e opções do Deus de Israel e, acima de tudo, de Jesus. Mostra como as implicações disso continuaram avançando por meio da metafísica medieval e do humanismo renascentista. A compreensão cristã moderna de que as pessoas são ainda mais dignas de respeito e amor quando são fracas ou sofredoras “mudou o rosto do mundo” [n. 19], diz o documento, dando origem a instituições que cuidam dos desfavorecidos.
Dignitas infinita passa então a criticar entendimentos errôneos da dignidade “pessoal”: a ideia de que uma pessoa carece de dignidade se for nascitura, deficiente ou dependente, tornando assim a dignidade dependente de uma ideia errada do que os seres humanos são. Da mesma forma, Dignitas infinita rejeita “uma multiplicação arbitrária de novos direitos” [n. 25], muitos deles em desacordo com os estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que celebrou seu 75º aniversário em dezembro passado.
Algumas dessas reivindicações identificam a dignidade com “uma liberdade isolada e individualista, que pretende impor como ‘direitos’, garantidos e financiados pela coletividade, alguns desejos e algumas propensões subjetivas”. O erro aqui é desenraizar a compreensão da dignidade do caráter doado da “natureza humana possuída em comum”, desrespeitar a criação e suas leis inerentes, e ver a dignidade como uma espécie de emancipação individualista da comunidade e de suas obrigações de servir aos outros.
Assim, o documento chama a atenção do movimento pelo suicídio assistido devido a seu uso do termo “morrer com dignidade”: a dor e o sofrimento não fazem com que uma pessoa perca sua dignidade; assim como ajudar uma pessoa a tirar sua vida também não ajuda a recuperá-la. Mesmo que a pessoa que sofre o deseje, ajudá-la a tirar a própria vida é “uma ofensa objetiva contra a dignidade da pessoa que o pede”, assim como de todos nós, pois “a dignidade de cada um, ainda que fraco ou sofredor, implica a dignidade de todos” [n. 52].
Quando finalmente chega à teoria de gênero, o documento começa afirmando a dignidade ontológica de cada pessoa, qualquer que seja sua orientação sexual, e deplora a forma como as pessoas gays e trans (embora não utilize esses termos) são discriminadas e maltratadas em todo o mundo. Na coletiva de imprensa, o cardeal Fernández disse que a posição da Igreja contra a criminalização da homossexualidade era clara, e afirmou que ficou chocado ao ouvir católicos elogiarem os regimes de linha dura a favor das leis contra os homossexuais: eles tinham um entendimento profundamente deficiente da compreensão do Evangelho sobre a dignidade humana, disse. Questionado sobre a descrição da homossexualidade no Catecismo como “intrinsecamente desordenada”, ele disse que o termo era forte, precisava de muitas explicações e que “outras palavras” poderiam ser encontradas para distingui-lo do “mistério único” de uma união homem-mulher capaz de gerar uma nova vida.
Essa união na diferença sexual é o que Dignitas infinita defende como divinamente ordenada. Assim, embora aceite a distinção conceitual entre o sexo biológico e a noção cultural de gênero, Dignitas infinita rejeita firmemente qualquer tentativa de dissociar os dois. Ao “querer dispor de si”, a teoria de gênero sucumbe à “antiquíssima tentação do homem que se faz Deus” [n. 57] em vez de aceitar a natureza dada pela Criação. A polaridade homem-mulher é “fundante” e “insuprimível”; é “a mais maravilhosa reciprocidade”, capaz de gerar uma nova vida, intrínseca ao ato divino da criação; somente reconhecendo e aceitando essa “diferença na reciprocidade” cada pessoa pode descobrir sua dignidade e identidade [nn. 58-59]. “Daqui deriva que qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção”, continua o documento, observando que, embora possam ser necessários procedimentos médicos para resolver “anomalias dos genitais”, tais procedimentos não constituiriam uma “mudança de sexo” [n. 60].
Esses parágrafos foram imediatamente rejeitados pelo New Ways Ministry, com sede nos Estados Unidos, por considerarem que aderiam a “uma teologia ultrapassada de essencialismo de gênero”. Ao se reduzir o gênero a apenas homem-mulher, diz a declaração, não se respeitou a plena dignidade das pessoas “não binárias”, assim como a “experiência” delas. No entanto, o que é essa experiência? A disforia de gênero (uma condição muito rara e dolorosa) lança pouca luz sobre as afirmações da teoria de gênero que, como mostrou o artigo de Maggie Ferguson na semana passada sobre o desastre de Tavistock, tem frequentemente criado estragos nas vidas de jovens vulneráveis, angustiados com sua identidade por razões que não deveriam levar a cirurgias em seus órgãos.
Mas tudo isso vai além do âmbito de Dignitas infinita, que não se parece com o “estudo” que Francisco pediu. É necessária uma argumentação teológica muito mais abrangente, que assuma as melhores evidências da ciência e das reivindicações da teoria de gênero, ao mesmo tempo que envolve a experiência dos católicos que afirmam ser transgêneros.
Embora surpreso diante de quão pouco o documento realmente dizia sobre a teoria de gênero, penso que estava certo ao prever que ele não ofereceria nenhum socorro aos guerreiros culturais. Mas meu amigo não está convencido. Ele acha que o documento “abre espaço” a bispos e outras pessoas que querem condenar e excluir pessoas trans vulneráveis.
Se ele estiver certo, pelo menos eles não poderão fazer isso agora sem serem julgados por um ensino central da fé cristã, reafirmado solenemente por Roma, que deriva do amoroso ato criativo de Deus.
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Dignidade ilimitada. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU