03 Agosto 2023
Base na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a dignidade é um conceito muito utilizado, mas pouco debatido do ponto de vista filosófico. Javier Gomá (Bilbao, 1965) considera que é uma ideia muito construtiva para uma época desconstrutiva. Para Adela Cortina (Valencia, 1947), é o núcleo da ética de uma cidadania cosmopolita.
Em um diálogo no Ateneo de Madrid, moderado por Pedro López Arriba, os dois filósofos esmiuçaram os pontos que permitem entender o que implica cada visão e seus pontos de encontro e divergências.
A compilação do diálogo é de Carmen Gómez-Cotta, publicada por Ethic, 31-07-2023. A tradução é do Cepat.
A dignidade pode ser entendida como o limite do que é moralmente admissível?
Adela Cortina: A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 se fundamenta na dignidade. Este é o fruto não só da reflexão daqueles que escreveram o texto, mas de toda uma história da humanidade de sofrimentos e desencontros e da experiência de que os seres humanos têm dignidade e não um simples preço.
Quando a Espanha começou a mudar para a democracia, [contribuí] com o pensamento de que, sim, podia existir uma ética que fosse comum a todos os espanhóis. Fui à Alemanha estudar Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas para ver se poderia existir um fundamento para essa ética que também fosse filosófica, e descobri que, sim, havia uma ética que poderia unir todos os espanhóis, que é o que eu chamo de “ética mínima”, e que teria por base o conceito de dignidade humana.
A chave é respeitar essa dignidade. E respeitar quer dizer não instrumentalizar os seres humanos, nem com vistas à política, nem ao dinheiro, e sim fortalecê-los para que possam seguir em frente. Porque, como dizia Kant, possuem dignidade e não um simples preço.
A dignidade é o núcleo da ética que deveria ir construindo uma cidadania cosmopolita; uma ética na qual todos os seres humanos sejam reconhecidos como cidadãos de nosso mundo. Nesse sentido, a dignidade não é apenas uma palavra-chave, mas uma experiência que é preciso proteger, apoiar e fomentar. Caso contrário, [nesses tempos] de polarizações e pós-verdade, podemos nos perder.
Você, Javier, encontrou na dignidade algo a mais do que o limite do que é moralmente admissível.
Javier Gomá: Escrevi Dignidad porque percebi que o conceito me prendia cada vez mais a atenção. Decidi ler o que há sobre dignidade, um princípio revolucionário da sociedade do século XX que, além disso, está na boca de todos. E minha surpresa foi que não há nenhum tratado em que a dignidade seja o objeto fundamental da filosofia. Kant lhe dedica alguns parágrafos em vários livros, mas não é um autor da dignidade e seu conceito. Tocado por resquícios aristocratizantes, possui algumas conotações muito semelhantes a outras que utiliza com maior rigor, sistema e profundidade.
Definitivamente, é algo que todos sentem, mas ninguém define. [Os temas relacionados à dignidade] versam sobre a história da dignidade, o âmbito jurídico, como fundamento dos direitos fundamentais, e o âmbito da bioética, a dignidade no princípio da vida (aborto) e no final (eutanásia). Estabelece-se um conceito filosófico da dignidade, mas quando você se aproxima do fundamento, não a comentam no objeto da reflexão filosófica.
Por que sendo um princípio que articula a nossa sociedade contemporânea, está ausente da reflexão filosófica? É um conceito muito construtivo para uma época desconstrutiva.
Não há um filósofo da dignidade do século XX e, no entanto, em seu nome ocorreram as grandes revoluções sociais do século, que têm a ver com a intuição de que todo ser humano, por tal condição, possui a mesma dignidade. De tal modo que os traços que no passado fundavam dignidades se tornam acidentes pouco significativos. Todo o resto decai, sendo a única coisa significativa o fato de que o ser humano está dotado de uma dignidade incondicional.
Contudo, também dá no mesmo – algo que Kant não viu – que você tenha um comportamento moral ou imoral, porque mesmo aquele que com seu comportamento faz um uso indigno de sua liberdade, possui dignidade. Para mim, a dignidade é uma qualidade que todo ser humano possui, em virtude da qual se torna credor e o resto da humanidade devedora de um respeito; resistência, um princípio antiutilitário – Aristóteles, na Política, define que o particular está subordinado ao geral e foi assim ao longo de toda a antiguidade, até a recuperação do conceito moderno de liberdade individual e dignidade, que diz que o particular cede ao geral, mas que o geral cede à dignidade individual – e, como estorvo, um princípio anticoletivo.
Não podemos invocar a felicidade do grupo maior para estorvar ou destruir a dignidade do indivíduo. E a dignidade resplandece, sobretudo, nos mais fracos, porque se observa que são dispensáveis, que estorvam e esse estorvo é uma excelência.
Adela Cortina: Não concordo com a interpretação kantiana, parece-me realmente injusta. Eu entendo que a ideia de dignidade tem uma longa história e na cultura ocidental vem, ao menos, desde os estoicos. Penso que essa ideia nasceu justamente quando fomos percebendo que os seres humanos são capazes de conduzirem a própria vida. Essa seria a chave que tem a ver com a liberdade.
Como dizia Sêneca, o homem é o artesão de sua própria vida e isso lhe confere uma dignidade que o coloca acima dos outros seres. Isso é, precisamente, o que faz com que estejamos todos dentro de um mesmo mundo, esse cosmos do qual todos fazemos parte. Aí nasce a ideia do cosmopolitismo: um mundo em que todos esses seres que têm razão e emoção possam juntos fazer essa história.
Então, dignidade e liberdade são a mesma coisa? A dignidade é o fundamento da liberdade? Possuem a mesma relação?
Adela Cortina: Eu gosto muito de “autonomia”. A liberdade é dita de muitas maneiras. Ao longo da história da filosofia política, foi possível dizer liberdade como independência, mas eu gosto dela como autonomia. A autonomia que vem de toda essa tradição, que quer dizer que cada um de nós pode construir a sua própria vida.
Há uma diferença entre autonomia e idiossincrasia. Esta última busca dizer que eu sou capaz de agir não por leis naturais, mas por minhas próprias leis individuais, meu próprio interesse pessoal. Alguém pode conferir uma lei a si mesmo, mas esta é a de seu próprio desejo ou de seus próprios impulsos. No entanto, a grandeza da autonomia é que temos a capacidade de nos dar leis que desejaríamos para toda a humanidade. Essa é a chave da liberdade entendida como autonomia. E essa é a ideia na fundamentação da metafísica dos costumes, quando aparece a ideia da universalização.
Você gostaria de viver em um mundo em que todos mentissem, todos matassem? Em que a fraude fosse o pão nosso de cada dia? Tive um debate com Javier Muguerza em que ele dizia que é necessário defender a ideia de resistência, mas não de universalização. Para mim, o importante é essa capacidade do ser humano de poder agir por uma lei que universalizaria e a colocar diante dos próprios desejos. Essa é a ideia de liberdade, que me parece extraordinária e está estreitamente ligada à dignidade.
E é justamente nesses parágrafos onde Kant fala dessa ideia de liberdade como autonomia, de onde retira a ideia de dignidade: no reino dos fiéis, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que não possui equivalente, porque tem um valor superior a qualquer outra coisa, não pode ser trocado por um preço, porque não tem preço, mas dignidade. Isso é dito no século XVIII, quando o capitalismo está em alta e tudo se converte em mercadoria, então, parece-me grandioso.
Nesse sentido, penso que liberdade e dignidade são duas faces da mesma moeda. A liberdade pode ser entendida de muitas maneiras, mas é como autonomia que realmente pode ser efetivada em uma sociedade democrática, quando assume uma dimensão política. Quando na Declaração Universal dos Direitos Humanos se apresenta a ideia de dignidade, baseiam-se em que os seres humanos são capazes de ser autônomos e de conferir leis a si mesmos.
Javier Gomá: Quando li Kant atentamente, vi que tinha dois problemas. Primeiro, não estuda suficientemente o problema conflituoso da dignidade: o que acontece quando ela se choca com a universalidade? A dignidade é esse princípio essencialmente antimajoritário. Quando falamos do princípio majoritário da democracia, alguém estudou a tirania da maioria. O princípio de resistência frente à possível tirania da maioria é que o indivíduo possui uma excelência que em nenhum caso pode ser atropelada, nem mesmo em nome da universalidade e do bem comum ou da ideia de progresso, porque é algo que se apresenta como resistência.
Segundo, às vezes, torna-se devedor de sua época, possui alguns resquícios aristocratizantes: há dignidade na medida em que o homem e a mulher têm moralidade. Então, o que acontece com aqueles que não a tem? Possivelmente, Kant considerasse que não são dignos de possuir dignidade e, no entanto, a grande intuição do século XX é que, independentemente do comportamento moral, esse homem e essa mulher a possuem.
Cheguei à conclusão de que a história da dignidade tem apenas duas etapas: a época pré-moderna e a moderna. Na primeira, o que prevalece é o conceito de dignidade do todo, do cosmos. Sêneca considera que o digno é aquele que participa da totalidade – chame-a natureza, cosmos ou Deus –, mas não concebe uma dignidade individual em conflito com a totalidade; isso é moderno.
No entanto, ocorre uma guinada em virtude da qual um membro desse cosmos se emancipa e se constitui em uma nova totalidade. Esse membro, antes dócil ao todo e agora emancipado dele, é a subjetividade moderna. Em Dignidad, utilizo este conceito para descrever o estado agônico, que é essencialmente trágico da condição humana: esse indivíduo sente que possui uma dignidade infinita, como a que Kant poderia definir, que o converte em algo diferente do resto das coisas existentes. A natureza fez uma exceção ao humano e o dotou de uma excelência extraordinária, tem uma dignidade infinita, diferente de todos os outros entes da realidade.
No entanto, a natureza lhe imprime a mesma indignidade do mosquito, que é o cadáver, a coisificação; a experimentação da indignidade do humano, possuidores de uma dignidade infinita, mas sujeitos à indignidade da mariposa. Essa é a condição moderna que explica o profundo mal-estar e a necessidade de que substituamos o conceito de felicidade, sempre condicionado à reunião de alguns bens, pelo de dignidade, que é o conceito fundamental da ética moderna.
Como diz o próprio Kant: não se trata de ser felizes, mas de ser dignos de ser felizes. A dignidade é o bem verdadeiramente universal. Há uma dignidade ontológica, que tem a ver com a liberdade e pode ser o fundamento dos direitos fundamentais, mas também uma dignidade pragmática, que interpela a consciência, dado que se possui uma excelência, para que seja feito o uso da liberdade de forma que se faça justiça à dignidade ontológica do ser humano. A liberdade, portanto, tem a ver com a dignidade tanto ontológica quanto pragmática.
Adela Cortina: O universalismo não enfrenta o princípio da maioria, porque são dois âmbitos distintos. Por um lado, quando se está dizendo que vou agir pelo que eu universalizaria, não estou me submetendo ao critério da maioria, em absoluto. Lembro-me que quando surgiu a maioria, dizia-se que o importante é como se consegue, mas isso é no campo da política. No campo moral, agirei de acordo com minha consciência. Tenho que pensar no que eu universalizaria, no que seria bom para a humanidade. É isso o que autonomia pretende dizer. Não que eu vá me submeter ao critério da maioria. As duas coisas são completamente diferentes.
Não há aristocratismo algum, mas todo ser humano, quando tratado com cuidado e delicadeza, quando empoderado, pode conduzir sua vida e decidir por si mesmo o que universalizaria. Dois princípios, sobretudo: não instrumentalizará, mas, sim, empoderará as pessoas, para que possam levar adiante razões para valorizar, para decidir a felicidade. E esse é o dever da sociedade, empoderar as pessoas para que possam levar adiante seus projetos de vida. Um mundo em que cada pessoa possa levar adiante seus projetos de vida seria um mundo mais justo e mais feliz.
Javier Gomá: Na leitura que fiz de Kant, retomo algumas citações onde se diz que para ele a dignidade está baseada na qualidade moral. Não faço uma interpretação de sua própria visão da dignidade, mas do que leio em Kant. Para mim, como não poderia ser diferente – posto que vive no século XVIII e ainda não há a evidência sentimental da beleza, justiça, igualdade –, ele tem resquícios de que o verdadeiramente digno é o agente moral.
A grande intuição do século XX é que a dignidade advém de todo homem e de toda mulher com absoluta independência da moralidade. Além disso, para mim, há um problema em Kant e a dignidade: não a relaciona com a morte. Ou seja, não tem uma visão trágica da dignidade. O que acontece quando uma ou várias pessoas chegam a uma conclusão, mesmo de boa-fé, de que certos valores são universais? Como acontece, hoje, na China, por exemplo, onde o patriotismo do coletivo é tudo e, no entanto, esses planos de universalização colidem com a dignidade individual.
Na prática, a dignidade costuma ser delineada como resistência ao mal, mas também ao bem. Não na mesma pessoa, claro. Em uma mesma pessoa, aspirará à universalização, mas o que acontece quando um grupo de pessoas chega a uma conclusão sobre valores universalizáveis que inclui o sacrifício da dignidade individual? É aí que a dignidade reluz em particular, porque quando a dignidade de todos é compatível com a universalidade, praticamente não conta, tudo é harmônico. Ao contrário, quando a dignidade é resistência, estorvo, é quando adquire força especial.
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A origem da dignidade: diálogo entre Adela Cortina e Javier Gomá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU