06 Abril 2024
"Em um novo livro revelador, o Papa Francisco não só fala abertamente sobre sua relação com o Papa Bento XVI, mas também sugere uma chave para entender a relação entre todos os pontificados".
O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente em português é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.
O artigo foi publicado em The Tablet, 04-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode ser difícil acompanhar o fluxo constante de livros sobre, do e com o Papa Francisco, e embora alguns – como o fortemente pré-anunciado “Life”, suas recentes reflexões sobre eventos históricos com Fabio Marchese Ragona – ofereçam pepitas preciosas, eles principalmente recauchutam aspectos já familiares. Mas “El sucesor: mis recuerdos de Benedicto XVI” [O sucessor: minhas recordações de Bento XVI], até agora disponível apenas em espanhol, será visto como um dos eventos editoriais deste pontificado.
Está claro que Francisco percebeu a necessidade não apenas de corrigir o registro histórico por conta própria, mas também de reparar alguns dos danos causados pela indisciplinada corte paralela de Bento XVI, incluindo a própria reputação de Bento XVI.
Francisco obviamente gosta e confia em seu colaborador, o jornalista espanhol Javier Martínez-Brocal. Há uma vibração entre eles que abre novos horizontes em sua conversa e torna o livro extraordinariamente claro e sincero. Martínez é um leigo de 46 anos, numerário do Opus Dei e vaticanista radicado em Roma desde antes da eleição de Bento XVI.
Em uma importante entrevista no dia 13 de dezembro de 2022 para o jornal madrileno ABC, Francisco falou com muito carinho sobre o papa emérito. Mas, quando Bento XVI morreu, apenas duas semanas depois, ressurgiram histórias de supostas tensões entre eles, instigadas por oponentes de Francisco.
As maliciosas memórias do arcebispo Georg Gänswein intituladas “Nada além da verdade: minha vida ao lado de Bento XVI” (Ed. Ecclesiae, 2023), cheias de insinuações sarcásticas e tentativas de mostrar que Bento XVI desaprovava seu sucessor, apareceram quase imediatamente. Algumas semanas depois, Martínez apresentou a Francisco a ideia de um livro sobre a convivência entre os dois papas. “Bento merece algo assim”, concordou Francisco. Mas eles só começaram a trabalhar nisso em julho do ano passado.
Bento, que professou obediência a quem quer que fosse escolhido no conclave de 2013, foi totalmente leal e respeitoso à autoridade de Francisco: “Ele cumpriu esse voto”, diz o papa. “Eu posso atestar isso.”
Nos primeiros anos, ele foi uma importante caixa de ressonância, ajudando Francisco a ampliar sua visão e a tomar boas decisões. Bento XVI elogiou de modo particular a carta de “bandeira vermelha” de Francisco, emitida em junho de 2019 à Igreja na Alemanha sobre seu processo sinodal. Bento XVI permaneceu leal apesar das intensas pressões sobre ele por parte de grupos opositores a Francisco, que recebiam a indulgência da comitiva de Bento XVI, principalmente de Gänswein.
Martínez repassa vários episódios em que o papa aposentado foi manipulado por grupos irritados com Francisco, mas, no relato de Francisco, ele sempre defende seu sucessor, explicando-lhes por que Francisco havia assumido sua posição sobre, por exemplo, as uniões civis para casais do mesmo sexo.
Francisco acredita que Bento XVI nunca foi capaz de se libertar dessas pressões, nem como papa, nem como emérito. A Cúria Romana, diz Francisco, “não entendeu sua liberdade”. É claro que libertar o papado do domínio da Cúria era uma das principais prioridades de Francisco.
Bento XVI, observa Francisco, era gentil, delicado e humilde, preferindo não se afirmar, e isso foi aproveitado por algumas pessoas da Cúria que “limitaram seus movimentos” e “o cercaram”, causando-lhe grande sofrimento. Um exemplo pequeno, mas revelador, foi a maneira como Gänswein impediu que Bento tivesse contato com certas pessoas de quem ele gostava. Qualquer pessoa que tenha lido a biografia de Bento XVI escrita por Peter Seewald – fortemente dependente do ponto de vista de Gänswein – saberá do ciúme de Gänswein em relação a Josef Clemens, secretário particular de Ratzinger antes de ele se tornar papa.
Francisco descreve como Bento XVI permaneceu muito próximo de Clemens e frequentemente jantava com ele aos domingos (Clemens era um bom cozinheiro). Mas aos poucos, “com esta ou aquela desculpa”, os jantares cessaram, diz Francisco, “a tal ponto que, em um domingo, Bento telefonou para Clemens e lhe disse: ‘Agora posso te telefonar, porque o Pe. Georg saiu’”. Ainda mais revelador do que a anedota em si é o fato de Francisco querer que Martínez (e nós) soubéssemos disso.
Gänswein emerge com uma má imagem do notório episódio envolvendo o cardeal tradicionalista Robert Sarah, ex-prefeito da Liturgia, que em janeiro de 2020 anunciou ter sido coautor de um livro com Bento XVI, que argumentava contra qualquer mudança na disciplina do celibato obrigatório. A história causou indignação: a possibilidade de ordenar viri probati casados tinha surgido no Sínodo da Amazônia de outubro de 2019, à qual Francisco estava preparando uma resposta, e parecia que o papa aposentado estava tentando pressionar seu sucessor.
Pior ainda, o livro parecia vincular Bento XVI à teologia extracurricular de Sarah (o cardeal afirmou que havia “uma ligação ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato” e que faltava aos padres casados a “plenitude do sacerdócio”). No imbróglio que se seguiu, ficou claro que Bento ficou horrorizado ao ser descrito como coautor de Sarah; ele simplesmente havia contribuído com um artigo curto (e incontroverso) a pedido de Sarah. Bento pediu que seu nome fosse retirado da capa do livro – o que, incrivelmente, a editora Ignatius Press nos Estados Unidos (que recebeu garantias de Gänswein) se recusou a fazer.
Houve rumores na época de que Francisco estava furioso com Gänswein. Francisco diz que Gänswein “às vezes dificultou a minha vida” e que, após esse episódio, ele retirou Gänswein de suas funções como prefeito da Casa Papal, descrevendo que “um bom secretário te ajuda e não deixa rastros”.
Francisco também menciona a ocasião em que Gänswein encorajou Dom Livio Melina, presidente do Instituto João Paulo II até 2016, a prestar homenagem a Bento XVI, divulgando posteriormente uma foto do encontro. À época, Melina e seus apoiadores faziam oposição à reforma do instituto, acusando Francisco de traição e heresia. A foto fazia parecer “como se Bento XVI estivesse contestando a minha decisão”, diz Francisco, acrescentando: “Honestamente, isso não estava certo”.
Gänswein nunca perdoou o papa por sua remoção, vendo-a como uma afronta humilhante à sua dignidade. O livro “Nada além da verdade”, enviado por e-mail em PDF aos jornalistas enquanto o papa emérito era exposto na Basílica de São Pedro, foi sua tentativa de vingança. Até Francisco ficou chocado com seu timing, sua deslealdade e suas inverdades. “Dói-me que Bento tenha sido usado”, diz ele a Martínez. Se a reação do papa podia ser adivinhada, mesmo assim é um choque saber que Francisco foi excluído por Gänswein dos preparativos do funeral. Teria Bento deixado instruções?, Martínez pergunta. “Até onde eu sei, não”, responde Francisco. “Mas tinha uma ‘alfândega’ muito grande lá, eu nunca fiquei sabendo de nada.” A expressão “alfândega” tem uma ressonância clara no léxico de Francisco: é a palavra que ele usa para descrever a mentalidade que ele critica na Evangelii gaudium: “A Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa”).
Como um exemplo dessa alfândega, Francisco descreve a visita a Bento na véspera de sua morte, quando ele estava consciente, mas incapaz de falar. Francisco descreve comoventemente sua conversa final e sua bênção de despedida; mas depois, na saída do convento de Bento XVI, “aconteceu uma coisa feia”. Um enfermeiro que acompanhava Francisco foi acusado por um dos médicos de Bento XVI de ser um “espião”. Francisco percebeu que os médicos mantinham Bento XVI “sob custódia”; a mentalidade deles era “manter tudo fechado”.
Existem muitas dessas histórias em “El sucesor”. Uma anedota tentadora recorda a ocasião em que um grupo de cardeais aposentados da corte-sombra de Bento XVI foi convidado para um almoço por “uma elegante senhora”. A maioria das pessoas imediatamente a reconhecerá como a “it-girl” alemã que se tornou tradicionalista, a Princesa Gloria Thurn und Taxis. Todos os comensais atacavam Francisco. O papa soube disso “por acaso” e falou disso a um cardeal sentado a seu lado, que acabou se revelando um dos presentes. O cardeal, com a consciência pesada, dois dias depois, ajoelhou-se publicamente diante de Francisco e pediu-lhe perdão.
É fácil imaginar pelo menos alguns dos cardeais que estiveram no almoço – Gerhard Müller, Raymond Burke, Robert Sarah, Joseph Zen e outros têm sido hóspedes regulares do palácio Thurn und Taxis – mas é difícil imaginar qualquer um deles se ajoelhando diante de um papa que desprezam.
Francisco não nega as diferenças entre os dois papas. Ele elogia Bento XVI por “algumas decisões que eu tomei, com as quais ele naturalmente não concordava, mas as quais, com seu silêncio, respeitou sempre”, acrescentando: “É preciso santidade e muito hombridade para isso”.
A tensão mais óbvia se deu em torno das restrições impostas por Francisco à missa pré-conciliar. Em suas memórias, Gänswein faz uma grande cena sobre o desconforto que o motu proprio Traditionis custodes aparentemente teria causado a Bento XVI, alegando que foi “um erro, porque colocou em risco a tentativa de pacificação”. Bento havia procurado, com seu decreto de 2009, liberalizar o uso do antigo rito. Mas essas passagens nos dizem mais sobre as opiniões de Gänswein do que sobre as de Bento XVI. Francisco diz a Martínez que os dois papas nunca discutiram o assunto. A verdade é que provavelmente a medida causou dor a Bento, mas ele guardou cuidadosamente esses sentimentos para si mesmo.
Martínez faz uma bela descrição do funeral de Bento XVI (“a última vez que os dois papas se encontraram”) e termina refletindo sobre as tensões e os contrastes entre os dois pontificados. Sempre sábio mestre, Francisco empresta-lhe seu exemplar do livro de Romano Guardini sobre as polaridades, tema da tese doutoral do papa. Nele, Martínez descobre a chave para entender a relação não apenas entre os dois pontificados, mas também entre todos os pontificados: uma tradição de autoridade dinâmica e ininterrupta, na qual as diferenças de ênfase não são tanto contradições, mas sim polaridades dinâmicas.
A maior continuidade de todas, conclui Martínez, está na forma como cada papa se liberta das limitações em prol do Evangelho, pois Jesus deu a cada Pedro as chaves para abrir o acesso ao Reino de Deus, não para fechá-lo, e para cada geração e para cada pontificado isso exigirá um novo tipo de abertura. É assim, diz ele, que encontramos a verdadeira continuidade entre os papas.
A conversa final entre Francisco e Martínez neste livro fascinante, às vezes comovente, aborda os próprios desejos de Francisco. Entre eles, estão as reformas que ele está atualmente fazendo nos funerais papais (nada de ficar deitado em um esquife aberto; os papas devem ter os mesmos funerais que qualquer outra pessoa). Ele também dá mais detalhes sobre o local de descanso escolhido na Basílica de Santa Maria Maior, fora do Vaticano, no local onde outrora eram sepultados os escravos e os pobres de Roma.
Reformador até o fim, ele até escolheu exatamente onde quer que o túmulo fique: em uma pequena sala que hoje é usada para guardar candelabros.
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Jesus e as chaves de Pedro: um comentário ao novo livro-entrevista com Francisco. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU