11 Abril 2024
A dignidade humana, no documento Dignitas Infinita, "parece derivada e secundária. É apenas porque somos criaturas de Deus e feitas à sua imagem e semelhança que temos dignidade", escreve Gianfranco Pellegrino, cientista político, em artigo publicado por Domani, 10-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A declaração sobre a dignidade humana publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé está repleta de nãos: não ao aborto, não à gestação por substituição, que, aliás, deve ser tornada crime universal - com uma concessão ao atual governo que retoma um pronunciamento do Papa de janeiro passado -, não à eutanásia, não à poligamia, não à chamada teoria de gênero (seja ela o que for), não à mudança de sexo, com alguma cautelosa abertura para quem tenha "anomalias genitais já evidentes no nascimento ou que se manifestem posteriormente".
Todas essas posições são apresentadas como conclusões derivadas de uma única premissa: os seres humanos foram criados por Deus à sua imagem e semelhança e disso deriva a sua dignidade absoluta e incondicional – seja qual for o significado da palavra “dignidade”; a declaração não considera necessário dar uma definição, mas nisso está em boa companhia: as referências à dignidade não se contam no direito e na filosofia, e poucos definem o termo com alguma clareza.
De acordo com a melhor tradição da teologia católica, argumenta-se que tudo isso é possível ser compreendido e aceito apenas exercitando a nossa razão. A Igreja se dirige a todos, não apenas aos fiéis.
Mas aqui as coisas ficam difíceis. A dignidade humana parece derivada e secundária. É apenas porque somos criaturas de Deus e feitas à sua imagem e semelhança que temos dignidade. A dignidade "compete à pessoa enquanto tal, pelo simples fato de existir e de ser querida, criada e amada por Deus".
É só por concessão, num certo sentido, que temos dignidade: como objetos do amor divino, não em si. A vontade de Deus nos torna dignos: trata-se de uma forma de voluntarismo teológico. As violações da dignidade humana são antes de tudo uma ofensa ao Criador, além e mais do que às vítimas. Os seres humanos são instrumentos da Criação, num certo sentido. Um não crente poderia não se contentar com esse humanismo pela metade.
A declaração nega a gestação por substituição porque o nascituro "tem o direito, em virtude da sua inalienável dignidade, de ter uma origem plenamente humana e não conduzida artificialmente”. Exceto que nada é plenamente artificial ou plenamente natural, a origem dos seres humanos como criaturas de Deus não é plenamente humana, obviamente.
Portanto, aquele direito à origem, bem como o direito de ter filhos, não é possível ter, à luz justamente da teologia da declaração. E a gestação por substituição afronta, afirma o documento, “a dignidade fundamental de todo ser humano e o seu direito de ser sempre reconhecido por si mesmo e não como instrumento para outros fins”.
Mas, se assim fosse, a dignidade humana não poderia derivar do fato de sermos criaturas, isto é, produtos da vontade outra do Criador, por mais sublime e amorosa que seja: o não à gestação por substituição não é inteiramente coerente com as premissas da declaração.
O mesmo vale para a negação da teoria de gênero e a mudança de sexo. Diz-se que a diferença sexual é essencial, original e criada por Deus. Porém, nos casos de anomalias genitais, a mudança de sexo pode ser realizada. Mas as anomalias também não são criadas? Não deveriam ser aceitas como dom de Deus? Como se faz distinções dentro da Criação? Se algo é normal e algo não, podemos rejeitar as partes estatisticamente anômalas da Criação?
Mas então por que não rejeitar também algumas das partes normais que são estranhas? Por que a anomalia dos genitais sim e as manifestações psicológicas da disforia não? A declaração afirma que “o ser humano não cria a sua própria natureza”, que é um dom. Mas pode mudar algumas partes dela?
A dignidade humana está ligada aos direitos e à liberdade humanos, afirma o documento. Mas a liberdade é evocada primeiro como execrável liberdade de fazer o mal e só depois como liberdade de viver à altura da própria dignidade. E, além disso, a liberdade é também um dom de Deus, e “desligada do seu Criador, a nossa liberdade não pode senão enfraquecer-se e ofuscar-se”.
É por isso que novos direitos não devem ser criados para satisfazer desejos e propensões “subjetivas”. Os direitos devem basear-se na natureza humana, que, no entanto, se reduz a ser criatura feita à imagem e semelhança de Deus.
Mas e se a essência humana fosse de ser livres, livres também para se construir? Se a intuição das teorias sociais de gênero fosse essa, afinal? Não há espaço para essa visão de uma humanidade livre e dona de si na doutrina católica. Isso a separa irreparavelmente do horizonte da nossa época.
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O que o Vaticano ignora. Não há dignidade sem liberdade. Artigo de Gianfranco Pellegrino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU