15 Fevereiro 2024
O tsunami do texto sobre a bênção dos casais homossexuais ilustra a “revolução” desejada pelo Papa Francisco e os seus limites.
O artigo é de René Poujol, jornalista francês, publicado em seu blog, 30-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A extensão e a violência do fenômeno foram surpreendentes. Mais do que a existência do próprio fenômeno que podia ser previsto. De Fiducia supplicans, o texto romano que abre a possibilidade de abençoar os casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, é a bênção dos casais homossexuais, o que provocou o mais claro "non possumus" de alguns e, por isso, exacerbou as oposições entre diferentes sensibilidades na Igreja. Mas, para além das suas “impropriedades”, esse texto deve ser visto pelo que é: é simbólico da “revolução” pastoral desejada pelo Papa Francisco pelo Sínodo em curso que, pelas mesmas razões, confirma uma verdadeira divisão no Igreja. Traz à tona o limite do qual Francisco está perfeitamente ciente: pretender alterar a pastoral sem tocar na doutrina. Um debate até agora reservado a poucos especialistas, mas que já está exposto ao grande público.
É inútil voltar aqui às tomadas de posição que se multiplicaram dentro dos episcopados desde publicação de Fiducia suplicans em 18 de dezembro. Nas quais alguns aprovam o “nihil obstat” que veio de Roma, e outros, mais numerosos, declaram a sua decisão de proibir essas bênçãos na sua Igreja, outros ainda se refugiam numa posição intermediária, visto que a imprecisão do texto romano pode justificar a deles. Cada um pode se informar mais na imprensa…
Duas iniciativas mais recentes parecem-me dar a verdadeira dimensão da questão posta por esse texto. Citamos em primeiro lugar os comentários publicados pela La Revue Thomiste, assinados por dois teólogos Dominicanos: irmão Emmanuel Perrier e padre Tomás Michelet. Ambos denunciam a incoerência teologia de um texto pastoral que acaba autorizando o que a Igreja proibia até aquele momento: a bênção – através das pessoas – de uma situação ou estrutura de pecado. Tomás Michelet pergunta: “Precisamos promover e consagrar uma teologia contextual e uma pastoral contextual que conduzirá inevitavelmente à dogmática contextual em detrimento da unidade da fé?”.
A segunda iniciativa é a publicação no site La Croix da intervenção assinada pelos pais de homossexuais (adultos). Eles escrevem: “Nossos filhos não são pecadores a priori, objetos de dissertações teológicas. São sujeitos conscientes, responsáveis pela própria existência e capazes de buscar o seu caminho singular de santidade, a partir do que são e não apesar do que são”.
Temos, portanto, um exemplo das lacerações e divisões "sistêmicas" que caracterizam o cristianismo contemporâneo. Mas num contexto de inversão das lógicas desejadas pelo Papa Francisco. Inversão que está no cerne do Sínodo sobre a sinodalidade iniciado em 2021 e que encontrará sua conclusão no próximo semestre. Fiducia supplicans é uma ilustração perfeita dessa "revolução".
Vamos defini-lo em algumas frases. No passado, um sínodo tinha por objetivo refletir, entre os bispos, sobre a maneira pela qual a Igreja poderia “ordenar” e traduzir o seu ensinamento dito “desde sempre” (embora a expressão devesse ter mais nuances) para torná-lo melhor compreendido pelo mundo moderno (método dedutivo). Aqui, o caminho pretendido pelo Papa é o oposto: trata-se de permitir aos batizados expressar, em consciência, as suas profundas expectativas pela Igreja, e depois confiar ao Sínodo reunido em Roma o cuidado de discernir o que, entre essas expectativas, está em conformidade com o Evangelho, com a Tradição corretamente compreendida e com a fé da Igreja (método indutivo). A partir de uma prática do "sínodo de bispos” onde só eles são consultados (juntamente com alguns teólogos) e só eles são chamados a "discernir", passa-se a uma ampliação, na qual é o conjunto do povo de Deus a ser consultado e chamado ao discernimento.
No que diz respeito à homossexualidade, significa que já não se parte mais exclusivamente de uma leitura intangível do texto do Gênesis - e dos demais textos que foram inspirados por ele - para deduzir uma doutrina. Baseia-se no que podem dizer eles, os batizados, ou seja, as pessoas envolvidas nesse problema, para questionar principalmente a pastoral, mas também a doutrina. Em um de seus livros, o intelectual católico suíço Jacques Neirynck relata essa fórmula tirada de Agostinho de Hipona: “Se a razão nos faz ver uma certa verdade e essa verdade parece contradizer as Escrituras, significa que estas últimas são mal interpretadas” (1). Ora, a razão nos mostra que os homossexuais, eventualmente cristãos, nem todos vivem, como algumas pessoas imaginam, na devassidão e no vício, mas que muitos deles vivem em busca de amor, fidelidade e respeito do outro, de abertura, de fecundidade... Seria pecado apenas pelo fato de escolherem expressar a sua ternura de uma forma que não seja apenas em palavras?
O neotomismo - mas também o Catecismo da Igreja Católica - opõe-nos, entre outras coisas, o Antigo Testamento e seu relato da criação do ser humano homem e mulher como insuperável e estruturante. Podemos aceitar essa leitura questionando a conclusão prática que dela extrai o magistério que proíbe como imoral e pecaminosa qualquer expressão de sexualidade que se desvie da esfera exclusiva da conjugalidade heterossexual aberta à transmissão da vida. A questão que hoje nos é dirigida pelos homossexuais cristãos e pelas suas famílias é a seguinte: mais do que o casal homem-mulher stricto sensu, o “plano de Deus” não deveria ser entendido mais a partir dos conceitos que são seus componentes: alteridade, união e fecundidade? Precisamos ver uma retomada de discussão da doutrina ou mais um desenvolvimento da doutrina para a qual o Cardeal Newman nos convidava?
Os textos da Revue Thomiste, perfeitamente argumentados e estruturados na sua verticalidade, me trouxeram à memória esta frase da poetisa Marie Noël, cujo processo de beatificação foi aberto em 2017: “Aquele teólogo se expressa como um velho servo fiel que conheceu a Deus desde pequeno e ajuda-o todos os dias a vestir-se de dogmas". E se parássemos de prender Deus em fórmulas nunca postas em discussão, com o pretexto sincero de fidelidade à Tradição?
Parece-me que esse seja o verdadeiro contexto onde situar Fiducia suplicans. Aquele de um percurso sinodal que pretende convidar a Igreja a “partir da realidade”, sabendo que essa “realidade” pode ser diferente – ou compreendida de forma diferente – segundo os continentes e as culturas. Isso pode legitimar, pelo menos durante um certo período, a rejeição do episcopado africano. Isso explica em parte a hostilidade de muitos católicos, mesmo na França, onde a cultura religiosa continua a veicular a alegada “abominação” da homossexualidade, lida através do episódio bíblico geralmente mal interpretado de Sodoma e Gomorra. Em muitos ainda domina uma visão da homossexualidade masculina reduzida à suposta prática da sodomia, que é necessariamente antinatural quando se pretende que a sexualidade esteja aberta à transmissão da vida. Mas a sodomia (peço desculpa pela trivialidade dessas palavras), considerada a “passagem obrigatória” da homossexualidade masculina, não é certamente uma “passagem impraticável” para os heterossexuais. O que significa que o problema está em outro lugar!
A onda de choque provocada pelo não recebimento “diferenciado” de Fiducia supplicans comprova pelo menos, se houvesse necessidade, a extrema dificuldade da abertura pastoral iniciada desde o início do seu pontificado pelo Papa Francisco. Porque essa abertura, hoje necessária, não por razões de “rendição da Igreja ao mundo”, mas de fidelidade ao Evangelho, diz necessariamente respeito, num determinado momento, a uma renovação da doutrina, em particular no que diz respeito à sexualidade humana. Algo que anima uns e preocupa ou escandaliza outros. É considerado um divisor quem ousa expressar em voz alta o que, na verdade, há muito se dizia aos sussurros e sem se fazer notar e que não se queria ver nem ouvir. Na Vida de Jean Racine, François Mauriac coloca esta frase: “O indivíduo mais singular nada mais é do que o momento de uma corrida”. O que significa, no nosso discurso, que Francisco nunca é apenas o papa que o Espírito nos deu e que a Igreja produziu, neste preciso momento da sua história, para ajudá-la a continuar no seu caminho.
1. Jacques Neirynck, Le savoir croire, ed. Salvador, 2014
2. Marie Noël, Notes intimes, ed. Stock.
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Um desafio para a Igreja Católica: repensar a homossexualidade. Artigo de René Poujol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU