27 Abril 2022
"Uma religião torna-se assim a justificação do nacionalismo que é sacralizado. Existe uma tentação permanente de condenar em aparência as atrocidades, mas demonstrar depois que elas dizem respeito tanto à Ucrânia quanto à Rússia. Para esconder a responsabilidade do agressor, demonstrar que o agredido realmente merecia ser agredido", escreve Jacques Neirynck, professor honorário da École Polytechnique Fédérale de Lausanne e ex-conselheiro nacional do Partido Democrata Cristão, da Suíça, em artigo publicado por Baptises.fr e reproduzido por FineSettimana, 19-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O Magnificat proclama: "O Senhor derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes". Em vez disso, os poderosos com muita frequência fazem referência ao Senhor e ocupam por muito tempo seus tronos. O jornal Le Monde publicou recentemente uma surpreendente matéria sobre a religião ostentada por Vladimir Putin. Distinguimos bem sua "religião" de sua eventual fé, um segredo pessoal, que deve ser respeitado e do qual nada podemos saber. Em vez disso, ele manifesta muito visivelmente sua religião ortodoxa e mantém uma relação estreita com o patriarca de Moscou, que o apoia em todas as ocasiões, a ponto de aprovar a guerra com a Ucrânia.
Essa religião do poder é um amálgama de ritos, declarações, reminiscências históricas, pan-eslavismo recorrente, desprezo pelo Ocidente que teria abandonado toda religião e toda moral. A guerra na Ucrânia cheira a uma cruzada que aspira a estender-se ao resto da Europa considerada perdida para a religião, que se identifica com uma moral tradicional de tendência homofóbica.
Com Putin se chega à antiga aliança entre a espada e o altar, entre a cruz e o estandarte, que já foi regra em todos os países que se diziam cristãos. Nessa configuração, as igrejas são reduzidas a componentes da cultura nacional. Quando o país estava empenhado em um conflito, as igrejas não poderiam condená-lo sem abandonar sua função essencial, sacralizar o poder. O poder descia do céu, não subia do povo. Foi assim e ainda é assim com as autocracias. A religião torna-se a justificação indispensável.
Parece que Putin se dedique à leitura da Bíblia. Infelizmente, ali encontra o que é preciso para favorecer sua surpreendente religião. O Livro de Josué narra a conquista da Palestina por Israel, com o imperativo de purificar aquela terra eliminando toda vida, humana e animal, seguindo um comando explícito de “Deus” expresso no Deuteronômio. Essa justificativa dos massacres e das destruições é incompatível com o Novo Testamento, que proíbe a violência e faz uma distinção radical entre César e Deus. Os espíritos belicosos leem seletivamente a Bíblia procurando o que justifica suas inclinações mais violentas.
O mesmo acontece, aliás, com o Alcorão por parte dos islamistas. Um espírito religioso, portanto, não é necessariamente pacífico. Não só a religião e a violência não estão em contradição, mas podem apoiar e justificar uma à outra. Basta que uma confissão se dirija ao que há de mais original e aparentemente mais autêntico para justificar uma regressão à barbárie.
Uma religião torna-se assim a justificação do nacionalismo que é sacralizado. Existe uma tentação permanente de condenar em aparência as atrocidades, mas demonstrar depois que elas dizem respeito tanto à Ucrânia quanto à Rússia. Para esconder a responsabilidade do agressor, demonstrar que o agredido realmente merecia ser agredido.
A religião de Putin é aquela da maioria dos governantes do passado e de muitos contemporâneos. Não tem nada a ver com a fé que convida a nos preocuparmos com os pobres, os aflitos, os doentes, os pecadores. Não é apenas uma sua caricatura, mas uma sua total subversão. Sacraliza a violência, a xenofobia, a intolerância. Foi aquela dos cruzados, das guerras de religião, mais recentemente dos torturadores dos campos de concentração, que se diziam cristãos, convictos de que o massacre dos judeus fosse uma obra devota. Diante de nossos olhos, a história não apenas se repete, mas gagueja.
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A religião dos poderosos. Artigo de Jacques Neirynck - Instituto Humanitas Unisinos - IHU