A coragem do Papa assusta os fomentadores da guerra. Artigo de Domenico Gallo

Foto: Duarte Antunes | JMJ Lisboa 2023 | Flickr CC

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13 Março 2024

"As palavras do Papa estão inevitavelmente destinadas a suscitar violentas polêmicas por parte do Governo ucraniano e todos aqueles que investem as suas fortunas políticas e econômicas na continuação da guerra, mas o pior seria ignorá-las, estendendo um véu de silêncio".

O comentário é de Domenico Gallo, juiz italiano e ex-presidente da Suprema Corte da Itália, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 12-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O Papa era necessário para quebrar o teto de vidro das miseráveis ​​elites políticas europeias, que esconderam debaixo da areia a palavra negociação e até apagaram a dúvida de que a política devesse se empenhar pela paz, em vez de alimentar a guerra e plantar novos cemitérios. A declaração do Papa Francisco é corajosa: “é mais forte quem pensa no povo, quem tem a coragem da bandeira branca”, e “quando você vê que está derrotado, que as coisas não vão bem, é preciso ter a coragem de negociar. Você tem vergonha, mas com quantas mortes vai acabar?”.

O Papa Francisco desarticula todo oportunismo político e lança um apelo veemente para parar o massacre na Ucrânia, convidando abertamente Kiev a aceitar um compromisso para o fim das hostilidades. “Hoje se pode negociar com a ajuda das potências internacionais. A palavra negociar é corajosa", disse o Pontífice na entrevista à Rádio e Televisão suíça. Para parar as mortes é preciso “negociar a tempo, procurar algum país que atue como mediador. Na guerra na Ucrânia há muitos, a Turquia se ofereceu, e outros. Não tenham vergonha de negociar antes que a situação fique pior”. Pois bem, justamente a palavra “negociação” é a besta negra das Chancelarias dos países Europeus e dos vértices da União Europeia, inspirados pelo mesmo fundamentalismo político da OTAN. A pretensão de alcançar a paz através da “vitória” sobre a Rússia, resultado do fundamentalismo da razão política ocidental, está demonstrando toda a sua trágica e dolorosa impotência. Após o fracasso da contraofensiva ucraniana, que afundou num mar de sangue, nenhum arrependimento amadureceu entre as principais forças políticas, nos vértices institucionais e órgãos da União Europeia.

Não surgiu nenhum repensamento nas mídias mainstream que atuam como escolta mediática da OTAN.

Depois de ter encorajado e apoiado a escolha insensata de uma contraofensiva que não tinha chance de sucesso, nem as principais forças políticas nem as principais redes tiveram nada a dizer sobre o massacre sem sentido e os sacrifícios humanos impostos à martirizada população ucraniana por perseguir a miragem de uma “vitória” impossível. A lição que foi tirada da dura realidade dos fatos é que é preciso relançar o conflito armado e focar na escalada, fornecendo à Ucrânia armamentos cada vez mais ofensivos para lhe permitir conseguir a "vitória". Essa escolha política, também confirmada pela Itália com o oitavo envio de armas, é descrita de forma plástica na última Resolução do Parlamento Europeu que continua a instigar a Ucrânia a lutar até à “vitória” e especifica em detalhes os sistemas de armas que devem ser fornecidos para permitir uma maior capacidade ofensiva ao exército ucraniano. No entanto, permanece a dúvida de que toda essa “ajuda fraterna” poderá não ser suficiente e Macron nos informa que, mais cedo ou mais tarde, teremos também de derramar o nosso sangue enviando tropas para o teatro de guerra.

“Não devemos brincar com o martírio desse povo” advertiu o Santo Padre. Diante desse enlouquecimento coletivo, as palavras de realismo e de humanidade do Papa quebram um tabu, abrem um buraco na teia de mentiras, irresponsabilidade e fanatismo com que todos os principais atores políticos tentam esconder a realidade de uma tragédia que se desenrola diante dos nossos olhos e que nós mesmos continuamos a alimentar. Continuar a guerra é um massacre inútil. Abrir uma negociação, buscar a mediação dos interesses opostos, em vez da vitória e da humilhação do adversário, é a única via para evitar o martírio de um povo, sacrificado no altar dos nacionalismos opostos e de estratégias de poder opostas e de evitar que o conflito possa aumentar ainda mais.

As palavras do Papa estão inevitavelmente destinadas a suscitar violentas polêmicas por parte do Governo ucraniano e todos aqueles que investem as suas fortunas políticas e econômicas na continuação da guerra, mas o pior seria ignorá-las, estendendo um véu de silêncio.

Essas palavras são como pedras, vão ao cerne dos problemas e destroem a política ocidental, revelando a sua face irrealista e necrófila. Não devemos permitir que sejam proferidas em vão. Aquelas do Papa são um apelo à realidade e uma advertência ao respeito dos valores fundamentais da humanidade. Nessa situação, o desconhecimento do princípio da realidade é instrumental para a prossecução de uma política indiferente aos custos humanos que ela própria provoca.

Temos de relançar essas palavras, temos de obrigar as forças políticas, os Parlamentos, as mídias, a se confrontarem com as verdades simples e trágicas que elas expressam.

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