20 Fevereiro 2024
"Ao focar na questão da sexualidade, o catolicismo acabou idolatrando-a. Baniu toda outra forma de sexualidade, sacralizou apenas uma. Fora desta, nada de salvação?" questiona Patrick Goujon, jesuíta, padre, teólogo, pesquisador em teologia, história da espiritualidade, editor-chefe de "Recherches en sciences religieuses", em artigo publicado por Le Monde, 12-02-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
O padre e teólogo Patrick Goujon deplora que a crença “apenas na heterossexualidade” tenha se substituído ao credo na Igreja Católica e recorda que o Evangelho “condena firmemente apenas os doutores da lei que falam e não fazem, e que colocam pesados fardos sobre os fiéis”.
Católico, nascido numa família praticante poucos anos depois do Concílio Vaticano II, o catecismo me ensinou um credo: “Eu acredito em um só Deus”. Mas aqui está, parece que essa fórmula tenha sido substituída por outra: “Acredito em um só sexo”. Acredito apenas na heterossexualidade que é vivida apenas no casamento para gerar filhos. É a crônica “Intimités” de Maïa Mazaurette, na edição do Le Monde de 4 de fevereiro que de repente me fez perceber que eu estava errando de fé. Numa frase, Maïa mostrou-me que, para muitos – dentro do catolicismo, mas também fora – ser católicos hoje significava definir-se em relação à sexualidade.
Na Igreja Católica há grande agitação para saber se podem ser abençoados os casais homossexuais. Oh não, desculpem, não os casais, mas as pessoas que vivem como casal homossexual, especificam os bispos. Mas eles não dizem isso em uníssono. Estão bem longe de ser unânimes. Abençoá-las sim, mas não por mais do que alguns segundos. O esclarecimento (sic) foi publicado no site do Vaticano em 4 de janeiro de 2024. Prontos, padres, vão! Diga-me o que você faz com seu sexo e eu lhe direi se você é católico. Evidentemente, entretanto, o que o clero faz do seu próprio nunca está na ordem do dia. Podemos sorrir sobre isso… ou não. Está em jogo a vida de pessoas que buscam um sentido para sua existência e o encontram no amor de Deus. Podemos acreditar ou não. A fé é tão pouco presente em nosso mundo ocidental... Um grande número daqueles que são católicos, o são por convicção e empenho. Mas aqueles que, hoje, ainda se dizem católicos, procuram Deus "como tateando", segundo a expressão de São Lucas. O risco é não permanecer na Igreja por boas razões.
É preciso realmente recitar o novo credo: “Creio in unum sexum”?
Não faz muito tempo, recebi um jovem, mais ou menos na casa dos trinta. Católico, vive como casal, deseja casar, ter filhos com a esposa. Mas sofre de uma doença e não poderá dar à luz a filhos através da procriação medicamente assistida, embora não seja infértil. Ele se depara com uma questão ética.
Mas, ahi, nem pense nisso! A Igreja opõe-se firmemente. “Substituindo um ato técnico ao abraço dos corpos, perverte-se a relação com o filho: que não é mais um dom, mas algo devido", diz o Lexikon, termos ambíguos e polêmicos sobre família, vida e questões éticas, publicado sob a égide do Pontifício Conselho para a Família em 2005. Que falta de juízo! Por ódio à tecnologia? É claro que no horizonte dessa forma de entender, está a mais correta teologia da encarnação: é no abraço dos corpos que a vida é doada. A vida, dom de Deus, passa pela carne. Alguém ainda se lembra que um casamento “não consumado” pode levar, do ponto de vista canônico, à sua dissolução. Mas será esse o único critério para uma relação certa?
Com essa definição, o Lexikon sacraliza o orgasmo masculino, tornando-o o instante T da santificação. Ficamos ainda surpresos que os irmãos Philippe (ver L'Affaire de Tangi Cavalin, ed. Cerf 2023) - tenham conseguido perpetrar tantas violências sexuais devido à visão sagrada de suas orgias impostas a tantas vítimas? É verdade que entre os autores do referido Lexikon se escondiam alguns abusadores, hoje sancionados pela Igreja, pois não puderam ser punidos criminalmente por motivos de prescrição.
A habilidade humana, a inteligência da mente e do corpo são dons de Deus que transformam a nossa relação com a natureza biológica. Essa é a condição humana, desejada por Deus! Um pouco de razão, tão cara à tradição teológica católica! Na verdade, a tecnologia não comporta a desumanização das nossas relações, como se a consciência moral das pessoas fosse subitamente apagada por trás dela. A esse respeito, como entender então o recurso à cirurgia que é hoje tão amplamente técnica?
É claro que surgem questões éticas, mas não podem ser julgadas dessa forma. A tradição moral que convida ao discernimento nas situações entra em conflito com a linguagem eclesial que demasiadas vezes pretende valer sempre, em todo o lado e para todos da mesma maneira. O Evangelho não procede assim. Condena firmemente apenas os doutores da lei que falam e não fazem e que colocam fardos demasiado pesados sobre os fiéis.
Ao focar na questão da sexualidade, o catolicismo acabou idolatrando-a. Baniu toda outra forma de sexualidade, sacralizou apenas uma. Fora desta, nada de salvação?
Mesmo nos limitando ao Catecismo da Igreja Católica, obra que não pode ser acusada de laxismo, encontra-se formas de caracterizar a fé de maneira muito mais consistente. O Credo não tem como objeto a prática religiosa e muito menos as práticas sexuais. No catecismo, o sexo vem muito depois de outras afirmações muito mais essenciais. “Nada poderá jamais nos separar do amor de Deus”, declara São Paulo.
É realmente a hora de nós, católicos, mergulharmos novamente nas fontes da nossa fé e nos deixarmos guiar pelo impulso da nossa esperança. Como nos convida São Pedro, poderemos prestar conta com respeito e doçura.
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“Ao focar demais nas questões da sexualidade, o catolicismo acabou idolatrando-a” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU