08 Mai 2023
Padre e jesuíta para sempre, apesar dos abusos sofridos quando era uma criança indefesa e não compreendia o mistério do mal. Por mais de 40 anos, esse “menino que se tornou adulto” guardou dentro de si aquele mal sofrido, que foi para ele uma autêntica violência sexual perpetrada continuamente ao longo de três anos por um padre – do qual até agora não consegue pronunciar o nome de batismo e chamá-lo de “padre” – da pequena diocese francesa de Verdun.
A reportagem é de Filippo Rizzi, publicada por Avvenire, 07-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É a história de traços corajosos e de certa forma inquietantes que o jesuíta francês Patrick C. Goujon conta com uma veia teológica e literária em uma chave muito autobiográfica. Ele se define como “um padre celibatário e feliz” no livro “In memoria di me. Sopravvivere a un abuso” [Em memória de mim. Sobreviver a um abuso], que chegou recentemente às livrarias italianas pela editora EDB (104 páginas).
O jesuíta francês Patrick C. Goujon (Foto: Centro Sèvres)
O volume inaugura a nova coleção “Sguardi” e dá início ao novo projeto de relançamento, no campo dos ensaios teológicos e eclesiais, da histórica editora que pertenceu aos dehonianos de Bolonha, levado em frente agora pelo grupo editorial Il Portico, presidido pelo historiador Alberto Melloni.
Trata-se de uma verdadeira primícia editorial que, ainda na França, onde foi publicada em 2021 com o título “Prière de ne pas abuser” (Edition du Seuil), conseguiu abalar as consciências cristãs e pós-cristãs da Igreja além dos Alpes. Prova disso são as palavras do jornal francês La Croix, que definiu o pequeno ensaio do Pe. Goujon, hoje com mais de 50 anos de idade, como uma “vitória da literatura, da beleza como instrumento para continuar vivendo apesar do horror”.
O autor não só não esconde os abusos sofridos, como também relata o percurso de cura empreendido graças a psicoterapeutas, osteopatas, reumatologistas e coirmãos jesuítas: foram fundamentais nessa conjuntura as “conversas espirituais” e sua confiança inata nas histórias de final feliz narradas pelo seu autor favorito (que ele lê avidamente desde os sete anos de idade): os contos de fadas escritos no século XVII por La Fontaine.
O que permanece estável – quase como um zênite e um ponto de referência afetivo para a fé cristã do Pe. Patrick e para sua aceitação, apesar do mal sofrido, para se tornar padre na Companhia de Jesus – são as figuras dos pais, a leitura dos textos sagrados, os Exercícios Espirituais e um padre da Diocese de Verdun que o convidou a aceitar, mesmo assim, o chamado do Senhor.
Também permanece firme a condenação do Pe. Goujon ao clima de reticências e de “encobrimento” que tem governado a Igreja Católica francesa nos últimos anos, à qual ele pede que aprenda a denunciar esses casos de padres “rejeitados” e não só a afastá-los, quando esses incidentes ocorrem, a partir do olhar das crianças.
“A surdez diante dos casos de pedofilia na Igreja – afirma o texto – me enfurece. Seu silêncio mergulha as vítimas na impossibilidade de falar, em sua vergonha e em suas dores.” E o autor escreve ainda: “Sérios esforços têm sido feitos nesse sentido, mas a soberba e a falta de empatia de certas pessoas ainda conseguem me matar por dentro. O que lhes falta é a atenção em relação aos aflitos. Nada é mais insuportável para mim do que isso.”
O livro não é só de denúncia e com um final de esperança, mas também representa quase uma “contraparte positiva” – tanto quanto se possa usar esse termo nessas situações – ao detalhado relato, que apareceu recentemente no jornal madrilenho El País, da terrível história de um jesuíta espanhol, Alfonso Pica Pedrajas, que abusou de 85 menores na Bolívia quando era diretor de uma escola. O que chamou a atenção nessa história boliviana e jesuítica foi sobretudo a publicação de um diário escrito de próprio punho pelo religioso já falecido.
No ensaio do Pe. Goujon, no entanto, o que impressiona são as palavras cheias de esperança e de “renascimento cristão”, com as quais ele quis denunciar esses crimes, para comover as consciências de seu país. Assim como de sua Igreja, da qual se sente filho.
Ele decidiu falar sobre o que lhe “ocorreu” aos 48 anos de idade, quando já era um pregador consagrado, professor de Letras e Teologia no prestigiado Centre Sèvres, em Paris: o mesmo instituto acadêmico frequentado hoje por um teólogo de renome como Christoph Theobald e pelo qual passaram gigantes do século XX católico, como Henri de Lubac, Jéan Daniélou e Michel de Certeau.
A partir dessa data – os seus 48 anos – o Pe. Patrick decidiu ir às raízes daquele mal que manteve escondido durante anos sem perceber e que carregava dentro de si: além do mal-estar existencial, havia dores físicas – uma dor nas costas e no pescoço, muitas vezes dor de dente, desmaios repentinos na rua – que o acompanhavam há mais de 30 anos. Ele descobriu que esses males físicos amenizados pelo uso cotidiano de anti-inflamatórios escondiam o distante abuso que ele sofreu quando era uma criança indefesa.
A escolha do padre de falar veio acompanhada também de outra coincidência simbólica de sua existência: assistir sua “amada mãe” no hospital até o crepúsculo de sua vida. Ele decidiu pegar papel e caneta, e falar sobre o que ocorreu com ele tanto com o bispo de Verdun quanto com as autoridades judiciais.
Ele encontrou imediatamente o consolo do pastor de sua diocese de origem, que não só o ouviu e se fez próximo de suas feridas sofridas, mas também se tornou o mediador da sua denúncia à Congregação para a Doutrina da Fé, o dicastério que acompanha esses casos no Vaticano – os chamados delicta graviora.
Mas há mais nesse tocante livro que pode ser lido de uma só vez: o Pe. Patrick compreendeu que havia chegado a hora de falar depois de uma visita ao túmulo de São Pedro na basílica do Vaticano. Ele sentiu dentro de si, exatamente lá, uma voz que lhe vinha do alto, que o confortava e lhe inspirava estas palavras que ele assumiu: “Cuide de si mesmo”. Uma virada quase “paulina” para o religioso inaciano apaixonado pela literatura francesa, de Racine a Moliére, que o levou a manifestar ao distrito policial de Paris o que havia lhe ocorrido muitos anos antes.
Como é tocante a pergunta do policial que redigiu seu depoimento: “Mas hoje você é padre. Como isso é possível?”. E ainda mais desarmante é a resposta do autor desse livro: “Eu creio em Deus”.
O Pe. Goujon vive o drama de que o crime perpetrado por aquele padre acabe prescrevendo. Ao qual ele reserva palavras como estas: de que é “impotente diante do perdão”, que ele confia e delega totalmente à misericórdia de Deus.
Enfim, emerge no livro a força desse jesuíta que (como diria o teólogo dominicano canadense Jean Marie Roger Tillard) aceita “crer apesar de tudo”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A história de Patrick C. Goujon, padre e jesuíta apesar dos abusos sofridos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU