Este ano o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu palestras para refletir sobre o impacto da Inteligência Artificial nas diferentes esferas da vida
“A imanência se tornou transcendência.” A afirmação do filósofo italiano Roberto Marchesini aplica-se a inúmeros usos no debate intelectual das ideias que marca não somente a nossa era, mas a história da humanidade na busca de compreender a si mesma e sua relação com o que lhe circunda. Entretanto, ela aplica-se de modo particular no contexto em que foi pronunciada por ele, à relação do ser humano com a técnica e, de modo mais preciso, com a Inteligência Artificial (IA), que tem sido objeto de reflexão de várias áreas do saber.
Marchesini foi um dos palestrantes do II Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU ao longo do segundo semestre de 2023. O evento tem a finalidade de articular "diferentes matrizes teórico-filosóficas e científicas que se tangenciam nas discussões sobre a IA", a fim de evidenciar a complexidade do tema e suas implicações para a vida humana e sociombiental em suas diferentes facetas, perpassando os eixos pelos quais direciona-se a linha editorial do IHU, isto é, a ética, o trabalho, a sociedade sustentável, o desenvolvimento técnico-científico, o papel dos distintos sujeitos socioculturais e a teologia pública.
Na videoconferência “Tecnofisiologia e Ontologia Híbrida. Novas interações entre a máquina e o corpo humano”, ministrada em 09-11-2023, Marchesini propôs uma reflexão sobre a IA à luz da articulação entre a noção de desejo que conduz a uma compreensão antropológica sobre quem somos. A reflexão sobre IA, segundo a argumentação dele, também perpassa uma compreensão antropológica sobre o ser humano. “Quais são as bases nas quais é fundado o ser humano?” é uma questão a ser respondida, segundo ele. Cada área do conhecimento tem uma resposta a essa questão, mas, a observação da realidade nos indica, sublinha, que o ser humano tem sido tanto o criador quanto o destruidor de mundos. “Isso podemos vê-lo frequentemente na grande crise ecológica, que é uma crise antropológica antes de ser uma crise relativa à alteração do clima, à alteração das mudanças climáticas e da biodiversidade. O problema do ser humano é antropológico e até mesmo ontológico. É um problema que não leva em consideração as bases do ser humano”, reitera.
Uma das propostas para enfrentar a dimensão construtiva-destrutiva do ser humano, que tem levado à infelicidade, conflitos e destruição, é proposta pelo conferencista a partir da noção de doação, presente na obra Edith Stein, conhecida no ambiente filosófico por seu diálogo com Edmund Husserl, no âmbito teológico por sua conversão ao catolicismo, ingresso na Ordem do Carmo e escritos teológicos, e na história por ter sido mais uma vítima da câmara de gás em Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial. A noção desenvolvida por Marchesini na conferência é a de "doação". "Edith Stein falava do sentimento de doação, de se doar, de doar a própria vida para uma ação, uma atividade relacionada à comunidade", pontua. Na avaliação dele, a noção de doação permite rever o conceito de natureza humana e "considerar que muitas vezes temos uma visão distorcida daquilo que somos". O princípio da doação, acrescenta, indica "a capacidade do ser humano de dar lugar para o outro e doar a própria vida. Considerando a própria vida não somente como um dom que recebemos, mas como um dom que cada um de nós faz aos outros".
Outras cinco conferências foram realizadas entre setembro e novembro deste ano sobre a temática da IA no II Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos. Em 27-09-2023, o doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), Thiago Novaes, abordou o tema à luz do pensamento filosófico de Gilbert Simondon, filósofo e tecnólogo francês, cuja preocupação é o estabelecimento de relações humanas com a técnica que ultrapassem o utilitarismo. Segundo o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), na perspectiva de Simondon, "a máquina não é um escravo nem um instrumento utilitário válido por seus resultados, mas um intermediário substancial entre a natureza e o humano".
Na relação com a técnica, explica, “o humano pode reparar a máquina e pode torná-la mais adaptada à realidade cultural ou social. O humano é o verdadeiro mediador. Isso é importante para desfazer a ideia tecnofóbica que muitas vezes vigora em relação à técnica, isto é, de que se as máquinas estão caminhando por conta própria, é preciso refutá-las e não utilizá-las. Simondon diz o contrário: a ideia de não inserir a máquina na cultura reproduz a alienação técnica”.
No âmbito das Ciências Sociais, uma reflexão é sugerida por Sylvain Lavelle, do ICAM Paris, Centre for Ethics, Technology and Society, que ministrou a videoconferência "A humanidade das máquinas. Da inteligência artificial à senciência artificial" no IHU em 21-11-2023. Ele defendeu a seguinte tese: "Não penso, nem por um instante, que o Humaniter possa existir e, em particular, que possa haver uma criatura artificial que não somente seja inteligente, mas, mais que isso, que possa também ser senciente. Noutras palavras, acho que o Humaniter é, de fato, um mito e que, assim como não há inteligência artificial, não há senciência artificial". Ele explica o ponto argumentativo: "Se uma criatura artificial tal como o Humaniter existisse, ela seria na realidade um ser humano. Ela teria a mesma constituição física e psíquica geral, e apenas a sua criação é que seria artificial, ou seja, não sexual. Todavia, convencido estou de que, em um certo tipo de interação entre o humano e a máquina, é possível que a máquina passe no teste de humanidade e possa ser confundida como um humano".
No primeiro semestre deste ano, o IHU promoveu a primeira edição do Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos, cujas videoconferências deram ênfase à IA à luz do ChatGPT e suas implicações.
Marco Schorlemmer, doutor em Informática pela Universitat Politècnica de Catalunya (UPC) e cientista titular do Instituto de Pesquisa em Inteligência Artificial (IIIA-CSIC), ministrou a conferência intitulada “Uma perspectiva humanista sobre inteligência artificial”. Segundo ele, a pesquisa de IA precisa ser reorientada na direção de promover a liberdade criativa. “As ferramentas de IA, tais como o ChatGPT, estão promovendo a liberdade criativa, estão promovendo nossa inteligência em todas as suas dimensões, funcional, avaliativa e libertadora? Não sei. Infelizmente, grande parte da pesquisa de IA, hoje, está condicionada por algumas poucas empresas que dominam o desenvolvimento tecnológico e que, principalmente, seguem os princípios do raciocínio econômico”, sublinha.
O uso de IA na área de jurídica foi o tema da videoconferência da professora de Direito da UnB, Ana Frazão, intitulada “Inteligência Artificial e o sistema judiciário brasileiro: avanços e desafios”. Na ocasião, ela observou que conquistas civilizatórias podem ser comprometidas a depender do modo como o julgamento algorítmico for adotado no judiciário. "Os julgamentos algorítmicos são, sim, mais fidedignos do ponto de vista de acurácia e da objetividade”, mas, compara, esses não são os únicos valores importantes em um julgamento. “Essa discussão entra no âmago daquela que talvez seja a maior tensão do direito: como equilibrar segurança, acuidade, objetividade, dentro do que é possível, com justiça? De que adianta acurácia e objetividade ao preço da iniquidade? Ficaremos felizes se todos nós tivermos a mesma decisão algorítmica absolutamente esdrúxula, mas que assegure a todos o mesmo padrão de igualdade? É certo que não”.
O uso positivo da IA para o enfrentamento das mudanças climáticas foi exposto pelo professor Sergio Marconi, da Universidade da Flórida. Na última década, ele tem pesquisado a aplicabilidade da IA para preservação da fauna e da flora das florestas. "A IA ajuda não apenas fazer previsões em escala de árvores, mas também ajuda a entender quais são os fatores e processos potenciais que fazem com que as espécies sejam distribuídas”, disse na videoconferência. Segundo ele, "estamos nos deparando com a mudança climática, mas também com problemas de uso da terra. E não podemos voltar, resetar, apertar o botão e, pronto, tudo vai estar bem".
No mesmo semestre, Walter Carnielli, graduado, mestre e doutor em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Departamento de Filosofia da Unicamp, foi categórico na definição de IA. "É uma ferramenta muito útil", entretanto, "este sistema não é inteligente – é importante deixar bem claro isso". O diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, da Unicamp, esclarece que, diferentemente da inteligência humana, a IA não tem as capacidades de generalização, abstração, dedução, abdução e nem noções de causa e efeito. Enquanto ferramenta, assinala, ela é e poderá ser muito útil em diversas áreas, inclusive na educação, contribuindo para o aperfeiçoamento da aprendizagem, mas pode, igualmente, “levar a um verdadeiro apagão da inteligência” humana, além de variados problemas sociais. Ele ministrou a videoconferência “ChatGPT e DALL-E: Inteligência Artificial, da ética ao trabalho, passando pelo aprendizado”.
A programação completa da primeira e segunda edições do Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos está disponível aqui e aqui. As conferências podem ser assistidas no canal do IHU no YouTube. Informações sobre mais eventos produzidos pelo IHU estão disponíveis aqui. Outras abordagens envolvendo o uso e o desenvolvimento da IA e suas implicações interdisciplinares estão disponíveis nas páginas eletrônica do IHU.