“A nossa ideia cultural é a de que a máquina é um autômato, deve funcionar por conta própria. É esse mal-entendido que precisamos desfazer”, afirma o pesquisador
“A grande confusão de progresso técnico que temos hoje se deve ao fato de confundirmos o progresso técnico com a ferramenta, com o progresso técnico do instrumento”, advertiu Thiago Novaes na videoconferência intitulada Reflexões sobre a Inteligência Artificial a partir da filosofia de Gilbert Simondon, que integra o II Ciclo de Estudos Inteligência Artificial, fronteiras tecnológicas e devires humanos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Especialista na obra do filósofo francês Gilbert Simondon (1924-1989), autor de obras recém-traduzidas para o português, como A individuação à luz das noções de forma e de informação (Editora 34, 2020), Novaes reflete sobre o desenvolvimento das tecnologias e da Inteligência Artificial (IA) na cultura atual à luz das teses filosóficas de Simondon. Uma dessas teses consiste no estabelecimento de relações humanas com a técnica que ultrapassem o utilitarismo. Segundo ele, para o pensador francês “a máquina não é um escravo nem um instrumento utilitário válido por seus resultados, mas um intermediário substancial entre a natureza e o humano e, portanto, deve ser tratada como uma criança, como conhecimento humano depositado porque a máquina guarda uma imperfeição”. Na relação com a técnica, explica, “o humano pode reparar a máquina e pode torná-la mais adaptada à realidade cultural ou social. O humano é o verdadeiro mediador. Isso é importante para desfazer a ideia tecnofóbica que muitas vezes vigora em relação à técnica, isto é, de que se as máquinas estão caminhando por conta própria, é preciso refutá-las e não utilizá-las. Simondon diz o contrário: a ideia de não inserir a máquina na cultura reproduz a alienação técnica”.
A seguir, publicamos os principais momentos da conferência de Thiago Novaes no formato de entrevista.
Thiago Novaes | Acervo pessoal
Thiago Novaes é doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Antropologia Social e bacharel em Ciências Políticas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professor no Programa de Mestrado em Avaliação de Políticas Públicas (Mapp), da Universidade Federal do Ceará (UFC). É autor de Os filhos da técnica: a reprodução assistida e o futuro do humano informacional (Appris, 2017) e principal organizador da coletânea internacional Máquina aberta: a mentalidade técnica de Gilbert Simondon (Dialética, 2021).
IHU – Quem é Gilbert Simondon?
Thiago Novaes – Gilbert Simondon é um filósofo francês nascido em 1924 e falecido em 1989. Sua tese principal chama-se “Individuação à luz das noções de forma e informação” e a tese secundária, “Do modo de existência dos objetos técnicos”. A última é mais conhecida porque foi a única publicada em 1958. A tese principal foi publicada anos depois, em fragmentos. A tese, tal como a conhecemos hoje, foi publicada em 2005, traduzida pela Editora 34. “Do modo de existência dos objetos técnicos” foi traduzida pela editora Contraponto, em 2020, e resgata um texto intitulado Prospectus. Trata-se de um sumário que Simondon publicou na edição de 1958, que havia sido perdido ao longo das demais edições francesas, sendo retomado em uma tradução de 2017. Esse é o texto que vou usar para abordar a tomada de consciência dos objetos técnicos.
IHU – Em que consiste a ontologia da máquina, segundo Simondon?
Thiago Novaes – A ontologia da máquina argumenta que a existência dos objetos técnicos não pode ser reduzida ao seu utilitarismo. É particularmente importante uma ênfase nessa ideia de ontologia da máquina porque hoje temos uma apropriação do pensamento de Simondon a partir de uma ideia de cosmotécnica que enfatiza lutas cosmopolíticas. Ou seja, trata-se da visão de combater a monocultura moderna do desenvolvimento técnico, do progresso técnico, a partir de uma apropriação cosmológica. Essa proposta é importante porque se apresenta como uma alternativa ao progresso e ao beco sem saída a que o desenvolvimento tecnológico nos levou. Por outro lado, ela carece de apontar as especificidades do objeto técnico, que é justamente o que a segunda tese de Simondon buscou fazer.
Aqui reside a proximidade que Simondon tem com a ideia de simbiose, de acoplamento, de humano/máquina da pesquisadora Donna Haraway. Simondon está pensando no acoplamento do humano com a máquina, mas afirma que é um acoplamento inadequado pensar a máquina como um ser não vivo. Ele faz uma alusão à máquina como se fosse um organismo em crescimento, com devir, com futuro.
IHU – Em que consiste a noção de individuação?
Thiago Novaes – A noção de individuação é uma alternativa de Simondon para a noção de indivíduo. Em sua tese principal, ele defende o processo de ontogênese, isto é, da ontogênese como uma alternativa para a ontologia do indivíduo como acabado em si mesmo. Ele traz, com a ideia de informação, uma proposta de outra cibernética para questionar a ideia do receptor como algo imutável ou dado, tal como funciona hoje a ideia de trabalharmos com a Inteligência Artificial (IA) como sendo um grande banco de dados. Simondon está pensando em um devir, em um futuro, em uma transformação também do receptor.
Simondon desenvolveu, ao longo dos anos 1950, um método próprio para seus alunos do ensino médio. Ele mantinha um laboratório de máquinas e ensinava-os a identificar elementos, indivíduos e conjuntos técnicos. A partir da ideia de indivíduo, elemento e conjuntos técnicos, podemos trabalhar o entendimento do que é uma máquina ou de como podemos pensar uma máquina, em outras palavras, podemos imaginar uma outra ontologia da máquina que não seja reduzida ao utilitarismo do seu mero funcionamento, o que é uma maneira forma empobrecida de perceber a existência dos objetos.
IHU – Em que consiste a ideia de tomada de consciência dos objetos técnicos?
Thiago Novaes – A tomada de consciência dos objetos técnicos é o que marca a introdução dos textos de Simondon, dizendo que vivemos uma verdadeira crise com os objetos técnicos. Tratamos objetos técnicos como algo fora da cultura, como algo que não vai além do seu mero utilitarismo. Simondon argumenta que os objetos estéticos adquiriram o seu lugar: o lugar do sagrado, da contemplação, da estética. Os objetos técnicos, por sua vez, ainda não possuem esse lugar. A tese dele é desenvolvida de modo a reintroduzir, apontando esse dilema cultural, o tratamento xenófobo que a nossa cultura manifesta em relação aos objetos técnicos, para reintroduzi-los na cultura.
Ele divide essa tomada de consciência em três estágios. O primeiro é entender que o objeto técnico não é um ser artificial; o sentido de sua evolução é uma concretização. Com a IA, poderíamos questionar, de um lado, a inteligência, isto é, se ela tem a ver com o nous, se tem a ver com a experiência, se é sensível. A inteligência tem uma série de atributos do ser humano que não poderíamos chamar de “inteligência” esta enorme quantidade de cálculos e os algoritmos. Mas, para Simondon, o problema estaria do outro lado, isto é, em considerar artificiais os objetos técnicos.
A ideia de compreendê-los como seres culturais e integrados à cultura é o que Donna Haraway tem trabalhado em relação ao acoplamento com a máquina, isto é, esses seres [técnicos], que são conhecimento humano depositado, têm dignidade e, portanto, não podem ser descartados como lixo. Quando descartamos um objeto que ficou tecnicamente obsoleto, estamos jogando fora também o conhecimento humano. É o trabalho humano que estamos jogando fora. A ideia de uma ética e estética dos objetos técnicos deveria entender e perceber a importância da integração dos objetos no sentido de que eles poderiam crescer conosco. Para Simondon, o objeto técnico mais evoluído é aquele que é aberto à informação cultural.
O segundo estágio é a ideia de relação do humano com o objeto técnico. Reconhecendo o indivíduo que nos circunda e os conjuntos técnicos, Simondon recorre à imagem do maestro de uma orquestra. O ser humano seria o grande maestro das máquinas, sem com isso dar uma centralidade para o humano no sentido antropocêntrico. A tese ontológica de Simondon consiste em dizer que o que existe são relações e ele quer colocar o humano em relação à técnica, dando dignidade aos objetos, a fim de entender a sua tecnicidade, as suas propriedades, os agenciamentos que apontam para o humano de uma maneira ética e estética, entendendo os conjuntos técnicos. Hoje, certamente poderíamos entender como conjuntos técnicos a IA, as plataformas de comunicação, para entender o conjunto das relações técnicas que podemos manter com o mundo.
O terceiro estágio para o qual Simondon chama a atenção é a gênese da tecnicidade para entender que o que deve vigorar como modelo de progresso técnico nos objetos não são a sua utilidade, o seu método, o seu funcionamento, mas uma relação mais complexa que envolve o funcionamento deles e os elementos com os quais são feitos, as relações de conjuntos técnicos que eles proporcionam. Com isso, teríamos um progresso técnico que não caminha por conta própria. Hoje, estamos reféns de uma situação em que os algoritmos parecem que funcionam por conta própria, mas nós poderíamos estar atuando como os grandes maestros das máquinas, intervindo sobre os algoritmos, fazendo escolhas, direcionando-os, fazendo com que eles cresçam conosco, com o nosso conhecimento.
IHU – Como avalia as teorias segundo as quais as máquinas serão autônomas aos seres humanos?
Thiago Novaes – Um dos temas que surge com a IA é a ideia de que o robô vai se insurgir contra o ser humano, justamente porque o ser humano ainda mantém uma relação escravocrata com as máquinas. Ou a ideia de que a IA vai se desenvolver de tal maneira a superar os humanos, que são obsoletos em relação à própria capacidade da IA organizar o mundo. Ou seja, a visão de que a máquina é escrava dos seres humanos está bastante presente na filmografia e faz parte da cultura vigente. É a ideia de que o robô pode, por um lado, realizar tarefas sem reclamar, sem fazer greve e, de outro lado, a visão de que o robô vai se insurgir. Essa é uma maneira muito empobrecedora de pensar a máquina, segundo a qual entende-se a evolução técnica como algo que é realizado com base no automatismo.
Em Sur la Technique, Simondon afirma que “é necessário reformar não só o nosso olhar, para o purificar, mas a operação técnica também deve ser reformada: deve ter como objetivo constituir um objeto aberto, perfectível e neotécnico, ou seja, depositário de potencial evolutivo; este objeto não deve ser vendido, possuído ou dado, mas uma coisa que institui uma participação”. Esta citação guarda alguma sintonia com o que Donna Haraway vem chamando de simbiose. Ela trata da multiespécie ou das espécies orgânicas de animais e está dialogando com uma visão não mecânica e não mecanicista de organismo.
É a ideia de podermos participar, de poder fazer reparo na máquina, de poder participar com algoritmo nas plataformas. Entre os objetos digitais, existe um software proprietário, que é uma caixa fechada, uma receita de bolo, que vem junto com o sistema operacional e, em contrapartida, existe o software livre, que pressupõe liberdade, que nos permite olhar de dentro para essa receita de bolo, modificá-la e melhorá-la. Embora Simondon não tenha conhecido o software livre, o software livre é, perfeitamente, o exemplo de software neotécnico que pode ser agregado, que pode crescer com a programação.
Uma definição de objeto aberto, para Simondon, é a seguinte: “O objeto aberto deve dividir-se em partes sujeitas a alterações e partes não sujeitas a mudanças. As partes permanentes devem ser executadas com materiais e um grau de perfeição que as torna praticamente permanentes; elas desempenham para os outros um papel de condição estática e imutável, por exemplo, um papel de apoio, no qual o desgaste e os reajustes necessários são reduzidos ao mínimo”. Gosto de associar essa ideia ao paralelo entre o carro automático, que não tem motorista, e os carros mais antigos que permitiam a possibilidade de modificação e reparo, dos quais podíamos trocar o motor, por exemplo. Naqueles carros, a capacidade de reparo que tínhamos era muito mais acessível e valorizávamos mais os elementos técnicos, o funcionamento técnico de cada um e não o cromo do carro como um todo.
Para Simondon, o desenvolvimento gerou a alienação técnica. Este é um debate central que ele desenvolveu com Marx. Simondon aprofunda a crítica à expropriação, argumentando que talvez não fosse suficiente reapropriar o trabalhador ou as pessoas do que lhes foi expropriado porque, se não entendermos como a máquina funciona, iremos reproduzir a ideia da máquina como ferramenta. Hoje, a máquina não é só uma ferramenta; ela é um instrumento que nos permite acessar a mundos que não acessamos sem a ferramenta, que é uma extensão do gesto técnico.
A ideia de objeto aberto é a ideia de um objeto que pode ser melhorado, complementado e mantido em um estado de perpétua atualidade. O trabalho de Simondon, voltado para a máquina, não é propriamente cultural, não é cosmológico; ele enfatiza o mundo dos objetos técnicos, das tecnicidades. Trata da característica do objeto técnico para que a cultura possa desenvolver a sua própria visão de uma maneira alternativa em relação ao progresso técnico da monocultura moderna que vivemos. Em alguma medida, falta enfatizar, em alguns discursos sobre cosmologia e cosmotécnica, os aspectos técnicos da tecnicidade da máquina. As ideias de objeto aberto e objeto neotécnico devem ser valorizadas junto à máquina, independentemente da cultura, justamente para que a cultura possa se fazer presente na relação com esses objetos.
Se a máquina não é só um ser fechado em si mesmo, ela pode guardar o que Simondon chama de margem de determinação. Corine Ferrato, autora francesa, cientista da computação, diz que a margem de indeterminação é um gesto de redesenho ontológico. Trata-se de olhar para a máquina com outro olhar, e não como se fosse um robô fechado e automático. Ela diz que a margem de indeterminação é aquilo que a máquina guarda, que é o contraponto do autônomo.
Existem outras possibilidades de lidar com a máquina. É o que Simondon chama de máquina aberta. A máquina mais evoluída é aquela mais aberta a novas informações. Nesse sentido, informações não significam um conjunto de dados que chegam ao receptor e ele recebe, decodifica e corrige. É, antes, aquilo que ele também transforma.
Em sua teoria das máquinas com margem de indeterminação, Simondon se opõe à teoria da informação de [Norbert] Wiener. Simondon apresenta uma ideia de colaboração com a máquina ao invés de uma ideia de utilitarismo. Para ele, há um retorno da informação que chega ao receptor e, portanto, uma transformação. É aquilo que poderíamos chamar de agenciamento ou ator-rede. Isto é, esses atores apontam para o ser humano com suas próprias características, e seus próprios modos de existir transformam a realidade. É dessa cibernética e com essa maneira de pensar a informação que Simondon pensa a máquina.
Simondon está dizendo que a máquina também é este objeto técnico, que também pode ser pensada de maneira metaestável. O indivíduo técnico não precisa ser uma caixa fechada, com leis que funcionam internamente. Pode ser um objeto metaestável que, ao receber uma informação exterior, pode se modificar. Essa é uma ideia central para crescermos juntos, isto é, a ideia simbiótica de acoplamento com a máquina, que é importante para pensarmos a IA.
IHU – Que contribuições essa concepção de objeto aberto traria para o funcionamento do ChatGPT, por exemplo?
Thiago Novaes – Quando pergunto ao ChatGPT para listar dez nomes de filósofos, ele menciona dez nomes masculinos. Se peço ao ChatGPT uma lista balanceada de gênero, corrigindo-o, portanto, ele dá uma lista de cinco autoras mulheres e cinco autores homens, todos ocidentais. Na terceira tentativa, solicito uma lista balanceada em termos de filosofia do Oriente porque o Oriente também produz filosofia, e o ChatGPT apresenta algumas autoras orientais. Nesse processo, o ChatGPT não acumulou, no seu banco de dados, a informação de que haveria a necessidade de um balanceamento de gênero ao apresentar uma lista de filósofos.
O ChatGPT funciona com um banco de dados atualizado até 2021 e pode ser que ele se torne mais atual, mas isso não muda o fato de que ele não aprende. A ideia de uma máquina que aprende precisaria ter, por detrás do algoritmo que está gerando o ChatGPT ou da IA, a informação de que, para a nossa cultura, é importante que o algoritmo considere o equilíbrio de gênero ou de raça ou vários outros tipos de informações culturais que nos são relevantes.
Mas nós estamos herdando a ideia, a partir da cultura técnica do automatismo, de que o ChatGPT e a IA podem ser melhorados não pela cultura e pela sociedade, pela participação dos indivíduos e dos grupos organizados, mas a partir de quem detém o conhecimento técnico. De novo, há uma separação técnica entre quem detém o conhecimento sobre a linguagem dos computadores e quem não tem este conhecimento e é um mero usuário da técnica. O afastamento do humano em relação à técnica, o utilitarismo, é um dos principais problemas da cultura técnica. Simondon apresenta claramente métodos de como lidar com isso no sentido de desenvolvermos uma sensibilidade relativa às máquinas, isto é, entender os elementos que estão dentro de um celular, de um motor etc.
Simondon ensinava as crianças a desmontar radares, telefones, rádios e televisões, que eram os objetos técnicos na comunicação do século XX. Mas é possível identificar, em um celular, um componente como o metal terra-rara, que é de difícil acesso, cuja extração é altamente poluente. Localizar e identificar esse metal e introduzir sua situação dentro da cultura é interessante para evidenciar que talvez não seja culturalmente equilibrado descartar um celular no Gabão ou em outro país e reciclar material inapropriado, diminuindo enormemente a expectativa de vida das pessoas que vivem nessas regiões. Enfim, o descarte desses objetos produz uma situação de alienação que está longe de ser uma relação que reivindica o progresso técnico tal como Simondon está pensando ou uma relação como Donna Haraway apontaria em termos de relação simbiótica de acoplamento humano-máquina, de ciborgue sustentável.
A nossa ideia cultural é a de que a máquina é um autômato, deve funcionar por conta própria. É esse mal-entendido que precisamos desfazer e tentar perceber que a maneira mais evoluída de lidar com a máquina talvez não seja ela funcionando por conta própria, fechada, mas a máquina aberta.
IHU – Em que consiste o conceito de equilíbrio metaestável?
Thiago Novaes – Enquanto o indivíduo ressoa e aponta para uma ideia de estabilidade ou de uma sociedade estável, nós estamos falando de uma sociedade metaestável. A ideia de uma máquina metaestável é importante. A máquina aberta testemunha um equilíbrio metaestável. Ela apresenta um certo número de pontos críticos que exigem uma determinação externa para guiá-la. Um exemplo que ilumina este aspecto é citado por Simondon em entrevista concedida em 1982 sobre como salvar o objeto técnico. Ele considera dramática a situação do carro quando, por exemplo, ele se torna obsoleto por conta da ferrugem que toma o carro inteiro, enquanto o motor do carro está totalmente em funcionamento.
Os elementos técnicos do carro condenam o conjunto técnico como um todo. A ideia de identificar esses pontos críticos é central no caso dos objetos físicos, ou seja, identificar onde poderíamos fazer reparos e manter esses objetos em crescimento, em funcionamento, em uma relação de permanência com a cultura. No caso dos objetos digitais e do software, o software livre é o que melhor aponta como os computadores tornados obsoletos, que serão descartados, poderiam ser reciclados justamente pelo software livre porque ele tem a capacidade de se adaptar a esses pontos críticos do computador, como a capacidade de processamento de hardware, ou seja, o computador é entendido como metaestável.
Uma política pública de cultura digital, como a que vigorou no Brasil em 2005 e 2006, pode pegar um computador que é tido como obsoleto e transformá-lo em ilhas de edição de processamento de imagens, de áudio, em outras palavras, fazer com que o software livre se adapte à realidade de hardware.
IHU – Em que consistiu o debate que Simondon estabeleceu com Marx?
Thiago Novaes – Simondon dialoga com Marx sobre a apropriação dos meios técnicos. De alguma maneira, ele substitui a ideia de trabalho pela ideia de atividade técnica. Não estou dizendo com isso que Simondon se contrapõe a Marx. Na verdade, ele está muito próximo de Marx, mas aprofunda sua teoria e faz uma crítica. Para ele, Marx, em certa medida, teria entendido todas as máquinas como ferramentas, como extensão, reificando a ideia de automatismo das máquinas e, com isso, perdendo a capacidade de compreender as máquinas como instrumentos para modificar a percepção humana, tal como os microscópios, que Simondon cita explicitamente.
A grande confusão de progresso técnico que temos hoje se deve ao fato de confundirmos o progresso técnico com a ferramenta, com o progresso técnico do instrumento. Quando temos um martelo mais adaptado ao gesto técnico, o corpo humano é a medida da evolução técnica. Quando vamos para o instrumento, não é mais o corpo humano quem percebe a evolução técnica, na medida em que o instrumento modifica a percepção.
Muitas vezes, pensamos a evolução da TV digital como a evolução do colorido para o supercolorido, mas a televisão digital, na verdade, é uma nova plataforma de comunicação. A nossa relação com a televisão digital é análoga ao consumo da TV em preto e branco, ao consumo da TV em colorido. Como temos um modelo de consumo comercial predominante sobre essa comunicação, vigora, na nossa cultura, uma verdadeira alienação técnica em relação a como funcionam os objetos técnicos.
Achamos que a evolução da TV digital é a evolução do colorido para o supercolorido, ignorando, por exemplo, que a televisão digital tem um nível de interatividade que permite interatividade em três níveis: local, com emissora e convergente com a internet. Ignoramos que a TV digital pode transmitir dados e não somente imagens e que, portanto, poderia estar chegando na nossa casa um conjunto de outras informações, como alertas de emergência, informações de saúde etc. Trata-se da ideia de multiprogramação, ou seja, uma série de informações técnicas, de modificações técnicas que a nossa cultura hegemônica ignora porque herdamos a ideia de que vamos consumir a televisão tal como a consumíamos no século XX.
Simondon se esforça para pensar a tecnologia como uma categoria plural, onde os objetos técnicos têm diferentes modos de existência, e ele tenta pensá-los em sua própria dimensão técnica. Marx, ao contrário, os inclui sob a categoria única de meios de produção. Essa ideia da máquina multifuncional é muito forte na teoria de Simondon. Se a ideia da máquina como automatismo é uma ideia fraca e empobrecida da própria máquina, o oposto disso seria uma máquina plurifuncional. Ele pensa isso a partir da própria dimensão técnica.
Embora Marx reconheça a importância da dimensão técnica, ele atribui à dimensão técnica a categoria de meio de produção. Ele não se aprofunda sobre a especificidade de cada máquina, do que cada máquina produz e como funciona e de que maneira ela poderia estar mais integrada à sensibilidade humana. Para Simondon, trata-se, antes, de uma relação de comunicação com a máquina.
Um exemplo que gosto de citar para tentar iluminar essa relação de contraste entre Simondon e Marx é a apropriação massiva feita atualmente das plataformas de comunicação e das redes sociais. Existe a ideia vigente de que teríamos a possibilidade de reapropriação dos meios de produção da indústria da consciência através das redes sociais, como foi o caso da Primavera Árabe, como é o caso de toda mobilização social que pode ser feita com base na noção de reapropriação da ágora, da esfera pública de comunicação que está sendo realizada hoje por meio dessas plataformas. Entretanto, esse pensamento ignora, muitas vezes, a natureza técnica das plataformas de comunicação, o que existe entre nós e a plataforma – ou melhor, a extração de mais valia que existe em transformar o nosso consumo nessas plataformas em mercadoria.
Simondon nos ajuda a pensar sobre a natureza técnica dessas plataformas, como funcionam por dentro, isto é, os algoritmos como modelos de negócios. Além disso, existem os aspectos de manipulação de racismo no reconhecimento facial dos algoritmos. A ideia de nos comunicar com a máquina, de termos um retorno, de compreendê-la como um objeto que cresce conosco, é importante e se diferencia da noção de apropriação de Marx sobre os meios de produção.
IHU – Em que consiste o projeto educativo de Simondon?
Thiago Novaes – Simondon tem um projeto educativo. Ele é um pedagogo. Antes de cursar o doutorado, lecionava no ensino médio. Na carta que escreveu para [Jacques] Derrida, ele citou o viaduto de Garabit: a possibilidade de repará-lo, a maneira como foi construído, que requer uma engenharia e, ao mesmo tempo, uma precisão de materiais, uma junção muito específica e, igualmente, uma integração do viaduto com a natureza. É o que ele chama de ponto-chave para pensar posteriormente a nova cibernética.
Ele também pensa a questão dos conjuntos técnicos, de ensinar às crianças que a máquina não é um escravo nem um instrumento utilitário válido por seus resultados, mas um intermediário substancial entre a natureza e o humano e, portanto, deve ser tratada como uma criança, como conhecimento humano depositado porque a máquina guarda uma imperfeição. O humano pode reparar a máquina e pode torná-la mais adaptada à realidade cultural ou social. O humano é o verdadeiro mediador.
Esta reflexão é importante para desfazer a ideia tecnofóbica que frequentemente vigora em relação à técnica, isto é, de que se as máquinas estão caminhando por conta própria e, portanto, é preciso refutar as máquinas e não utilizá-las. Simondon está dizendo o contrário: a ideia de não inserir a máquina na cultura reproduz a alienação técnica. Pedagogicamente, é importante combater essa ideia e Simondon tem uma proposta de como fazer.
IHU – Em que consiste o conceito de informação para Simondon?
Thiago Novaes – No Colóquio Royaumont, de 1962, Simondon propõe um conceito de informação diferente do conceito de informação que estava em vigor. Havia várias ideias distintas sobre a ideia de informação. Simondon trata da informação não como uma transmissão de mensagem. Simondon diz que a cibernética tem um enorme potencial de se tornar a ciência das ciências se ela não partir do pressuposto classificatório e puder modificar o receptor de modo que ele não seja um ente fechado em si, uma máquina fechada, mas, pelo contrário, que o receptor seja aberto à informação transformadora. Essa informação transformadora é importante não só para poder modificar a máquina para que ela esteja em um estado de perpétua atualidade, mas para estar adaptada ao crescimento com o humano na relação simbiótica de crescimento com o humano.
Simondon está propondo um conceito sistêmico de informação, não um conceito cibernético. É uma teoria das relações de quantidades intensivas que têm receptores capazes de se modificar a partir da informação que chega, de evoluírem para outra fase, crescerem conosco.
A informação para Simondon não é um conjunto de dados fechados. Ela é significativa no sentido de que pode transformar, dar uma nova forma ao receptor, modificá-lo. O receptor, diferentemente da cibernética, é metaestável, assim como a sociedade e o indivíduo, que não são fechados e acabados em si mesmos; estão sempre em processo de individuação. Se entendermos a realidade como metaestável, e os objetos técnicos como metaestáveis, a nossa produção de conhecimento talvez possa ser “transdutiva”, ou seja, não parte dos pressupostos de dedução ou indução, mas de uma resolução.
A informação é a fórmula da individuação. É a ideia de que a relação não é algo que ocorre entre termos dados; a relação é aquilo que se dá entre relações. O que existe numa relação é uma operação entre quantidades intensivas que estão nos dois lados e se comunicam, e não uma apropriação. A informação não é uma apropriação de um sujeito sobre um objeto. Com isso, Simondon está descentrando o humano da centralidade da produção de conhecimento ou da centralidade no mundo, na existência. Ele está colocando o ser humano, de maneira mais relativa, em relação. Isso é feito a partir da ideia de informação. É justamente o que não existe hoje na concepção de cibernética, que é dada sobre objetos dados ou sobre uma realidade dada.
Por fim, parafraseando Simondon em “A amplificação nos processos de informação”, de 1962, “a informação não é uma coisa, mas é uma operação de uma coisa ingressando num sistema e nele produzindo uma transformação”. O receptor tem uma dupla ambivalência. De um lado, o objeto técnico possui um nível de organização elevado. De outro lado, retém energia potencial para uma mudança de estado, para uma outra fase, seja uma evolução da própria máquina, seja do acoplamento humano-máquina.
Para encerrar, eu gostaria de citar [Jean-Hugues] Barthélèmy, um dos grandes simondonianos no mundo. Segundo ele, Simondon tem uma filosofia da informação ontológica. Para ele, a individuação vai além do conceito tecnológico de informação como mera qualidade de transmissão. A individuação é o processo de informar, onde se singulariza o indivíduo, mas se mantém um potencial para novas individuações. Essa possibilidade de pensar a máquina como devir, como organismo em crescimento, como objeto neotécnico, é uma virada ontológica para o mundo dos objetos técnicos que as culturas que lidam com a máquina como autômatos não têm. É preciso um novo olhar para purificarmos uma operação técnica, que é uma operação que prevê uma comunicação e não apenas uma apropriação sobre o meio técnico. Essa é a virada do pensamento simondoniano em relação à técnica.
Para Simondon, a cibernética estaria mais próxima de uma epistemologia, ou seja, devemos pensá-la como um modo de conhecer. Uma visão menos tecnocrática nos coloca em comunicação com os objetos. Esse descentramento é uma maneira de destecnocratizar a nossa relação com o mundo técnico.