04 Outubro 2023
"Estaríamos neste momento no interior de várias manifestações de desequilíbrios no sistema-Terra e no sistema-Vida que nos obrigam a colocar a pergunta: como será daqui por diante o curso de nossa história?", questiona Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Ultimamente muitos me têm perguntado pelas razões de tantos eventos extremos que estão ocorrendo por todo o planeta: por que tantos tufões, ciclones, enchentes, nevascas, secas prolongadas e ondas de calor com cerca de 40°C ou mais, seja na Europa, seja em grande parte de nosso país? Até alguns anos atrás os grandes centros científicos e mesmo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não tinham certeza sobre seu caráter, se era algo natural ou consequência da atividade humana. Lentamente a frequência dos eventos extremos foi crescendo até a ciência reconhecer que se tratava de um fato antropogênico, quer dizer, resultado da ação humana devastadora da natureza.
Alguns cientistas projetaram a hipótese que depois se confirmou como teoria (verdade em ciência enquanto não for refutada) de que uma nova era geológica havia se instaurado. Chamaram-na com razão de antropoceno que seguiu o holoceno de onde vínhamos já há mais de 10 mil anos. Significa que o meteoro rasante que destrói a natureza e compromete o equilíbrio do planeta é o ser humano, especialmente o processo produtivo explorador. Hoje esta compreensão se naturalizou nos discursos científicos e também nos meios de comunicação.
Alguns biólogos vendo o extermínio de espécies vivas em razão da mudança climática começaram a falar do necroceno vale dizer, da morte (necro em grego), em grande escala, de vidas; seria um subcapítulo do antropoceno. A situação tornou-se muito mais grave com a irrupção de grandes incêndios em muitas regiões do planeta, inclusive naquelas que se imaginavam as mais úmidas como a Amazônia e a Sibéria. Para tal evento, extremamente perigoso para a continuidade da vida na Terra, criou-se a expressão piroceno (em grego piros é fogo).
Estaríamos neste momento no interior de várias manifestações de desequilíbrios no sistema-Terra e no sistema-Vida que nos obrigam a colocar a pergunta: como será daqui por diante o curso de nossa história? A não se fazer mudanças corajosas e seguir pelo caminho percorrido até o momento, poderemos conhecer verdadeiras tragédias ecológico-sociais. António Guterres, secretário geral da ONU, tem usado expressões duras, afirmando: “ou reduziremos drasticamente a emissão de gases de efeito estufa ou iremos ao encontro de um suicídio coletivo". Mais direto foi ainda o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti: “estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salvará” (n. 32).
O fato é que a Terra não é mais a mesma. O sistema de sua autossustentação em todas as esferas que compõem um planeta vivo, Grande Mãe ou Gaia, corre risco de entrar em colapso. Os que anualmente calculam a Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot), vale dizer, a redução crescente dos elementos mantenedores da vida, dizem que este momento ocorreu em 2 de agosto último. Eles advertem que não podemos chegar a novembro porque aí todo o sistema planetário entraria em colapso.
Se tudo mudou, nós que somos parte da Terra ou, mais corretamente, aquela porção consciente dela, também teremos que mudar e incorporar aquelas adaptações que nos permitirão continuar sobre este planeta. Em que se basear para esta adaptação?
Seguramente a tecnociência é indispensável. Mas nela não se encontra a solução. Ela se ocupa com os meios. Mas meios para que fins? Estes fins constituem aquele conjunto de princípios e valores que fundam uma sociedade humana e permitem uma convivência minimamente pacífica, pois, largados aos seus próprios impulsos, os seres humanos podem se entredevorar (superação da barbárie).
A fonte destes valores e princípios não se encontram em utopias conhecidas e superadas, em ideologias ou religiões. Para serem humanos, tais valores e princípios devem ser buscados na própria existência humana, quando observada com atenção e profundidade.
O primeiro dado: pertence ao DNA do ser humano como o mostrou um dos decifradores do genoma humano (J. Watson, DNA: o segredo da vida, 1953) o amor social. Por causa dele nos sentimos parentes com todos os portadores deste código, também nos seres vivos da natureza. Este amor social funda uma fraternidade sem fronteiras, constituindo a comunidade biótica e a sociabilidade humana. O cuidado essencial: desde a mais alta antiguidade (a fábula 22 de Higino do tempo de César Augusto) foi visto como a essência do ser humano e de todo e qualquer vivente. Se não for cuidado, garantido-lhe os nutrientes necessários, fenece e morre. A isso pertence manter as florestas em pé e reflorestar as áreas devastadas.
Está também em nosso DNA o sentido da interdependência entre todos. Todos estamos dentro de uma rede de relações e nada existe e subsiste fora deste complexo de relações. Ela constitui a matriz relacional, perdida no modo de produção capitalista que privilegia a competição e não a cooperação e dá a centralidade ao indivíduo, apartado de sua relação para com a natureza. Cabe também ao nosso substrato humano, a percepção da corresponsabilidade coletiva e universal, pois, ou todos se unem e se salvam ou se dilacera a realidade com o risco de tragédias ecológico-sociais sem fim. Esse senso de corresponsabilidade coletiva sustenta o projeto social mais promissor, capaz de salvaguardar a vida que ganhou forma no ecossocialismo (cf. Michael Löwy).
Seria a humanidade junto com a comunidade de vida vivendo dentro da mesma casa comum de forma colaborativa e acolhedora das diferenças. Dentro desta casa comum coexistem os vários mundos culturais com seus valores e tradições, como o mundo cultural chinês, indiano, europeu, americano e dos povos originários entre outros.
A espiritualidade pertence também à existência humana originária que se compõe pela valorização da vida, pela compaixão pelos mais fracos, pelo cuidado por tudo o que existe e vive e pela total abertura ao infinito, já que somos um projeto de infinitas possibilidades a serem realizadas. Esta espiritualidade não se identifica com a religião, embora esta nasça da espiritualidade, mas nos valores acima referidos.
Para alcançar essa forma de habitar a Terra, os humanos deverão renunciar a muitas coisas, especialmente ao individualismo, ao consumismo, à busca insaciável de bens materiais e de poder sobre outros. São adaptações obrigatórias, se decidirmos continuar neste pequeno e belo planeta ou então enfrentaremos o conjunto das crise acima referidas que poderão, no seu termo, liquidar com a espécie humana.
Nesse sentido, podemos falar de uma recriação do ser humano que se adaptou à nova fase da Terra aquecida e equilibrada num nível mais alto de aquecimento (entre 38° - 40°C?). Ela colocará a vida em seu centro e tudo o mais a serviço dela. Como já foi dito, será a Terra da Boa Esperança, finalmente, a antecipação do mito dos povos originários: a Terra sem Males.
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Como enfrentar o novo regime climático da Terra? Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU