27 Setembro 2023
O primeiro texto desta série pode ser lido aqui e o segundo aqui.
As vítimas da violência, incluindo sexual, do padre Marko Rupnik e as vítimas do poder e espirituais da irmã Ivanka Hosta, ambos profundamente envolvidos na trajetória de 40 anos da Comunidade Loyola, aguardam aquilo em que a Igreja Católica não pode falhar, mas tem falhado: escuta, acolhimento e reparação.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 26-09-2023.
Até este momento – cinco anos depois das primeiras denúncias de abusos na então Congregação para a Doutrina da Fé e nove meses depois do eclodir deste escândalo na opinião pública – pode dizer-se que, pelo menos no caso de Rupnik, nada aconteceu, e a recente posição do cardeal vigário de Roma prenuncia o cenário mais escandaloso: o ‘branqueamento’ e a reabilitação deste padre.
Serão perto de 20 as religiosas da Comunidade Loyola abusadas e violentadas. Queixaram-se, nos inícios dos anos 90, quer ao bispo diocesano, quer ao superior local dos jesuítas, quer ainda ao cardeal eslovaco Tomas Spidlik, inspirador teológico de Rupnik. Nenhum olhou para as vítimas e o último, ainda antes de ser cardeal, terá recusado ouvir uma delas em confissão, aconselhando-a a pôr os agravos por escrito.
Além de denúncias de algumas religiosas ao longo das últimas décadas, mais recentemente, foram enviadas cartas aos responsáveis jesuítas e o próprio Papa recebeu várias também. Nada aconteceu.
É verdade que Rupnik, esteve, em teoria, com os movimentos limitados por parte da Companhia de Jesus, quanto àquilo que podia fazer no exercício do ministério sacerdotal, mas, ostensivamente e até com publicidade, ele fez caso das proibições e… todos faziam que não viam.
A Congregação para a Doutrina da Fé por duas vezes se viu obrigada a julgar denúncias de abusos graves contra Rupnik e nos dois casos o reconhecimento da culpa do jesuíta ficou sem efeito: no primeiro caso, porque a penalidade de excomunhão por absolvição de cúmplice foi logo de seguida levantada e, no segundo caso, porque as situações de abuso foram dadas como prescritas.
Quanto à irmã Ivanka, o decreto disciplinar do comissário e bispo Libanori exprime a escuta das irmãs e não se furta a enunciar os problemas de abuso e a decidir sobre eles. Mas também é verdade que as vítimas de abuso parece que não contam, nesse importante documento. Como se tudo estivesse resolvido com umas penalizações… e uma exigência feita a Ivanka de que deve rezar por elas pelo menos uma vez por mês.
As pessoas, várias delas já depois de terem sofrido nas mãos de Rupnik, viram-se violentadas por um clima institucional de entrada abusiva no âmbito da sua consciência, num “sistema iníquo de vigilância das mentes” (cf. decreto de dom Libanori).
Submetidas a um regime de “obediência total, despidas de qualquer possibilidade de posição crítica e reflexiva” (depoimento recolhido junto de Fabrizia Raguso), a sua “liberdade pessoal foi quase completamente aniquilada” (depoimento de Ester), a ponto de quase metade das religiosas terem abandonado a Comunidade Loyola.
A Comunidade viveu anos, décadas, em cima de um tabu, carregando o cadáver de Rupnik que continuava vivo. Mas algumas que entraram mais tarde foram mantidas na ignorância do que estava para trás, o que explica que, já no período das audições do comissário, tenham ficado revoltadas, ao tomarem consciência dos fantasmas e traumas que lhes foram escondidos.
Foram vários os casos de crises psicológicas profundas, de saídas intempestivas, e, se alguém dava sinais de pensar em sair, era tratada como falhada na sua vocação.
Devido a este clima sombrio e ameaçador, não é de estranhar que a Comunidade se tenha reduzido a metade: em poucos anos, 19 partiram, e diz-se que uma “até saiu pela janela”.
E não pode deixar de ser motivo de interrogação a desigualdade que se manifesta no lidar com os dois casos. Afinal, por que foi a Cúria Romana tão rápida a tentar “arrumar” o assunto de Ivanka, isolando-o mesmo do pronunciamento sobre a Comunidade Loyola, cujo relatório tem em seu poder há mais de um ano, e se mostra tão impassível com Rupnik, como que a ver se as tempestades passam de vez?
A Companhia de Jesus, que reagiu apenas sob a pressão dos escândalos que se conheceram em dezembro e janeiro últimos, também não tem motivos para achar que já tem o seu problema resolvido, ao demitir Rupnik … “por desobediência”. Este só poderá responder por aquilo de que é responsável. Não vai certamente carregar as responsabilidades que são da sua ex-congregação: a inação durante tantos anos, o ‘laissez faire‘ a que ela se remeteu, e, sobretudo, o resultado da escuta que promoveu, no princípio de 2023.
Segundo os dados que divulgou, em 21 de fevereiro, surgiram 15 novas denúncias e testemunhos, que foram reconhecidas como credíveis e que cobrem o período que vai dos anos 80 do século passado até 2018. Formalmente, aguardava-se um encontro com Rupnik para decidir que seguimento dar à grave matéria recolhida.
Essa extensa declaração de fevereiro começava por reconhecer “o sofrimento interior de ter de trazer de novo à tona muitos episódios dolorosos”, por parte de quem se expôs, sendo referido que havia pessoas da Comunidade Loyola, do Centro Aletti e também pessoas sem vinculação referenciada. Essas pessoas “são verdadeiros heróis e ‘sobreviventes’, dado o mal que narraram ter sofrido”, acrescentava o documento.
Mas é importante sublinhar que em todo o resto do documento, que trata da natureza dos atos praticados e dos procedimentos a adotar pela Companhia de Jesus, o foco é apenas o padre Rupnik. As suas vítimas – nessa parte em que a Companhia de Jesus assume compromissos – desapareceram. Mas desapareceram no documento, não na realidade. E quem vai, agora, ao encontro delas? Quem as escuta e trata das suas feridas? Quem as irá ressarcir dos prejuízos que sofreram?
Numa (rara) entrevista dada ao jornal La Croix de 26 de fevereiro deste ano, pelo comissário e bispo Daniele Libanori, este pede que as vítimas deste padre e artista esloveno, muitas das quais “nunca puderam contar com uma ajuda profissional para ultrapassar os traumas”, “sejam escutadas pelas autoridades da Igreja”.
“O sangue de Abel grita – observa o comissário – e, para o silenciar, é necessário um julgamento. As vítimas, mesmo mais de 30 anos depois – um tempo que equivale a uma pena de prisão perpétua – têm o direito de ouvir das autoridades uma palavra definitiva que silencie a dúvida sobre a sua culpa e lhes restitua a dignidade, proclamando o que é verdade, que foram vítimas”.
O bispo Libanori está, aparentemente, pregando no deserto.
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Comunidade Loyola: ninguém na Igreja acolheu e escutou as vítimas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU