26 Setembro 2023
No momento em que se desenham movimentos eclesiásticos que aparentam querer limpar a imagem do padre e artista Marko Rupnik, o 7MARGENS mostra como a instituição religiosa feminina que ele ajudou a criar nasceu torta e, confirmando o ditado popular, nunca mais se endireitou.
A reportagem é Manuel Pinto, publicada por 7MARGENS, 24-09-2023.
O padre Marko Rupnik, recentemente expulso da Companhia de Jesus, deixou rastos chocantes de sofrimento em muitas das suas vítimas, como se tornou público a partir de dezembro de 2022. Os abusos podem ter prescrito, mas esse sofrimento não prescreveu, porque a Igreja, por ação e inação, provocou e continua a provocar nelas uma segunda forma de vitimização. Mas Rupnik, cujo estatuto eclesiástico hoje se desconhece, deixou marcas também no Instituto Loyola, que ajudou a fundar, as quais, ainda que indiretamente, chegaram até hoje e aguardam um desfecho que se prenuncia pouco entusiasmante.
Marko Ivan Rupnik, padre jesuíta, artista e teólogo, acusado de abuso de mulheres. (Foto: Centroaletti | Wikimedia Commons)
Ivanka Hosta que foi, desde os tempos de estudante, “unha com carne” com Rupnik no processo de criação da Comunidade Loyola (ComLoy), desde os anos 80 do século ido até às vésperas da ereção canónica desse instituto, em 1994, exerceu o poder de forma tão abusiva que acaba de ser fortemente penalizada por isso.
Decreto disciplinar de 21 de junho último fez “repreensão formal” à irmã Ivanka Hosta, pelo seu comportamento no seio da Comunidade Loyola. (Foto: Reprodução)
O 7MARGENS está em condições de assegurar que um decreto disciplinar de 21 de junho último fez uma “repreensão formal” à irmã Ivanka Hosta, pelo seu comportamento no seio da Comunidade Loyola “ao exercer um estilo de governo prejudicial à dignidade e aos direitos de cada uma das religiosas que a integram”.
O decreto é assinado por Daniele Libanori, jesuíta e bispo auxiliar da Diocese de Roma, o qual, além de ter recolhido e examinado testemunhos e depoimentos sobre Ivanka Hosta, foi também o comissário encarregado, em outubro de 2020, de investigar o percurso e situação da Comunidade Loyola. O relatório foi concluído já em julho de 2022 e, tanto quanto se sabe, entregue no Dicastério para a Vida Religiosa. Inexplicavelmente, não foi até agora objeto de pronunciamento da Cúria.
Bispo Daniele Libanori, jesuíta, auxiliar da diocese de Roma. (Foto: Reprodução | Wikimedia Commons)
Além da repreensão, o decreto impôs três penalizações a Ivanka Hosta:
1) Proibição de assumir qualquer cargo ou função de governo, bem como de direção espiritual dentro da Comunidade Loyola;
2) Fixação de residência na comunidade que este instituto tem em Portugal e proibição de contactar, direta ou indiretamente, com as religiosas ou ex-religiosas da Comunidade Loyola por um período de três anos (medida sujeita a relatório semestral de aplicação por parte da superiora em Portugal); e
3) Como “penitência externa”, peregrinar uma vez por mês, durante um ano, a um santuário mariano de fácil acesso a partir da residência, onde deverá rezar “pelas vítimas do comportamento do P. Marko Ivan Rupnik e por todas as religiosas da Comunidade de Loyola”, das quais é acusada de ter abusado.
Segundo fontes vaticanas, foi já depois de ter feito entrega do relatório sobre a ComLoy, que o bispo foi confrontado com a existência de um certo volume de testemunhos de conteúdo considerado grave relativos à atuação da irmã Ivanka, que foi desde 1994 até agora, com a exceção de um lapso de tempo, a superiora geral (ou Prima Sorella Responsabile – primeira irmã responsável, como é formalmente intitulada): com a entrada em cena do comissário, as suas funções foram suspensas; e com a penalização agora decidida, fica excluída do cargo.
O documento a que tivemos acesso – que não traz qualquer indicação de confidencialidade, mas cujo conteúdo não foi divulgado publicamente – traz elementos importantes para a compreensão do percurso daquela Comunidade ao longo das últimas três décadas.
Torna-se necessário, no entanto, fazer uma contextualização. As origens da Comunidade Loyola devem buscar-se na primeira metade dos anos 80, na Eslovênia, quando ainda não se antecipava a queda do Muro de Berlim. Nessa altura, Marko Ivan Rupnik andava pelos 30 anos e envolveu-se num movimento clandestino que esteve nas origens das Comunidades de Vida Cristã, movimento ligado aos Jesuítas, naquele país. A ideia de um instituto religioso feminino inspirado em Inácio de Loyola começava a ganhar contornos. Na segunda metade da década podia-se encontrar Rupnik, por exemplo, em encontros de jovens do Instituto Stella Matutina, na cidade italiana de Gorizia, na fronteira eslovena, e diz-se que, já então, chegou a estar envolvido no desfazer de relações de namoro, para, de uma assentada, aliciar mulheres para a ComLoy em gestação e candidatos para os Jesuítas.
Uma cronologia inserida no livreto das Constituições da Comunidade refere o ano de 1982 como o dos “primeiros passos” e o de 1985 como aquele em que foi redigido um primeiro documento de “linhas fundamentais” da sua vida religiosa, o qual viria a conhecer várias versões, nos anos seguintes.
Livreto das Constituições da Comunidade refere o ano de 1982 como o dos “primeiros passos” e 1985 como das “linhas fundamentais”. (Foto: Reprodução)
O primeiro grupo de mulheres “recrutadas” a fazer votos perante o arcebispo de Liubliana, Alojzij Sustar, surge em 1991. Três anos antes, algumas mais implicadas no processo já o tinham feito, também. Um segundo grupo de outras 20 candidatas fez votos em 1993.
Todos os depoimentos de ex-membros da ComLoy, vindos a público nos últimos meses,levam a concluir que, nestes anos em que a Comunidade foi ganhando forma, a figura determinante é Marko Rupnik. Sem que tenha nenhum cargo oficial, ele adquire poder pelas palestras, pela direção espiritual e, sobretudo, pelo fato de várias, se não mesmo muitas das jovens mulheres que se entusiasmam por este projeto, virem pela mão e indicação deste então jovem sacerdote jesuíta, uma parte delas de Itália.
Vários dos depoimentos de ex-irmãs que denunciaram ultimamente os abusos de Rupnik referem que era este, de fato, o líder das religiosas. O padre fez consolidar entre elas a ideia de que a irmã Ivanka era quem tinha o carisma, mas que lhe confiava a ele a liderança. Esses relatos coincidem num ponto: os abusos, hoje amplamente conhecidos, começaram nos finais dos anos 80 e estenderam-se até, pelo menos, 1993-1994.
Em 1993, ocorreu um acontecimento fatal para o futuro da Comunidade Loyola. No decurso de uma viagem de Ivanka e de Rupnik, eclodiu um desentendimento muito fundo entre os dois, por razões que se podem presumir, mas que só os próprios conhecerão. O conflito alargou-se à Comunidade e levou à criação de dois grupos: um, maioritário, que quis seguir em frente, em torno de Ivanka, e outro que seguiu o padre Rupnik, constituído por quatro irmãs. Como o jesuíta tinha, entretanto, decidido criar o Centro Aletti, elas acabaram por se incorporar aí. Ele ficaria como diretor do Centro até 2020, quando surgem as primeiras denúncias de abusos na então Congregação para a Doutrina da Fé, passando nessa altura Maria Campatelli a diretora, pelo menos formal. Campatelli é uma das ex-ComLoy, a mesma que foi há dias recebida numa midiática audiência concedida pelo Papa Francisco.
Maria Campatelli recebida em audiência pelo Papa, em setembro de 2023. (Foto: Reprodução | Vatican Media)
Dir-se-ia, então, que, fossem quais fossem os reais motivos, a irmã Ivanka Hosta, fundadora e superiora geral se libertou do tutor fático da Comunidade e que esta poderia iniciar, agora, uma vida nova. Até porque, em 9 de setembro de 1994, a Congregação para a Vida Religiosa deu luz verde canónica à existência formal desta instituição religiosa de direito diocesano.
Mas terá sido, de fato, assim? Que orientação terá a “primeira irmã responsável” imprimido ao seu governo, para receber agora as penas atrás referidas? O decreto do bispo Libanori vai elucidar-nos.
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Comunidade Loyola: superiora geral “desterrada” em Portugal por autoritarismo e abusos espirituais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU