26 Setembro 2023
O primeiro texto desta série pode ser lido aqui
A existência canônica da Comunidade Loyola é reconhecida em 1994, mas nessa altura havia já um percurso de cerca de dez anos atribulados em que se combinam a busca do carisma (provavelmente nunca encontrado), a adesão de mulheres, umas mais entusiasmadas do que outras, e uma prática de abusos espirituais e sexuais por parte daquele que fez as vezes da superiora – o padre jesuíta esloveno Marko Ivan Rupnik.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 25-09-2023.
A Comunidade instalou-se na localidade de Menges, nos arredores de Liubliana, na Eslovênia. O padre Rupnik era ali como que um oráculo e intérprete de Ivanka Hosta e ao mesmo tempo guia espiritual, confessor… e, de fato, diretor. Por outras palavras, no dizer de Ester (nome fictício), que publicou um depoimento sobre o seu caso no jornal Domani, “construiu um muro entre Ivanka e as outras irmãs da Comunidade, que não podiam confiar nela”.
Rupnik insinuava-se na intimidade e na vida espiritual das irmãs, mantendo-lhes as rédeas curtas, incluindo nas relações com os seus familiares.
Cruzando os depoimentos publicados até agora, aparentemente só a partir de 1993 é que as religiosas começaram a saber umas das outras o que se vinha a passar com uma parte delas, no que diz respeito a abusos. Algumas decidiram contar à superiora e uma delas decidiu comunicar aos superiores eclesiásticos.
O arcebispo de Liubliana optou por afastar Rupnik da Comunidade, ao passo que o superior esloveno da Companhia de Jesus, também informado, se recusou a acreditar.
Cabe aqui referir que, num contexto como o descrito, seria altamente improvável que as quatro religiosas que abandonaram a Comunidade Loyola para seguir Rupnik, entre as quais algumas do núcleo inicial fundador, não estivessem pelo menos a par das acusações sobre os graves crimes de que Rupnik começava então a ser alvo.
Perante a situação criada, a superiora reuniu as religiosas e deu-lhes como explicação para a deserção do jesuíta o fato de ele se ter querido apropriar do carisma da instituição, fazendo-se passar por superior – como se elas não soubessem onde residia o principal problema.
A partir de então, Ivanka Hosta instituiu um regime de funcionamento que as religiosas que se pronunciaram nos últimos meses não hesitam em classificar como de controlo e repressão; ou, nas palavras da acadêmica Luisella Scrosatti, de La Nuova Bussola, de “vigilância compulsiva”.
O problema é, contudo, mais profundo e grave do que o estilo de governo. E é aqui que vale a pena convidar os leitores para regressar ao texto do decreto disciplinar do comissário nomeado para analisar o estado da Comunidade Loyola, o bispo auxiliar da Diocese de Roma, Daniele Libanori.
Atuando por mandato do arcebispo de Liubliana, onde a Comunidade está canonicamente ereta, e com conhecimento do Dicastério para a Vida Religiosa, Libanori começa por reconhecer que, a partir de 1993, se verificou um “divisor de águas” entre o governo de Rupnik e o governo de Ivanka. Esta ideia é partilhada unanimemente pelas irmãs ouvidas por Libanori.
No relatório, o bispo diz ter tomado conhecimento, “com profunda consternação, que houve uma imposição de silêncio diante de relações gravemente impróprias mantidas pelo Pe. Marko Rupnik, S.I. com algumas irmãs nos anos em que se desenvolvia o primeiro núcleo da Comunidade Loyola”. Relações essas que, de facto, a comissão criada pelos superiores da Companhia de Jesus para examinar o comportamento do P. Marko Ivan Rupnik, depois de ouvir e avaliar os testemunhos, “considerou como verdadeiros abusos psicológicos, espirituais e sexuais”.
Libanori concluiu, por várias religiosas, que a superiora, bem como algumas conselheiras, sabiam de tudo, mas “mantiveram tudo em segredo e impondo às irmãs que mantivessem escondido o que tinha acontecido”.
“O afastamento do Padre Rupnik da Comunidade em 1993, em vez de trazer à luz do dia o comportamento do sacerdote e o sistema que o tinha permitido, aumentou o sistema de controle, dominação e omertà” que a superiora impôs às irmãs.
Libanori dedica uma especial atenção a expor como a doutrina da Igreja Católica obriga a distinguir, nomeadamente na vida religiosa, entre “o foro interno” e o foro externo. “Trata-se – explica ele – da distinção entre a esfera da consciência e da direção espiritual, por um lado, e a do governo externo das pessoas, por outro”.
Sobre o que diz ter sido uma mistura entre os dois planos, o bispo, fundado nas informações recolhidas, dirige-se diretamente à superiora: “Posso afirmar que esta atitude de respeito pelo foro interno, pela sacralidade da consciência de cada religiosa, não só não foi respeitada (…), mas foi mesmo contrariada em várias ocasiões e por vezes denegrida em público”.
Exemplificando, as religiosas foram “obrigadas a abrir a sua consciência exclusivamente à sua superiora local, e ainda por cima por escrito”. Deste modo, com a informação que lhe era transmitida, “a superiora podia utilizar, e de fato utilizava, aquilo de que tomava conhecimento para orientar a comunidade”.
Conhecendo tudo o que as religiosas sentiam e viviam interiormente, ela conseguia “exercer um domínio de fato sobre as suas consciências, decidindo tudo sobre as suas vidas, até mesmo de quem podiam ser amigas, com quem podiam estar em contaco, isolando as religiosas mais problemáticas”.
Livreto das Constituições da Comunidade refere o ano de 1982 como o dos “primeiros passos” e o de 1985 como aquele em que foi redigido um primeiro documento de “linhas fundamentais” da sua vida religiosa.
As Constituições da Comunidade cita 1982 como o ano dos “primeiros passos” e o de 1985 como aquele em que foi redigido o primeiro texto de “linhas fundamentais” da sua vida religiosa.
O rol de problemas não acaba aqui. Censurar e desqualificar quem expressava críticas; obrigar as religiosas a relatarem à superiora os pormenores do que se passava nas pequenas comunidades locais, criando um clima de desconfiança em vez de favorecer relações fraternas; a confusão entre falta de disponibilidade para a superiora com a falta de disponibilidade para Deus – tudo isto fez da superiora o centro da Comunidade e do poder uma dominação, para citar palavras do decreto.
Reconheça-se que nem tudo é atirado para aquela que foi a superiora da Comunidade Loyola, já que, para o bispo comissário, as constituições da instituição “favoreceram a formação deste estilo de governo”, não garantindo “um equilíbrio de controlo e de limitação dos órgãos de cúpula”.
Por outro lado, ainda que esse texto normativo assegure a liberdade de escolha do confessor, limita, por outro lado, a liberdade de escolha da direção espiritual, ao circunscrevê-la ao próprio instituto, entre as irmãs, mas não unicamente à superiora.
Em contrapartida, seria de questionar porque é que o comissário critica de forma tão contundente a irmã Ivanka Hosta e é praticamente omisso quanto a responsabilidades de conselheiras ou superioras, muitas das quais, comprovadamente, acompanharam por dentro o que se passou. A exigência de fidelidade total explica tudo?
Refira-se, finalmente, que o bispo Libanori cumpriu todos os requisitos que as normas da Igreja Católica preveem para garantir os direitos dos que são objeto de inquirição e de punição. Neste caso, comunicou à irmã em causa a abertura do inquérito contra ela, ao que a visada respondeu. Enviou-lhe, depois, o projeto de decreto, ao qual ela também apresentou uma declaração de defesa. O decreto disciplinar com a repreensão e restantes penalizações, este domingo publicado pelo 7MARGENS, data de 21 de junho, ainda que ao que sabemos, só bastante depois foi dado a conhecer. Avisada teve, ainda aqui, a possibilidade de recorrer para o Dicastério para a Vida Religiosa.
O 7MARGENS, que sabe há largos meses onde se encontra Ivanka Hosta, tentou repetidamente contatá-la, bem como à sua superiora direta, antes e depois do surgimento deste decreto. A resposta foi, de todas as vezes, o silêncio.
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Comunidade Loyola: um sistema montado para vigiar, punir e abusar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU