26 Setembro 2023
O cuidado com a casa comum pode ser considerado um dos grandes impulsos do pontificado de Francisco, algo que será reforçado mais uma vez com a publicação da segunda parte da encíclica Laudato Si', prevista para 4 de outubro, e que tomará a forma da exortação apostólica com o título Laudate Deum, como o pontífice revelou em uma recente audiência com 216 reitores e diretivos de universidades públicas e privadas da América Latina e do Caribe, um evento organizado pela Pontifícia Comissão para a América Latina (PCAL) e pela Rede de Universidades para o Cuidado da Casa Comum (Laudato Si').
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Os reitores e diretores de universidades, representando mais de 4 milhões de estudantes, em uma audiência que durou mais de duas horas, discutiram como iniciar juntos processos de diálogo social e transição justa. Dom Robert Prevost, prefeito do Dicastério para os Bispos, o Cardeal Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, a Dra. Dolores Sánchez Galera, do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, Dom Vicenzo Paglia, presidente da Academia para a Vida, e Dom Lucio Ruiz, secretário do Dicastério para a Comunicação, participaram do encontro dos reitores.
Os grupos de trabalho abordaram quatro temas: Crise ambiental: mudança climática, água e biodiversidade; Crise econômica: economia, tecnologia e tecnocracia; Crise social: degradação social, desigualdade e reação fraca; Crise cultural: desemprego e migração.
Reitores de universidades latino-americanas (Foto: Vatican Media)
Com relação à crise ambiental, que consideram da maior gravidade, listaram algumas preocupações específicas do continente: o Aquífero Guarani, a biodiversidade, as mudanças climáticas, o extrativismo insustentável, a Amazônia, a falta de liderança política e empresarial, a ambição econômica excessiva e a cultura do descarte. A partir daí, expressaram seu desejo de criar uma força transformadora capaz de influenciar positivamente os formuladores de políticas com suas pesquisas e conhecimentos, rumo a uma cidadania ecológica integral. Para isso, promoverão ações e educação ambiental no território e perguntaram ao Papa sobre as questões que não podem ser ignoradas.
Sobre a crise econômica, eles denunciaram uma realidade em que a tecnologia nem sempre está a serviço do desenvolvimento dos mais necessitados, o que afeta a pesquisa e a produção de conhecimento nas universidades. Diante dessa realidade, mostraram o papel fundamental que as universidades podem desempenhar na busca de alternativas a esse modelo, por meio de ações concretas orientadas para o bem comum, a formação de "líderes que liderem o caminho". Por essa razão, pediram ao Santo Padre que os orientasse na formação desses líderes transformadores em relação à gestação de uma tecnologia a serviço da vida, um modelo econômico voltado para o desenvolvimento humano integral e sustentável.
As condições de vida que geraram uma cultura do descarte, a migração forçada e a crescente desigualdade são uma expressão da crise social. Nesse sentido, foi destacado que o trabalho perdeu seu lugar como centro da organização social, denunciando a desigualdade presente na América Latina, com a falta de acesso a bens básicos, que afeta os mais vulneráveis e é consequência de uma injusta distribuição internacional da riqueza, com uma pobreza que também é cultural, o que exige um diálogo intergeracional nas universidades. Por isso, perguntaram ao Papa Francisco sobre formas de educação universitária baseadas em valores humanistas e no diálogo fraterno, e como criar uma rede de jovens que, a partir da "melhor política", proponha soluções e organize a esperança.
Por fim, em relação à crise cultural, que gera desemprego e migrações forçadas, foi feita a proposta de uma "Cidadania Global", construindo pontes e derrubando muros, promovendo a integralidade do conhecimento por meio de uma abordagem inter e transdisciplinar. Isso levou a perguntas ao Santo Padre sobre como contribuir para melhores políticas públicas para o trabalho decente e a livre escolha de onde morar, influenciando o debate cultural, atualmente interferido pela mídia antidemocrática.
Em suas respostas, o Santo Padre falou de uma "cultura do descarte. Ou uma cultura do usa e joga fora", que se explicita em "uma cultura do mau uso dos recursos naturais, de não acompanhar a natureza a um desenvolvimento pleno e de não deixá-la viver. Essa cultura do descarte prejudica a todos nós". De acordo com o pontífice, "há uma cultura do descarte que está acontecendo o tempo todo, há uma falta de educação para usar as coisas que sobram, para refazê-las, para substituí-las na ordem do uso comum das coisas. E essa cultura do descarte também afeta a natureza".
Francisco em audiência com reitores latino-americanos (Foto: Vatican Media)
Em vista dessa situação, ele insistiu na urgência de voltar ao uso adequado da natureza: "Hoje a humanidade está cansada desse desuso, ou mau uso da natureza, e precisa voltar ao caminho de saber como usar bem a natureza. E como a natureza é usada, uma palavra que pode parecer estranha, eu diria, diálogo com a natureza, diálogo". Algo que será alcançado por meio da criação de redes, e ele incentivou as universidades a fazê-lo, com o que ele chamou de "organizar a esperança", o que ele explicou dizendo que "os jovens de hoje têm o direito a um cosmos equilibrado e têm o direito à esperança, e nós temos que ajudá-los a organizar essa esperança, a tomar decisões muito sérias a partir desse ponto".
O Papa propôs uma "cultura regenerativa", fruto de "uma crise econômica em que nem sempre se está a serviço do desenvolvimento dos mais necessitados", algo que ele chamou de "cultura da expropriação", para a qual ele apontou que "todos nós temos o direito ao uso da natureza". Em suas palavras, ele disse estar preocupado com as universidades de "tipo científico abstrato. Elas não usam a realidade, mas a ciência, uma ciência abstrata, não verdadeira, e assim caminham sobre teorias econômicas, teorias sociais, tudo é teoria, mas nunca aterrissam" nas realidades dos mais necessitados.
Em seu discurso, ele deu um rosto aos descartados, "homens e mulheres, povos inteiros que deixamos na estrada como lixo, não é mesmo? Temos que nos conscientizar de que usamos a riqueza da natureza apenas para pequenos grupos por meio de teorias socioeconômicas que não integram a natureza, os descartados".
Ele também pediu alternativas para ajudar a superar a crise ambiental, pedindo invenções para proteger a natureza, ressaltando que "os jovens que treinamos precisam se tornar líderes nesse ponto, convencidos". Nesse momento, ele revelou o nome do que vem sendo chamado de complemento da Laudato Si', uma exortação apostólica que será lançada em 4 de outubro e se chamará "Laudate Deum", que ele definiu como "olhar para o que aconteceu e dizer o que precisa ser feito".
Diante do processo de degradação ambiental existente, Francisco o vê como algo que também se manifesta na "degradação das condições de vida, na degradação dos valores que justificam essas condições de vida, porque elas andam juntas". Nesse sentido, a desigualdade "se torna evidente na falta de acesso a bens básicos e surgem todas aquelas visões que sociologicamente, de fato, sem mencioná-las, são feitas, não verdadeiras, das mulheres, dos povos originários, dos afrodescendentes, das pessoas com habilidades diferentes", sublinhou.
Em suas palavras, ele denunciou abertamente o extrativismo, afirmando que "quando esse modelo extrativista vai adiante e entra nas pessoas, eu extraio a dignidade das pessoas e isso acontece, nunca um modelo extrativista geológico, por assim dizer, vai sozinho, ele é sempre acompanhado pelo modelo extrativista humano, a dignidade da pessoa é extraída, ela é escrava, em outras palavras, ela é escrava. E, por favor, coloque isso na cabeça dos jovens, valorize a educação, para que eles saibam valorizar essas situações e dizer claramente que isso se chama escravidão".
Reitores de universidades latino-americanas (Foto: Vatican Media)
Com relação à política, ele a definiu como uma vocação nobre, enfatizando que "a vocação mais nobre da pessoa humana é a política. Treinar nossos jovens para serem políticos, no sentido mais amplo da palavra. Não apenas para atuar em um partido político, que é um grupo pequeno, mas para ter uma abertura política e saber dialogar com grupos políticos com maturidade, a política não é uma doença, na minha opinião é uma vocação mais nobre em uma sociedade, porque é o que leva adiante os processos de desenvolvimento".
Com relação à crise migratória, que ele considerou um drama muito sério na Europa, ele disse que "não se resolve com uma sociedade de ajuda mútua, não, não. Aqui há uma questão humanística e uma decisão política, há decisões que são humanas e cristãs". Por essa razão, ele pediu aos participantes da audiência que "como uma honra à humanidade que sofre, esse problema deve ser tratado em suas universidades, mas com a densidade humana que ele tem", insistindo que "o migrante deve ser recebido, acompanhado, promovido e integrado. Se não conseguirmos integrar o migrante, fracassamos", dizendo que mandar os migrantes de volta, algo que é feito na Europa, "é criminoso".
Ele pediu que as universidades entendam que não são apenas um lugar para "aprender coisas" e, portanto, educar em três linguagens humanas, "a linguagem da cabeça, do coração e das mãos. De tal forma que eles aprendam a pensar o que sentem e o que fazem, a sentir o que fazem e o que pensam, e a fazer o que sentem e o que pensam". Por fim, ele convidou as universidades a serem "criativas diante da realidade e dos desafios, formadoras e não apenas informadoras".
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Papa Francisco revela aos reitores latino-americanos o título da “segunda parte” da Laudato Si’: Laudate Deum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU