13 Setembro 2023
"A lógica de controle e verificação estatal, que encontro no exterior, parece uma utopia em nosso país. Mas nem mesmo isto convence os jovens migrantes daqui a desistir".
A reflexão é de Renato Zilio, padre e missionário scalabriniano, autor de Dio attende alla frontiera [Deus espera na fronteira] (EMI, 35ª edição). O artigo foi publicado por Settimana News, 08-09-2023.
Rabate. Uma estranha e imensa compaixão: é isso que sinto. À noite, saindo da casa onde moro, depois de fechada a porta, olho automaticamente para a parede ao lado... Escondido entre os carros estacionados, na calçada, agachado como um cachorro está Ibrahim. Ou Mohammed com um amigo, ou Abdesalam... em suma, jovens migrantes subsaarianos, talvez apenas maiores de idade. Eles têm um sonho na cabeça, uma ideia fixa, pregada na cabeça: chegar à Europa.
Lambem uma lata de sardinha ou chupam um iogurte espremido nas mãos: um jantar muito miserável. Em vez disso, têm fome e sede de dignidade. "A dignidade humana tem a característica de estar ausente precisamente onde se presume estar presente e de aparecer sempre onde não está", observa Karl Kraus.
Parece uma verdadeira aposta feita consigo próprios, com a sua família, com o seu povo: poder atravessar para Espanha, vivo ou morto, inchallah! Atacam dez, vinte vezes as três barreiras farpadas de 7 metros e um sistema de segurança totalmente testado como o de Ceuta. Raramente com sucesso.
Eles não tem nada a perder. Só têm uma imensa coragem inconsciente, uma juventude para negociar pela liberdade. Enquanto conversam comigo, eles reviram os olhos para a esquerda e para a direita, desconfiados de tudo. Eles podem cair repentinamente em um ataque e ser transportados instantaneamente para a fronteira com a Argélia ou para o deserto. Mesmo que Marrocos tenha a grande nobreza de permitir viver no seu território mesmo sem documentos...
Vidas jovens que só inspiram compaixão. Sabendo que este país é apenas um corredor (onde podem ficar presos durante meses ou anos), mas vêm de longe, atravessando o Níger, Mali, a Argélia, desertos e fronteiras. Vivem sob um sol que lhes queima a cabeça e os ombros, estendendo a mão na rua por um dirham. Eles se aproximam, sem palavras, com uma expressão humilde e suplicante no rosto. “Para ter dignidade é preciso passar por muitas indignidades”, escreveu alguém. No fim das contas encontram no bolso o valor de dois, três euros, às vezes nada. Uma vida errante que só inspira compaixão.
"Père, il n'y a pas de choix!" (Pai, não há escolha!), dizem-me convencidos e resignados. Convencê-los a voltar para casa revela-se uma missão quase impossível. De qualquer forma, ninguém está esperando por eles lá. Na verdade, ninguém quer vê-los novamente. Jovens amaldiçoados. Forçados a avançar contra tudo e contra todos. Vivem, dormem, mordiscam e se movimentam como animais, avistados de longe, pois possuem a pele negra.
Eles são os lutadores de hoje pela dignidade! Por uma vida que valha a pena ser vivida. E paradoxalmente a culpa é deles. Eles sabem que eles – jovens fugitivos há anos – são a esperança das suas próprias famílias. Eles não podem se dar ao luxo de ceder.
Até os bispos de lá levantam a voz contra esta hemorragia de juventude, que está a devastar ainda mais os seus países e a empobrecê-los. "Faça propostas, dê-nos alternativas!", eles insistem, mas sem obter resposta. Como missionário, nômade e migrante há mais de quarenta anos em diferentes países onde se falam francês, inglês ou mesmo árabe, na Europa e na África, o meu coração dói. Estes jovens lutadores atormentam a minh'alma: lutam contra os moinhos da nossa indiferença, pela vida e pela morte.
Faço todo o possível para lhes explicar que a Europa não é o país de Bengodi. Conto o que ouço de jovens senegaleses, togoleses... que chegaram além, no meu próprio país, em território veneziano. Chegando por mar, em meio a mil vicissitudes, eles me ligam e me contam. Outro dia ao telefone, Mamadou gritou-me: "Père, aqui vivemos como escravos!"
Estão amontoados num “acampamento”, uma grande casa antiga, cerca de setenta jovens, de várias nacionalidades, em quartos com 9 colchões e apenas um sanitário, com a autorização de curta duração quase vencida.
A cooperativa os alimenta, descarregando uma vez por mês os alimentos, que eles próprios deverão preparar. Eles me mandam uma foto de uma dose mensal cada: 5 batatas, 3 cebolas, 1 pote de molho de tomate, 1 litro de óleo, 1 lata de ervilha, alguns biscoitos... sem arroz que eles adoram, sem fruta, sem carne. "Para jovens que comeriam o mundo!", como dizem de onde eu venho. Lembro que meu avô paterno era muito mais atento à alimentação dos seus animais.
A lógica de controle e verificação estatal, que encontro no exterior, parece uma utopia em nosso país. Mas nem mesmo isto convence os jovens migrantes daqui a desistir. Na verdade, outro dia havia muitos, durante a oração, gritando viva! porque um deles conseguiu saltar para a Espanha.
No próximo domingo, porém, farão “o sacrifício” por Abdullah, 18 anos, que desapareceu outra noite no mar. A notícia se espalhou aqui imediatamente como um raio. Todos trarão algo para uma grande refeição juntamente com algumas orações muçulmanas. Emigrar é um fenômeno individual, mas também um fato coletivo: aqui pode experimentá-lo em primeira mão.
E como missionário, muitas vezes me vem à mente a história dos Três Reis Magos. Depois de caminharem incessantemente por montanhas e vales, perseguindo uma estrela, eles alegremente compartilharam seus tesouros. A estrela destes jovens é a Europa... "Porque é o país onde nos respeitamos!", me diz um deles. Eu olho nos olhos deles. Olhos lindos e perdidos, de um jovem pisoteado na própria terra: sem oportunidades, sem trabalho, sem perspectivas, sem futuro.
E seus tesouros? Sim, a sua juventude, o desejo de fazer, o desejo imenso de cada migrante de ter sucesso, de tomar a vida com as próprias mãos, o sentido de responsabilidade por uma família deixada para trás e de ser ajudada... Sim, porque o milagre foi realizado: chegaram finalmente à Europa! Assim que seus presentes chegam até nós, nós os jogamos no chão, no lixo. Eles se tornam jovens desperdiçados.
Até mesmo a língua italiana, devido a uma portaria recente, é desencorajada de ser ensinada. Fazer revirar na sepultura aquele famoso escritor português que escreveu: “A língua é a terra onde nos encontramos”. Sim, talvez você prefira não o encontro, mas o confronto? Você opta pelo desperdício? Talvez esteja se preparando uma sociedade selvagem, à margem da humanidade...
Essa compaixão que me domina, no fundo, chama-se vergonha. Eu me sinto envergonhado. Diz-se: “O homem é o único animal que enrubesce, mas é o único que precisa disso”.
Por fim, lembro-me da enorme emoção e surpresa de Rachid Benzine, um marroquino, que caiu, por acaso, um dia enquanto lia o Evangelho. Ele escreve isso em seu livro publicado na França. Ele caiu em Mateus 25 e absolutamente não conseguiu entender. "E o Rei da glória dirá: 'Eu era um estranho e vocês me acolheram…'” Mas como é possível! Mas que grande homem! Um rei que se identifica com os miseráveis, os necessitados, os últimos da terra!
Sim, talvez esta página do Evangelho ainda nos seja desconhecida. Mas chegará o tempo do julgamento de Deus sobre o amor. Palavra do Senhor.
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Jovens migrantes: Europa? Um sonho… Artigo de Renato Zilio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU