24 Setembro 2011
A Igreja morre ou vive como "sujeito de verdade" não por fidelidade às suas nobres origens, mas por um testemunho autêntico de uma mensagem cristã que deve se reformular diante de uma sociedade pluralista não mais hegemonizada, nem da Igreja como instituição, nem do cristianismo como cultura.
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 23-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Dizia Karl Kraus que a linguagem é a mãe, e não a escrava do pensamento. Não por acaso os discursos de Bento XVI na Alemanha ressaltam um Joseph Ratzinger em que a função de papa não pode esconder a vocação do teólogo: isso já era acontecido em Regensburg, em setembro de cinco anos atrás.
Em seu discurso no Bundestag de Berlim, Bento XVI joga no ataque, com uma crítica do positivismo jurídico e de Hans Kelsen, o antagonista do pensador jurídico do catolicismo romano como "forma política" (e pensador do nazismo) Carl Schmitt.
O presidente do Bundestag, o católico Lammert, lhe lembra que a história da Alemanha é totalmente percorrida pela história do cristianismo: o Sacro Império Romano, a Reforma, o Iluminismo teológico da Aufklärung alemã, o Kulturkampf anticatólico, a Constituição pós-nazista da Alemanha cristão-democrata, até o célebre debate Habermas-Ratzinger de 2004.
Mas é o Parlamento o seu símbolo mais alto, que, no maciço ornamento neogreco ao lado da Porta de Brandenburg, traz a inscrição "Ao povo alemão": uma dedicação e um aviso ao mesmo tempo. Apesar do boicote anunciado por uma centena de parlamentares do SPD, dos Verdes e do Linke, um Papa Bento XVI descontraído e irônico dirige o sorriso para o Bundestag, quando afirma não querer fazer "propaganda para este ou aquele partido político".
Mas o alemão do papa é nítido e claro quando ele vai ao centro do discurso, que inicia com uma citação bíblica do Primeiro Livro dos Reis: é a passagem em que o rei Salomão pede a Deus "um coração dócil, para que eu saiba fazer justiça ao teu povo e saiba distinguir o bem do mal".
O papa escolhe a sua primeira citação dessa parte da Bíblia, os Livros dos Reis, que são uma história da decadência moral e política do poder.
O discurso do papa se concentra em torno da relação entre poder e direito, razão e verdade: um poder desligado da verdade torna-se tirânico; um direito separado da verdadeira razão produz injustiça. Ao abraçar uma ideia de razão positivista separada da fé, a humanidade se perde; se a Europa abraçar esse tipo de razão, ela perde a si mesmo e ao seu papel.
Volta o tema das raízes cristãs da Europa, a herança cultural de um continente que Bento XVI desde sempre (especialmente no discurso de Regensburg de setembro de 2006) vê como o culminar da Kultur cristã, o lugar em que se desenvolveu a ideia da dignidade da pessoa humana e do direito natural à luz da fé.
O percurso geográfico do cristianismo de Bento XVI é claro: em Jerusalém, a humanidade descobriu o Deus da revelação bíblica; em Atenas, ele se deu os conceitos filosóficos para compreender o caráter não irracional da fé; em Roma, ele elaborou os instrumentos jurídicos para cristianizar o Império Romano – um império com o qual o cristianismo católico romano se casou providencialmente, no leito de morte, inserindo-se como único herdeiro.
O Império Romano não morreu sem testamento, e até agora a Igreja Católica Romana exerceu uma função vicária como cola histórica, jurídica, ideológica e filosófica no Velho Continente. Da sua Alemanha, o papa manda uma mensagem para a Europa, com as palavras de Santo Agostinho: se você tirar do poder o direito fundamentado na verdade, "o que distingue o estado de um grande bando de ladrões?".
Para um papa que quer novamente o rei Salomão, a Alemanha Oriental descristianizada parece responder com os novos bárbaros, os piratas, o partido dos hackers que entrou no Parlamento da cidade-Estado de Berlim nas eleições do domingo passado com um programa que prevê, entre outras coisas , uma separação total Estado-Igreja e uma secularização radical das instituições na Alemanha.
Nas últimas décadas, Joseph Ratzinger reinterpretou a Igreja, como cardeal antes e depois como papa, como "sujeito de verdade" (não por acaso, a Roma vaticana, no próximo ano, se prepara para festejar o 20º aniversário do Catecismo Universal mais do que o 50º aniversário do Concílio Vaticano II).
Mas a Igreja morre ou vive como "sujeito de verdade" não por fidelidade às nobres origens de Jerusalém-Atenas-Roma, mas por um testemunho autêntico de uma mensagem cristã que deve se reformular diante de uma sociedade pluralista não mais hegemonizada, nem da Igreja como instituição, nem do cristianismo como cultura.
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Ratzinger, Salomão e os piratas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU