19 Setembro 2011
Não se conhecem os detalhes do "preâmbulo" confiado à Fraternidade São Pio X dos lefebvrianos. Mas é claro que o pivô do confronto gira em torno do Concílio Vaticano II.
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 16-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Bento XVI fez um daqueles atos que quase certamente deixarão a sua marca sobre o futuro da Igreja universal. No dia 14 de setembro de 2011, de fato, a Santa Sé entregou aos lefebvrianos um "preâmbulo doutrinal": a assinatura embaixo desse documento é um passo exigido aos lefebvrianos para a entrada novamente na comunhão com Roma da sua pequena mas influente comunidade integrista.
Não se conhecem os detalhes do "preâmbulo" confiado à Fraternidade São Pio X dos lefebvrianos para um período de estudo e de consulta que deverá durar previsivelmente alguns meses.
Mas é claro que o pivô do confronto gira em torno do Concílio Vaticano II. Desde o fim do Concílio em diante, em 1965, Lefebvre e os seus acólitos construíram a identidade teológica e cultural do seu movimento integralista em torno da rejeição do Concílio, e em particular em torno da recusa dos fundamentais elementos de novidade do Magistério conciliar: ecumenismo, diálogo inter-religioso, liberdade religiosa também para os não católicos, diálogo entre Igreja e mundo.
O professor Galli della Loggia deve estar feliz, ele que, há poucos dias, lamentava o fato de que estaria de moda entre os católicos o fato de ser de esquerda: a "master narrative" dos lefebvrianos para a explicação da história contemporânea é que todas as heresias teológicas encontraram cumprimento na heresia política por excelência, a comunista, que, por sua vez, teria sido a ideologia inspiradora do herético catolicismo conciliar dos últimos 50 anos.
Com o Concílio Vaticano II, a Igreja arquivou o casamento forçado com o fascismo e o autoritarismo, e começou a aceitar uma moderna concepção de democracia e de sociedade aberta.
Com esse recente movimento de abertura do pontificado de Bento XVI aos lefebvrianos, essa passagem decisiva na história da Igreja corre o risco de se tornar uma moeda de troca usada para lidar com prelados ultrarreacionários, cuja nostalgia pelo fascismo só é igual à desfaçatez com o qual a propagandeiam.
Depois do escândalo do começo de 2009, o bispo lefebvriano e negacionista Williamson usa de mais cautela, mas outros prelados membros ou próximos do movimento continuam viajando pelo mundo celebrando, por exemplo, missas em honra ao marechal Pétain, aqeuele que fez da "França de Vichy" um disposto colaboracionista na Alemanha nazista.
Bento XVI fez esse movimento decisivo às vésperas de dois encontros importantes, como a viagem para a Alemanha da próxima semana e, no final de outubro, o encontro inter-religioso de Assis, sobre o qual os lefebvrianos jogaram, desde a primeira edição de 1986 em diante, rios de tinta e de ódio denunciando como heresia aquela intuição profética de João Paulo II.
Mas o jogo de pôquer entre Roma e os lefebvrianos já dura mais de 30 anos, e muitas são as dívidas teológicas contraídas durante o pontificado de João Paulo II e ainda não pagas. Se os lefebvrianos aceitarem o "preâmbulo doutrinal", é claro que não mudariam a sua opinião sobre o Concílio Vaticano II, considerados por eles como o esgoto de todos os erros e dos desvios doutrinais que afligiram a Igreja nos últimos 50 anos. Portanto, deve ficar claro que uma nova acolhida aos lefebvrianos na Igreja Católica contemporânea implicaria em colocar entre parênteses o valor do Concílio e a sua função como garantia do compromisso da Igreja Católica com o diálogo inter-religioso e com o judaísmo, com o reconhecimento da liberdade de consciência, com a proteção da liberdade religiosa e com o ecumenismo e a paz entre os povos.
No centro da cultura teológico-política dos lefebvrianos, estão a rejeição da democracia (dentro da Igreja, mas não só), de todas as liberdades modernas, da lição da experiência trágica da Segunda Guerra Mundial e em particular a rejeição do antissemitismo racista e do Holocausto.
A concepção dos judeus como "deicidas" é parte importante da "tradição católica" defendida pelos lefebvrianos. A política italiana e europeia se equivocaria ao tratar essa questão como um assunto interno da Igreja Católica, ou como um curioso episódio folclórico posto em cena por uma franja extrema e colorida, sem capacidade de influenciar a direção da marcha do catolicismo contemporâneo: um catolicismo que havia obtido do Concílio um importante ensinamento da trágica história do século XX.
No dia 14 de setembro de 1936, Pio XI pronunciava-se publicamente sobre a Guerra Civil Espanhola e abençoava a insurreição armada de Francisco Franco, assumindo claramente um dos dois lados e abandonando a linha de cautela mantida até esse momento.
Esse discurso de setembro de 1936 foi (como recém se descobriu graças a pesquisas no arquivo secreto do Vaticano ) um dos pontos de virada na aceitação da opção fascista por parte da cultura política do Vaticano do início do século XX: outros tempos, outras emergências. É preciso se perguntar a quais emergências responde, em setembro de 2011, a abertura vaticana aos lefebvrianos.
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O sim aos lefebvrianos que liquida o Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU