19 Agosto 2023
Deus quebrou o arco de guerra, porque entendeu que a “reação simétrica”, a reciprocidade, tão promovida pelas Igrejas, nada mais é do que deixar que o mal defina a pauta.
O comentário é de Carlotta Testoni, publicado por La Barca e il Mare, 16-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A “Terceira Guerra Mundial em pedaços”, como o Papa Francisco a chama, acrescenta todos os meses novos “pedaços” de conflitos e de dores, especialmente para a população civil, até que, assim como os monstros das lendas, os vários fragmentos se unirão, e será uma catástrofe.
Alguns “desenhos e mapas” do monstro já estão se delineando, e o tempo para remediar é cada vez mais curto.
Dois livros recentes me parecem trazer algumas soluções de esperança: o de Riccardo Cristiano, intitulado “Una mano da sola non applaude”, e “Pace, non violenza, Bibbia, Chiese e società”, de Lidia Maggi.
O primeiro texto, publicado por ocasião do 10º aniversário do sequestro do jesuíta Paolo Dall’Oglio, fala desse religioso que se tornou um posto avançado da reconciliação não só entre os filhos de Abraão, mas também entre Oriente e Ocidente, entre as pessoas. O texto de Maggi, junto com uma intervenção de Leo Lenzi, faz parte do livro “L’arco deposto”, do projeto Molte Fedi. A questão é filosófica e prática ao mesmo tempo, mas também bíblica e de fé para os cristãos.
Como impedir que as guerras eclodam? Como fazer cessar aquelas em curso? Como aplicar a justiça entre as sociedades e os Estados? E ainda: quem é o agressor, quem é o invasor, quem criou o casus belli? Superior stabat lupus, longeque inferior agnus… Existe “a guerra justa”? – Deus quer. Deus está conosco. Matem todos eles, Deus reconhecerá os seus.
Três milênios de reflexões filosóficas e históricas, dois milênios de cristianismo, e a paz, aquela justa, a de Deus, ainda não existe.
Às vezes parece que o ser humano não aprendeu nada. Nem com os erros, nem com as tragédias, nem com as guerras devastadoras de seu passado.
Mas, como sempre, cada um vive em seu tempo, e por isso é preciso arregaçar as mangas também neste tempo, tão precário e inquietante.
Nos anos 1980, o padre Paolo Dall’Oglio fundou a comunidade monástica de Al-Kalil em Deir Mar Musa al-Habashi, o Mosteiro de São Moisés, o Abissínio, no deserto ao norte de Damasco, um lugar de diálogo entre cristãos e o mundo islâmico.
Em 2011, ele propôs soluções de paz, convivência e democracia para a Síria atravessada pelos levantes populares; por isso, foi expulso do regime de Bashar al-Assad. Ao voltar ao país para tentar novamente ajudar no diálogo, em particular entre curdos e representantes do ISIS em Raqqa, ele desapareceu no dia 29 de julho de 2013, talvez raptado por extremistas islamistas, embora muitas pessoas próximas a ele não acreditem nessa versão, já que o jesuíta era amado e respeitado pelos muçulmanos.
Sua solução, já praticada com os extremistas islâmicos, era “entrar no coração” do interlocutor, experimentar, tentar o diálogo e a relação a todo o custo.
Mas, infelizmente, isso às vezes tem que ser integrado com a defesa. O próprio Papa Francisco disse em 2022 sobre o direito de defesa: “Defender não só é lícito, mas é também uma expressão de amor à pátria. Quem não se defende, quem não defende algo, não a ama; pelo contrário, quem defende, ama”.
O Pe. Paolo havia citado os resultados de seus encontros com os padres comprometidos contra a máfia: “A forma militar é necessária, assim como é necessária a não violenta [...] as iniciativas positivas de não violência devem sempre nos convidar a buscar uma solução alternativa, mas não nos autorizam a recusar a solidariedade a um povo que leva em frente a luta pela liberdade e pela democracia com os meios de que dispõe”.
Ele falava da sua Síria, mas hoje podemos aplicar seu pensamento à Ucrânia, à Nigéria, à Tunísia…
Mais uma vez, ser cristão nos leva ao paradoxo: tudo pela não violência e pelo diálogo, mas também pela defesa dos indefesos e da liberdade democrática.
Para abuna Paolo (meu pai Paolo) a guerra é o instrumento do Pântano, um conjunto de máfias, mercadores e fabricantes de armas, corrupção, ditaduras, racismo, egoísmo, dominação, poderes, crueldade, que estão presentes em muitos, muitos lugares e em muitos Estados. Eles podem ser combatidos em primeiro lugar pelo conhecimento, depois pela relação e pela fraternidade que deriva do fato de sermos todos filhos de Adão.
Lidia Maggi, como biblista, também contou uma história semelhante. O mal é tão difícil de combater que, mesmo quando Deus, arrependido e decepcionado com sua criação, decidiu destruí-la, não foram só a família de Noé e os casais das espécies animais que subiram na arca, mas também o mal.
Deus quebrou o arco de guerra, porque entendeu que a “reação simétrica”, a reciprocidade, tão promovida pelas Igrejas, nada mais é do que deixar que o mal defina a pauta. A Bíblia também pode ser lida como uma contínua discussão, interrogação, diálogo em torno do mal, em relação ao qual Jesus, como sempre, oferece à nossa capacidade limitada um caminho, uma sugestão, uma chave.
Sobre o patrão que, no Evangelho de Mateus (13,24-43), intima seus servos a deixarem crescer o joio semeado pelo inimigo junto com o trigo, Santo Agostinho diz que Deus, em seu amor sem limites, quer dar tempo para que o joio se transforme em trigo.
E sobre o trecho de Mateus (5,38-48), Lidia diz que Jesus quer interrogar a maldade e, ao pedir ao discípulo que faça duas milhas a quem pede uma, sugere que, ao nos tornarmos companheiros de viagem por um tempo mais longo, tentemos estender e mudar a relação.
Tudo muito difícil, mas tudo muito necessário.
Pensemos e falemos sobre isso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Reflexões sobre guerras e conflitos, com Lidia Maggi e Paolo Dall’Oglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU