Não há reforma da Igreja sem reforma da teologia.
Piero Coda, teólogo nascido em Cafasse, na província de Turim, 68 anos, é secretário geral da Comissão Teológica Internacional (CIT). Presbítero da diocese de Frascati, lecionou por muitos anos na Lateranense e agora é professor no Instituto Universitário Sophia de Loppiano, do qual foi reitor desde sua fundação em 2008 até 2020. Foi presidente da Associação Teológica Italiana de 2003 a 2011 e atualmente é Diretor do Centro de Estudos da Escola Abbà da Opera di Maria/Movimento dos Focolares. O Papa Francisco o chamou para coordenar a CTI em setembro de 2021. Seus estudos, que o distinguem no panorama teológico, há anos vem se concentrando no tema da Ontologia Trinitária: para a editora Città Nuova é editor de um Dicionário Dinâmico que já chegou ao quinto volume.
Piero Coda (Foto: Reprodução YouTube)
Com Monsenhor Coda, "L'Osservatore Romano" continua sua sucessão de entrevistas sobre a necessidade de uma refundação teológica do pensamento.
A entrevista foi concedida a Andrea Monda e Roberto Cetera, e publicada por L’Osservatore Romano, 27-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Poderíamos iniciar pedindo a sua opinião sobre o estado atual da teologia. Existe a sensação de que muitas vezes a teologia tem dificuldade em acompanhar as ideias inovadoras propostas pelo Papa Francisco. Permanece uma certa autorreferencialidade da reflexão teológica, tanto na "conservadora" como na "progressista", que parece não ter acolhido aquela indicação para a "missionariedade" da teologia solicitada pelo Papa Francisco na "Veritatis gaudium".
Acho que a impressão é verdadeira: existe uma certa inércia, pouca criatividade e o impasse causado pela recusa em se livrar do peso de posições pré-concebidas. Observando a situação do ponto de vista da Comissão Teológica Internacional, instituída por Paulo IV após o Vaticano II, diria assim: nas primeiras décadas após o Concílio, o empenho teológico concentrou-se em analisar as grandes diretrizes que emergiram com clareza e profecia da sessão conciliar. Esse fato levou a um reposicionamento geral: a teologia mudou de cara, renovando-se no conteúdo e na metodologia.
Agora nos encontramos em uma nova fase, que é propiciada pelo ministério do Papa Francisco, mas responde em sentido mais amplo ao que o Espírito fala hoje à Igreja e opera – não sem contrastes – na história. É uma fase em que a teologia está tentando, não sem dificuldade, interceptar a onda do Espírito Santo. Muitas vezes, porém, corre-se o risco de dar dois passos para a frente e um para trás... Trata-se de acolher e implementar com criatividade as linhas propostas pela Constituição Apostólica Veritatis Gaudium. É um espírito que anima muitos jovens teólogos, preparados, sinceramente eclesiais, abertos, capazes de estabelecer um diálogo nas diversas fronteiras. E isso no âmbito das Igrejas locais, em contato direto com os diversos contextos culturais, mas ao mesmo tempo com o olhar voltado para a “cosmópolis” – como diria Bernard Lonergan – numa gestação bastante complicada.
Assim, por exemplo, na Itália, onde a teologia justamente começou a falar de forma mais incisiva em língua italiana. Por isso, na primeira vez que me encontrei com o Papa Francisco, disse a ele: "Saiba: a teologia italiana está com o senhor". Penso no diálogo vivaz com a filosofia de matriz secular, característica da teologia italiana há pelo menos 30 anos. Intelectuais proeminentes como Severino, Cacciari, Galimberti, Vitiello dialogam e continuam dialogando com seriedade e sincero interesse com o mundo teológico. O mesmo acontece em relação ao mundo científico, mesmo que de forma incipiente: nas ciências geralmente pecamos por uma preparação aproximada. E, também, em relação ao mundo da arte e das novas linguagens. Dito isso, eu estaria sendo insincero se não dissesse que a maneira de fazer teologia nas faculdades e seminários muitas vezes está ultrapassada. Uma contradição que se revela, aliás, na própria Veritatis Gaudium: depois de um Proêmio que descortina pradarias sem limites, segue uma parte normativa de arcabouço quase casuístico, que não corresponde às intenções.
Talvez possamos indicar também outro elemento que caracteriza essa tendência dos novos teólogos: partir da experiência humana, mais do que da conceituação metafísica. Alguns criticam dizendo que é uma teologia sociológica. Mas partir do homem, que é "a glória de Deus", é o sinal principal da religião da Encarnação.
Sim, essa sensibilidade e esse estilo arquivam uma teologia abstrata e remota da vida. Mas estamos apenas na metade do caminho. Devemos partir do evento de Jesus, o Verbo, o Filho de Deus/Abbá que se faz carne na história, abrindo-nos sem hesitação ao Sopro (o Espírito Santo!) dessa novidade decisiva que pulsa na experiência humana e a inspira. Só assim podemos encontrar o âmago ontológico do entendimento da realidade doada em Jesus: o sentido de ser que nele se abre no "sempre mais" e no "sempre além". Não é algo sobreposto e acidental em relação ao humano: é o que - diria São Tomás - o conduz a uma inesperada, mas sempre desejada, plenitude. Uma limitação da teologia contemporânea é muitas vezes a falta de audácia e vigor teorético: isto é, de visão e desempenho.
O pensamento teológico está enraizado na novidade do evento cristológico, e por isso deve ter a parrésìa e a coragem do testemunho convicto e persuasivo da verdade sempre maior. Como dizia o Cardeal Pellegrino: não ser homem ou cristão, mas homem e cristão, homem enquanto cristão. A teologia, hoje como sempre, deve oferecer sua contribuição insubstituível para a definição de um novo humanismo. Não mais, apenas, na forma do humanismo integral imaginado por Jaques Maritain, mas daquele humanismo que o Vaticano II propiciou: o humanismo da relação e da alteridade, o humanismo daquela reciprocidade que gosto de chamar ‘reciprocante’, porque aproxima para ir adiante e além, juntos, em Cristo. Não basta declamar a novidade do Evangelho, é preciso pensá-la e encarná-la em paradigmas de pensamento, ação e gestão da realidade que estejam à altura da graça de Cristo e da consciência de hoje.
No entanto, partir do homem implica um problema. A encarnação determinou na teologia uma certa fixidez do humano na similaridade com Jesus de Nazaré. Mas o homem muda. Está sujeito a um processo evolutivo que só em parte pode influenciar. Muda fisicamente, mas também mentalmente e psicologicamente. A mudança antropológica é evidente a um olhar minimamente atento. E, aliás, tornou-se muito rápida. Pense, por exemplo, nas relações entre os gêneros, ou na exteriorização da memória - que, recordemos, produz identidade - nas inteligências artificiais. E nós corremos o risco, para citar o cardeal Hollerich, de falar com um homem e uma mulher que não existem mais. Então talvez uma renovação da teologia deveria começar com uma revisitação do pensamento antropológico.
A antropologia teológica, como muitas vezes a representamos - não tenho medo de afirmar - deve ser em grande parte arquivada: certamente não na substância, mas na interpretação que é dada. Porque é abstrata e idealista. Apresenta uma visão do mundo e do homem de exculturação. É preciso revivê-la, repensá-la e repropô-la: certamente na fidelidade à inspiração evangélica e à tradição, mas, precisamente em virtude disso, capaz de se tornar apaixonante e historicamente significativa, ou seja, dizer o que é perene e imperdível na forma em que hoje é chamado a tomar forma.
Jesus não promete: "o Espírito vos guiará em toda a verdade" (João 16, 13)? A razão do atraso é que não incorporamos no discurso teológico (apesar das solicitações do Papa Francisco que nos lembra que o tempo é maior que o espaço) a percepção da realidade marcada hoje pela descoberta da "quarta dimensão", pela qual o espaço ganha sentido na medida em que é dinamizado pelo tempo: o que foi definido como "cronotopo". Um espaço sem tempo no final implode sobre si mesmo. A percepção da "quarta dimensão" ajuda a intuir como o evento de Jesus transfigurou completamente a situação do nosso ser.
Dizer que a dimensão do tempo é introjetada na dimensão do espaço significa, por exemplo, resgatar o significado da memória ao vinculá-la ao kairós que vivemos e abrindo-nos ao advento daquilo que nos chega do cumprimento a que estamos destinados, e que nos é dado "de uma vez por todas" (Hb 9, 12) na Páscoa de Jesus que foi levantado ao Pai para “atrair todos a si” (cf. João 12, 32).
Fossilizar a figura de Jesus é uma contradição em termos. É em relação ao sempre novo advento do Reino de Deus que Jesus era, é e será. Não devemos temer a constatação incontestável e, portanto, desafiadora de que o cristianismo hoje, depois de 2.000 anos, está entrando em uma nova fase. A saída da cristandade não é a saída da comunhão com o Pai graças ao Espírito Santo no Filho feito carne. Memória, presença e profecia reconfiguram o tempo, introjetando-o no espaço e dando-lhe forma. É o advento de Deus em Jesus que se realiza na relação com o próximo, o outro, aquele que invoca o meu cuidado, que de alguma forma está à margem da vida.
Esse discurso sobre o "cronotopo" como condição para a realização do Reino nos leva a outro âmbito 'fraco' da teologia, o da escatologia. Paulo em "Atos" 17 no discurso no Aerópago liga os dois aspectos. Com o sinal da profecia afirma que Deus criou o espaço e o tempo para que pudéssemos procurá-lo, ainda que tateando. E não é por acaso que no seu discurso associa essa constatação (que inacreditavelmente antecipa em dois milênios as descobertas do século passado) à Ressurreição de Jesus. Então, na lógica de um repensamento também da escatologia, quero lhe perguntar: dado que a ciência concorda em afirmar a existência de múltiplas dimensões espaço-temporais, é imaginável que o “além", aquele que chamamos de Reino, poderia ser configurável em outra dimensão espaço-temporal?
Eu penso que sim. É uma hipótese de pesquisa que devemos levar em consideração e que não entra em conflito com o depósito da fé, mas o descortina para um sentido mais realista e envolvente: porque o além me alcança aqui e agora, na relação e na abertura para um mais.
Temos a necessidade de sair de uma narração fabulística tanto do momento criativo quanto do escatológico. Isso certamente daria nova credibilidade à fé para o homem moderno.
É um compromisso no qual estamos atrasados e no qual devemos trabalhar: mas primeiro é preciso experimentá-lo. É assim se põe em jogo o valor missionário da teologia que o Papa Francisco pede, para devolver horizontes e esperança a quem está confuso e desanimado diante dos desafios, realmente de época, que se apresentam. É preciso desvendar - para citar Antonio Rosmini usando um lema poderoso - a ontologia, ou seja, a verdade e a beleza da realidade que brotou das entranhas da Revelação. Jesus inaugurou aquela nova forma de ser em que somos todos - todos! - inseridos por seu dom.
Como ensina o Concílio na Gaudium et Spes no n. 22, “devemos manter (o latim é forte: tenere debemus) que o Espírito Santo dê a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido”, que é o centro da história. Existe um “cronotopo” crístico, pneumático, pancósmico (como Theillard de Chardin tratou de ilustrar) que é o espaço/tempo em que vivemos, acreditamos, amamos, pensamos, agimos. Entrar nessa dimensão de vida e de pensamento - e aí habitar em fraternidade e convívio com o universo criado - é hoje um imperativo para a teologia: não existe reforma da Igreja sem reforma da teologia.
É uma tarefa imensa, que exige uma boa dose de coragem. Porque é preciso recomeçar a pensar desde o início. Por exemplo, a teologia do pecado original.
Uma realidade transversal. Anos atrás, a Congregação para a Doutrina da Fé trabalhou em um documento sobre o pecado original. Mas não resultou em nada. A meditação responsável e aberta sobre a realidade da tentação, da queda e da redenção é, sem dúvida, central - como mostra a narrativa de Gênesis e o cumprimento de sua promessa em Jesus - e deve ser recolocada em circulação com uma hermenêutica adequada, a partir da afirmação da Epístola aos Romanos de Paulo: "onde o pecado abundou, superabundou a graça" (cf. Rom 5, 20). A chave de tudo é a graça de Deus, que é amor e misericórdia. O dado - que é um dom - da liberdade da criatura humana, da sua vulnerabilidade e da gravidade do mal, deve ser decifrado sob essa luz. Que é aquela de Jesus crucificado, até padecer a noite do abandono, e dali ressuscitado para sempre, primogênito entre muitos irmãos e irmãs, primícias de novos céus e nova terra.
E posta em relação também com a passagem paulina sobre as "dores de parto", isto é, com aquela fragilidade do humano que faz parte da criação, do homem perfectível. Uma fragilidade que o homem moderno vê hoje, à luz do evolucionismo darwiniano, com um olhar distinto.
Não podemos mais concordar com uma leitura simplificada da questão da evolução do cosmos e da crise ecológica que - com o advento do Antropoceno - assume hoje proporções que colocam em risco a sobrevivência da humanidade e da casa comum que a hospeda e é confiada aos seus cuidados. Falta uma reflexão aprofundada sobre a conexão entre a consciência da vocação humana e, portanto, do desenvolvimento do cosmo no qual ela se dá, e o desafio da liberdade. É o tema fundamental da modernidade. A liberdade está condicionada não só por aquela ignorância que pode até ser invencível, mas também por uma má consciência: ou seja, por aquele pecado contra o Espírito que - atesta Jesus - é o único que não é perdoável. É preciso pensar e gerir a fragilidade e vulnerabilidade da condição humana levando a sério a tentação da má consciência: ou seja, a força trágica do mal que brota de uma liberdade exercida contra a verdade do homem, da criação, de Deus. É o mistério da liberdade. E o mistério da graça.
A psicanálise no século passado e as descobertas das neurociências neste século parecem ter invalidado a concepção de liberdade na base do pensamento cristão. No sentido de que o homem seria muito menos livre do que estamos acostumados a acreditar.
O que nos permite penetrar na relação entre liberdade e graça é o tempo e a relação. Pagamos um alto preço por uma certa objetivação e coisificação da graça. Como se tratasse de um conteúdo ou de um estado que se atribui a priori, e a liberdade fosse simplesmente a faculdade de aceitá-lo ou rejeitá-lo. A verdade é mais profunda. Trata-se de abrir-se, acolher e deixar-se moldar por uma relação viva e pessoal: com Deus, em Cristo e, n’Ele, com os outros. A graça se dá nos encontros que acontecem ao longo de nossa existência. Para responder à sua pergunta: é preciso expor o núcleo profundo da liberdade que certamente perpassa, no seu exercício, uma série de condicionamentos culturais e históricos, sem, contudo, ser extinta na fonte da qual brota: que tal é porque vive do contato vivo com a graça, ou seja, na relação com aquele Alguém que a quer, a faz existir, a liberta, a introduz - para usar as palavras da Dei Verbum - à comunhão de vida consigo mesmo no abismo de sua Vida que é Luz e Amor. Um Alguém (com letra maiúscula) que sempre se expressa por meio de um alguém (com letra minúscula). Se perdermos esse sentido da liberdade, perdemos o humano.
E a criação. Psicanálises e neurociências são abençoadas por nos mostrar o nosso condicionamento, mas - como ensina um mestre da filosofia como Luigi Pareyson - o condicionamento próprio do humano é uma antena que permite interpretar em liberdade a Verdade e moldar à sua Luz a existência. A condição e condicionamento histórico e cultural nunca é o esmagamento ou até mesmo a aniquilação da liberdade. Um Deus que não entregasse sua criatura à liberdade produziria autômatos. Ele mesmo seria um autômato. Não o Deus vivente como o percebemos meio que às cegas, mas com incoercível sentir. E como Ele se revelou e se doou a nós até o fim em Jesus.
O tema do condicionamento inevitavelmente nos leva às considerações éticas e morais. Dentre elas, por exemplo, seria necessário lançar luz sobre o tema da influência do social sobre os comportamentos do indivíduo, primeiro entre eles o ‘imprinting’ que a família, como primeiro núcleo social, exerce sobre a nossa forma de agir. Mas isso também, aliado com as mudanças antropológicas de que falávamos antes, está mudando. A família (quando existe) não é mais aquela que ainda idealizamos em nossa pastoral. Basta pensar, por exemplo, na mobilidade das famílias de hoje. Ou nas enormes mudanças que ocorreram na relação homem-mulher.
A própria sociologia induz a um repensamento de alguns axiomas que considerávamos imutáveis e que interferem na doutrina ética ensinada pela Igreja. O tema da relação homem-mulher é paradigmático. Para usar uma expressão um pouco provocativa, acho que hoje, mais do que uma "questão feminina", nos encontramos diante de uma "questão masculina"! Refiro-me à perda da identidade do homem masculino, incapaz de se adaptar à emancipação irreversível - e abençoada! - do feminino. O homem estava acostumado a idealizar - e aprisionar - a mulher: nos papéis da mãe, da irmã, da esposa ou... da amante, e em todos os casos, muitas vezes, da serviçal. E ele administrava esses papéis.
Mas não se relacionava com a mulher como amiga. A extraordinária beleza da categoria da amizade, maravilhosamente evocada no Cântico dos cânticos, não se encaixava no esquema das relações entre os sexos. Hoje a mulher finalmente se recusa a ser engaiolada dentro desse esquema redutivo e até distorcido, elaborado apenas por homens. E o homem não sabe mais por onde se virar. É necessário redescobrir e implementar a dimensão originária da reciprocidade. O que é algo mais e diferente da complementaridade. É um estado de crise, o atual, que afeta a opacidade e a indeterminação da identidade sexual. Recuperar o frescor e a alegria da reciprocidade de ambos os sexos, portanto, para recuperar a plenitude da pessoa na vivência de afeto, liberdade e solidariedade. Nosso atraso na leitura desse fenômeno é erroneamente atribuído à anacrônica fixidez de uma idealização da "sagrada família".
O que, na verdade, representa mais um modelo que, liberto das incrustações devocionais que a ele associamos, reluz como o cofre das relações humanas baseadas na afetividade, na liberdade e na solidariedade. Não esqueçamos que Jesus não só assume a sua humanidade de Maria, mas também a amadurece a partir da relação com José. Essas considerações valem não só para a família, mas também para as comunidades de vida religiosa: que não estão menos em crise do que as famílias. A família de Nazaré é modelo para todos, tanto para os casados como para os que vivem a virgindade, ambos na lógica do advento do Reino. A evanescência do papel paterno que hoje registramos penetrou muitas vezes também entre os clérigos, que não sabem mais ser pais, sendo filhos e irmãos. Um dos méritos do Papa Francisco é sugerir um novo olhar sobre a presença da figura de José pai e de Maria mãe em nossa vida de discípulos. Mas há um longo caminho a percorrer.
À luz de um repensamento sobre as conotações da graça, seria necessário tratar também dos principais instrumentos de sua expressão: os Sacramentos. Em entrevista recente ao nosso jornal, Elmar Salmann disse que mais ainda do que o número de fiéis, o preocupa o declínio da prática sacramental.
A linguagem sacramental, tal como a propomos, é cada vez mais complexa e indecifrável para as novas gerações: que também - e talvez mais do que nunca - têm sede da água viva que dela brota. Até mesmo os teólogos que afirmam querer inovar muitas vezes permanecem prisioneiros de uma autorreferencialidade desconcertante. É necessária uma revisitação, no espaço daquela ressemantização da experiência viva do advento do Reino que se realiza em Jesus e que, precisamente, ocorre graças à mistagogia sacramental. Deveríamos simplesmente recomeçar experimentando com admiração e alegria que o evento da Páscoa de Cristo se torna presente por meio desses gestos santos de proximidade que manifestam e atuam a sua graça na nossa vida.
Como escrevia Dietrich Bonhoeffer, do campo de concentração, em seus pensamentos para o dia do batismo relatados postumamente em Resistência e Submissão: “O antigo espírito, depois do tempo da sua incompreensão e da sua efetiva debilidade e depois de um período de retiro, de repensamento interior, de prova e de cura, saberá criar para si novas formas... não devemos ter pressa, é preciso saber esperar... nas palavras e nos gestos da tradição intuímos algo totalmente novo e desconcertador, sem contudo conseguir apreendê-lo e expressá-lo”.
Voltando ao começo da nossa conversa: partimos do pecado original: a ser repensado; depois a graça: a ser repensada; depois a liberdade: a ser repensada; depois os sacramentos: a serem repensados. Se estivéssemos em seu lugar, Monsenhor Coda, pensando no trabalho que precisa ser feito - partindo do pressuposto de que não há reforma da Igreja sem reforma da teologia -, entraríamos em pânico...
Na verdade, a tarefa para a qual fui chamado pelo Papa Francisco a serviço da CTI, e agora também na Comissão Teológica do Sínodo, vivo-a com serenidade e paixão, e não me parece tão pesada nem dramática. E que, pelo contrário, me estimula. Porque - do ponto de vista pessoal - está em sintonia com o chamado que me foi feito há muito tempo: viver e aprender junto com os outros a caminhar no seguimento de Jesus hoje, olhando com olhos de amor o mundo que somos. A missionariedade da teologia invocada pelo Papa Francisco, confirma-me o que tenho tentado viver, em pequena escala, no exercício do ministério teológico. Dois elementos sempre me inspiraram, porque eu os via pouco presentes e ativos: a relação e o tempo, isto é, a fraternidade e a história. Amar a Deus com a inteligência para amar com inteligência o homem e a criação, que são o seu amor. Amor que hoje exige algo a mais de inteligência e discernimento. Esse é o desafio da teologia.
Uma busca sem dúvida atraente e hoje, digamos, aventurosa pela sua carga inovadora ainda que nos passos da tradição. Mas no final há o magistério….
O impulso inovador do Papa Francisco está aí para todos verem, mesmo que de forma não explícita. Porque pede para viver em estado de constante conversão. Como, de resto, o próprio Evangelho pede. Mas é preciso lembrar que a Dei Verbum no n. 8 coloca o magistério em terceiro lugar entre os fatores que dinamizam aquele caminho do Povo de Deus, que felizmente experimentamos hoje como caminho sinodal: o primeiro é o estudo da Palavra de Deus, ou seja, a sua compreensão na fé e na prática do ágape; o segundo é a experiência da vida de fé por meio do sensus fidei e os dons do Espírito Santo; o terceiro justamente é o magistério. Porque o magistério não faz senão receber, com o carisma de verdade e de orientação de que é dotado para servir, os frutos trazidos pela Palavra vivida no Espírito pelo Povo de Deus.
A propósito do caminho sinodal, quero acrescentar uma coisa: a teologia não se limita a estudar a sinodalidade, a teologia se faz sinodalmente. Estou convencido de que daqui a 50 anos o Sínodo sobre a sinodalidade será visto como hoje olhamos para o Vaticano II. Uma passagem marcante na história da Igreja. Na Comissão Teológica Internacional - desde a sua constituição - procuramos assumir esse estilo de trabalho sinodal que cria partilha e gera fecundidade. Estamos trabalhando justamente nos temas da mudança antropológica de que falávamos; e depois, quando se completam 1700 anos desde o Concílio de Niceia, iniciamos uma reflexão sobre o significado permanente e profético da confissão de fé nicena; finalmente estamos estudando a teologia da criação no enfoque de uma ecologia integral à luz da Laudato si'.
Monsenhor Coda, o senhor dedicou grande parte de seus estudos à Ontologia Trinitária. Por quê?
A Ontologia Trinitária é viver, pensar e gerir o sentido da nossa existência e da realidade em que vivemos à luz de Deus que em Jesus se chama Amor e nos doa o sopro do seu Espírito "sem medida". A oração de Jesus ao Pai não foi justamente: "para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste" (João 17, 21)? Portanto, caminhar sob o olhar de Deus Trindade e ver tudo sob essa luz. Logo após o Concílio, Jean Daniélou – naquela joia que é seu La Trinità e il mistero dell'esistenza - escrevia que o fundamento do ser é a comunhão. “Uma revelação prodigiosa – exclamava -.
Parece inverossímil que os cristãos, de posse desse último segredo das coisas, capazes de penetrar com o olhar de Cristo no abismo do mistério oculto em que tudo está imerso, não sejam mais conscientes da importância fundamental da mensagem que devem transmitir…
A plenitude da existência pessoal coincide, na Trindade, com a plenitude do dom de um ao outro". Daí um empurrão, julgo discriminador, para ler com novos olhos o que está em gestação no parto de proporções pan-humanas e cósmicas que investe o nosso tempo. Uma aventura apaixonante e bela, concreta e oportuna. Basta olhar - repito - para o processo sinodal em que a Igreja Católica está empenhada hoje, mas com o abraço universal, gratuito e convidativo proposto pelo Vaticano II, relançado pelo Papa Francisco e assumido com esperança pelo Povo de Deus.
É preciso um novo modo de pensar porque a Igreja, Povo de Deus e Corpo de Cristo como sinal e instrumento de união com Deus e de unidade do gênero humano (cf. Lumen gentium, 1), se torne o que é pela graça. Como intui o Papa Francisco: “A Igreja é “um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). Por isso, na realidade que denominamos de “sinodalidade” podemos localizar o ponto onde converge de modo misterioso, mas real, a Trindade na história.