08 Agosto 2017
Muitas vezes, quando eu visto a batina púrpura cardinalícia para as celebrações junto com o Papa Francisco, meu pensamento é levado de imediato a duas cenas antitéticas. De um lado, surgem em minha mente as imagens dos imponentes cardeais que Giacomo Manzù criou em uma série de esculturas a partir de 1938-39. São impressionantes, de fato, aquelas figuras hieráticas sentadas, fixadas no bronze de estrutura piramidal cujo vértice é formado pela mitra, envoltas na massa simples e poderosa da veste litúrgica, absortos em meditação mística, imersos em um horizonte atemporal. Por outro lado, eis que ao contrário avança o irônico e grotesco desfile de moda cardinalícia evocada por Fellini em uma sequência, de alguma forma hilariante, de seu filme Roma, de 1972, época em que, aliás, Paulo VI já havia há bastante tempo simplificado o suntuoso traje cardinalício, recortando, por exemplo, as longas caudas de capas purpúreas.
O artigo é de Gianfranco Ravasi, publicado por Il Sole 24 Ore, 06-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Esta premissa um pouco autobiográfica serve para trazer à cena algumas figuras de cardeais que atraem a atenção inclusive da cultura contemporânea. Eles surgiram como membros da hierarquia da Igreja de Roma (não por nada, cada um deles é ainda hoje titular de uma igreja romana, mesmo sendo bispo de outra cidade no mundo), os cardeais são desde 1059 os eleitores exclusivos do Papa. O seu número foi fixado em 70 pelo Papa Sisto V no ano de 1586, ampliado para 120, em 1973, pelo Papa Paulo VI, no entendimento de que eles, ao atingir 80 anos de idade, perderiam sua função de eleitores papais. Atualmente todo o Colégio Cardinalício - eleitores e não eleitores - soma pouco mais de 210. Gostaríamos de relembrar, entre todos eles, três personagens, dois do passado recente e um contemporâneo.
O primeiro é Michele Pellegrino, docente de literatura cristã antiga na Universidade de Turim, que Paulo VI escolheu de surpresa como arcebispo de Turim em 18 de setembro de 1965. A cidade era então atravessada por complexos problemas sociais que forçaram esse sacerdote suave, sensível, aberto e culto a sair das salas acadêmicas e ir para as ruas com sua efervescência de questões, muitas vezes duras e até mesmo dramáticas, e a fazer isso do ponto de vista evangélico. Respirava-se naquele período a atmosfera do Concílio, mas também germinavam aquelas turbulências da sociedade e da própria cultura que acabariam levando aos movimentos de 1968.
Está sendo publicado agora um volume que, com base nas atas de uma conferência do ano passado, desenha por diferentes ângulos o retrato desse intelectual que se tornou um pastor em tempo integral, capaz de estabelecer uma nova relação com o mundo do trabalho, infringindo o relacionamento privilegiado da anterior Igreja de Turim com os poderios econômicos, em especial com a Fiat. Enzo Bianchi, da comunidade de Bose, pessoalmente ligado a Pellegrino, traça um perfil que ilumina uma vida e um episcopado capaz de tecer uma intensa espiritualidade e uma rica teologia com ramificações muitas vezes retorcidas dentro da história e dos eventos terrenos. Claro que para completar a fisionomia desse grande cardeal, foram necessárias outras vozes que se aprofundaram nos diferentes horizontes atravessados por uma personalidade tão poliédrica. O resultado é um retrato tão deliciosamente acadêmico e científico, esboçado por Paolo Siniscalco e Clementina Mazzucco, enquanto a estreita ligação com o espírito e a doutrina do Concílio Vaticano II é ilustrada por Francesco Traniello e Carlo Ossola; a dimensão pastoral é pontuada por Oreste Aime, que faz uma referência à fundamental carta Camminare insieme (Caminhando juntos, 1972), enquanto a inspiração profética que lança o olhar de Pellegrino para além das contingências em que ele estava imerso é delineada por Roberto Repole. Submetido obviamente a críticas por parte de setores econômicos e políticos por expor seus interesses ocultos e até mesmo pelos ambientes eclesiais mais conservadores e debilitado fisicamente por seu incessante compromisso pastoral, o cardeal anunciou, em 01 de janeiro de 1977, sua renúncia, aos 73 anos. Em 1982, um acidente vascular cerebral deixou-o mudo, embora ainda pudesse ler.
Desde aquela época ficou hospedado no Cottolengo de Turim, onde faleceu em 10 de outubro de 1986.
Afim de Pellegrino, mas certamente mais conhecido e inesquecível é o outro cardeal que aqui relembramos. O seu nome provoca, de fato, forte emoção e é ainda muito ouvido: referimo-nos a Carlo M. Martini, arcebispo de Milão. A sua obra como pastor, intelectual, interlocutor com a sociedade, com a cultura, e até mesmo com o horizonte geopolítico e eclesial universal agora se cristaliza em sua volumosa bibliografia que muitas vezes nada mais é do que a redação de suas inúmeras intervenções públicas e de sua pregação (ele mesmo ironizava afirmando que não havia escrito nem lido muitos de seus livros). Não queremos, portanto, fazer uma referência a seus textos que são constantemente reeditados, mas a um curioso ensaio bastante surpreendente de um pesquisador da Universidade Estatal de Milão, Edoardo Buroni. Com impressionante habilidade ele estuda a linguagem dos Discorsi alla Città (Discursos para a Cidade) que todos os anos, por ocasião da festa do padroeiro Santo Ambrósio, o cardeal preparava para a cidade e para a diocese ambrosiana, um emblema sugestivo do diálogo entre a Igreja e a sociedade, entre o Lógos transcendente e a pólis imanente, no espírito da “encarnação” do divino no humano, típico do cristianismo.
É difícil explicar essa análise verdadeiramente "filológica", que parte do amplo círculo de oratória eclesial e de seu diálogo com a comunidade para se restringir às técnicas textuais e retóricas até chegar a um escrutínio quase microscópico de uma "linguagem cardinalícia, curial, áulica e ilustre", examinada não só na sua tipologia sintática e morfológica, mas inclusive em seus sinalizadores fonéticos e de pontuação. No final, porém, a busca se amplia para outro círculo maior que quer encontrar uma ligação entre as palavras de Martini e a Palavra sagrada, num contraponto harmonioso que também nesse caso, é realizado de forma muito meticulosa. "Aquelas de Martini - afirma Buroni - são palavras essencialmente claras, palavras levadas em consideração por crentes e não-crentes, palavras que incentivaram reflexões e que, por sua própria força, muitas vezes suscitaram reações contrastantes... não só dentro da cidade, mas também dentro da Igreja e do debate público em geral".
Concluímos com uma breve incursão no presente. Escolhemos entre os muitos testemunhos possíveis, aquele de um cardeal vivo, embora aposentado daquele que foi seu ministério pastoral, ou seja, como arcebispo de Barcelona, de 2004 a 2015. Trata-se do catalão Lluís Martínez Sistach que traçou um balanço de toda a sua experiência através de um diálogo com o jornalista Jordi Piquer Quintana. O resultado é um panorama muito sugestivo por pelo menos duas razões: por um lado, Barcelona é um baluarte da questão autonomista da Catalunha, que é muitas vezes é manchete nos jornais; por outro lado, estamos diante de uma metrópole extremamente vibrante no âmbito religioso, social e cultural.
As ruas que se ramificam por essas páginas tornam-se, portanto, uma espécie de mapa com o qual se devem confrontar todas as comunidades eclesiais e civis: basta pensar ao tema do urbanismo, do nacionalismo, do secularismo, da crise da família, do compromisso de caridade (a "Igreja samaritana"), do diálogo com os não crentes, do declínio da fé e da moral, da arte (quem não conhece o magnífico templo da "Sagrada Família" de Gaudi?) e assim por diante. Com uma convicção final: "A cultura cristã tem um futuro, se não quiser ser hoje uma cultura hegemônica, mas em diálogo com as culturas aportando a sua riqueza específica e enriquecendo-se com todo o bem que oferecem as outras culturas". E com uma conclusão provocativa: "Penso que hoje se fale muito da Igreja e pouco de Jesus Cristo. Cometemos um engano, e precisamos inverter a ordem".
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Grandes cardeais do século XX - Instituto Humanitas Unisinos - IHU