12 Fevereiro 2023
Para fazer uma reforma, não se pode simplesmente “conceder a palavra ao rito”, mas é preciso “reestruturar sua lógica”. Aquela descoberta da “participação ativa” não é uma “ênfase pós-conciliar”, mas o fruto de uma reelaboração teórica muito refinada, que não pode ser considerada como um equívoco.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 09-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um pequeno volume escrito a quatro mãos (R. De Zan – P. Sequeri, Celebrare. Bibbia e liturgia in dialogo, Roma: GBP, 2022), enquanto R. De Zan apresenta o culto no Antigo e no Novo Testamentos, P. Sequeri dedica cerca de 70 páginas ao tema assim formulado: “Ainda faz sentido falar de liturgia hoje? Reabilitação do eixo mistagógico da celebração eclesial” (p. 71-153). Gostaria de me deter brevemente sobre o texto de Sequeri.
Todo o texto é permeado por uma tese que é formulada desde o início de forma bastante drástica. Eis sua primeira formulação:
“Desde que os teólogos voltaram a falar de liturgia, e os liturgistas de teologia, a prática da liturgia começou lentamente a perder sua potência e seu encanto. O tempo do chamado rubricismo litúrgico tinha um encanto infinitamente superior ao daquele produzido pelo estruturalismo semiológico que o substituiu.” (p. 73)
A frase dá a entender, talvez até para além das intenções de quem a escreveu, que a perda de potência e de encanto é um dos produtos da “verbalização” da liturgia.
Diante desse diagnóstico simplista demais, a esperança (justa) é “que a liturgia volte a falar por si mesma (e não de si mesma)” (p. 74).
Embora reconhecendo (pp. 75-76) o grande progresso feito pela teologia tanto no que diz respeito à relação entre sacramento e celebração quanto no que diz respeito à recomposição antropológica da ação ritual, esse enriquecimento não afetou a experiência “nos tons e nos ritmos que eram habituais na minha infância pré-conciliar” (p. 76).
Daí uma segunda afirmação muito arriscada:
“O enriquecimento do sentido teológico do sacramento, na língua eclesiástica, multiplicou os mistérios sem necessidade.” (p. 79)
Ao contrário, deveria permanecer central aquela “comunidade do altar”, que é o lugar onde a Igreja se “detém” e se “faz”.
Uma longa e apaixonada ilustração dessa qualidade “inoperante” da comunidade eucarística (p. 80-103), porém, chega a uma terceira afirmação extremizada:
“A Igreja pós-tridentina, que se afirma blindada dogmaticamente, encheu a Europa de maravilhas (arquitetônicas, pictóricas, musicais, poéticas), que ainda hoje são exibidas como a prataria de família que enobrece uma prática não mais frequentada com igual entusiasmo. A Igreja do diálogo com a cultura e a arte continua sendo mortificada por resultados mais do que modestos”. (p. 104-105)
Sequeri denuncia as “patéticas formas de nostalgia devota” e de “apologética anacrônica” (p. 105), mas às vezes também adota sua linguagem. Mais serenas e cheias de intensidade positiva são as páginas da segunda parte (pp. 108-144), que começam com uma releitura iluminadora do pensamento de Hugo de São Vítor sobre a diferença entre imagem e sacramento, e que permitem a Sequeri construir um caminho interessante e original de aproximação entre sacramento e celebração.
O texto se encerra com um capítulo com um título forte: “A invenção de uma nova cultura do culto”, que visa a reunir o “minimalismo do sacramento e a exuberância da arte” (p. 149).
Esse projeto, como ficaria evidente se o quiséssemos ver, corresponde fortemente às melhores vozes que acompanharam as “palavras sobre a liturgia” há pelo menos um século. Justamente desse filão de reflexão, tão importante e em certos aspectos decisivo, não há nenhum vestígio no grande texto de Sequeri. Tento esclarecer melhor essa grave perplexidade.
A primeira observação que surge da leitura do texto deriva de uma carência que eu já havia notado em outros textos litúrgicos de Sequeri: falta completamente um cotejo com aquela história de “verbalização” da liturgia que inicia antes da metade do século XIX e que, depois, assume a forma de atos magisteriais e conciliares, e se traduz em uma grande reforma litúrgica. Não há vestígio de tudo isso no texto de Sequeri. Isso leva a alguns exageros bastante relevantes:
a) Por um lado, parece que o “sacramento” e a “liturgia” são um “ente de razão” (ou de fé) que não depende de condições históricas, culturais, eclesiais, mas que se gera a partir de si mesmo, sempre igual a si mesmo e diante do qual se pode “falar inoportunamente” ou “conceder-lhe a palavra”. Foram as “palavras sobre a liturgia” que permitiram, em um percurso de dois séculos, elaborar uma experiência da “forma ritual” que pediu uma “reforma abrangente” do culto cristão. Para fazer uma reforma, não se pode simplesmente “conceder a palavra ao rito”, mas é preciso “reestruturar sua lógica”. Aquela descoberta da “participação ativa” não é uma “ênfase pós-conciliar”, mas o fruto de uma reelaboração teórica muito refinada, que não pode ser considerada como um equívoco. Contanto que ainda se queira reconhecer que a “missa tridentina” precisava de uma profunda reforma para se tornar (também ritualmente e não apenas teologicamente) “comunidade eucarística” e não apenas “sacramento do altar”.
b) Uma certa indiferença em relação às formas rituais, que nunca adquirem a densidade concreta de um “ordo” (historicamente diferenciado), torna difícil para Sequeri distinguir a reação nostálgica da análise histórica. Tento identificar dois pontos frágeis dessa sua análise. Por um lado, como sempre notei nos textos de autores mais ou menos tradicionalistas, é fácil inverter a correlação entre causa e efeito nos discursos sobre a liturgia. Posso perdoar Messori por dizer que os problemas da liturgia começam com a Reforma do Vaticano II, mas é mais difícil aceitar isso de um teólogo como Sequeri. A tomada de palavra sobre a liturgia, que começou oficialmente há pelo menos mais de um século, se justifica justamente por aquilo que para Sequeri seria o efeito! Uma crise litúrgica aparece ainda no século XIX e suscita em Rosmini, Guéranger, Guardini, Casel e depois em Vagaggini, em Chauvet, em Lafont, em Bonaccorso respostas preocupadas em “restituir a palavra aos ritos”. Pergunto-me: por que é que Sequeri não reconheceu nesses autores a mesma intenção que tentou formular 100, 50 ou 20 anos depois deles, sem fazer a mínima referência a eles? Por outro lado, precisamente aqui se esconde também o segundo descuido: a produção artística da Igreja pós-tridentina e a afasia do último século não são simplesmente o fruto de uma “verbalização litúrgica”, mas também de uma passagem de paradigmas culturais que merecem uma análise menos drástica e menos polarizada.
c) Em terceiro lugar, estou muito impressionado com um fato: a teologia dos liturgistas (de todos os continentes), há pelo menos 30 anos, compreendeu que a recuperação da “mistagogia”, ou seja, a restituição da autoridade à ação ritual, é o grande desafio também para a Reforma Litúrgica. Por outro lado, a sucessão de gerações daqueles que “falam da liturgia” marcou também a passagem de tarefas diferentes. Entre os anos 1940 e 1980, precisávamos de estudiosos que reconstruíssem a lógica de todos os ritos cristãos. Sem esse trabalho, não se teria produzido nenhuma Reforma da liturgia. Sequeri sabe muito bem disso. A seriedade do trabalho realizado não impede, hoje, que os próprios liturgistas tenham identificado, há algum tempo, uma tarefa diferente, que pode ser chamada justamente de “mistagógica” e que consiste em libertar os ritos de “funções”, restituindo-lhes o caráter de “fonte”. É verdade que o trabalho pastoral ainda está em dificuldades nesse ponto, mas também é verdade que, pelo menos no plano teórico, não faltam propostas de qualidade, que não podem ser reduzidas a nada com um gesto apressado demais.
Um último ponto deve ser anotado. Além de algumas afirmações precipitadas e de uma forte ausência de dinâmica histórica, muitas das coisas que Sequeri escreve sobre o “eixo mistagógico” são totalmente fundamentadas. Mas pagam caro por uma certa “indistinção” de conceitos, que se referem ao Batismo, à Eucaristia ou ao altar em uma linguagem intemporal.
A pergunta é esta: sobre qual liturgia deve operar o eixo mistagógico a ser recuperado e do qual realmente temos uma necessidade urgente, a qual liturgia deve conceder a palavra? O texto de Sequeri não dá resposta nenhuma a essa pergunta e dá a entender, de modo indireto, a quase irrelevância da questão. Para responder a essa pergunta, é preciso tematizar a liturgia como “objeto de palavra”.
Como nos últimos anos Sequeri teve a oportunidade de apreciar o “paralelismo ritual” entre Vetus Ordo e Novus Ordo como “uma lição de estilo católico” produzida pelo Papa Bento XVI, mas depois também elogiou muito a superação do paralelismo ritual, recentemente realizado pelo Papa Francisco, estou curioso para lhe perguntar se o seu “eixo mistagógico” pode confiar tanto na “palavra da liturgia” a ponto de tornar indiferente qual liturgia deve ou pode tomar a palavra.
Por isso, na apreciação de muitas das esperanças que Sequeri delineia no nível de uma leitura mística, mistagógica e estética do culto, parece-me que, para permanecermos em equilíbrio na grande tradição católica, somos obrigados a um trabalho refinado, no qual o propósito compartilhado de “devolver a palavra à liturgia” passa sempre e inevitavelmente por uma “acurada palavra sobre a liturgia”, na qual as coordenadas históricas, teológicas, antropológicas e eclesiais de uma visão do culto nunca devem correr o risco de serem capturadas, de uma vez por todas, naquela rede de afetos e de apegos que nem sempre são guias confiáveis.
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Faz sentido falar de liturgia? A via mistagógica segundo Pierangelo Sequeri. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU