24 Novembro 2022
A redução “econômica” de um sacramento é certamente algo grave: mas não foi o Estado que começou a fazer isso, mas sim a Igreja, em um tempo totalmente diferente e com intenções bem diferentes.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em seu blog, Come Se Non, 22-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A proposta [do partido italiano de extrema direita Liga] de “incentivar o matrimônio católico” com um bônus, que prevê a possibilidade de dedução de 20% das despesas efetuadas com a cerimônia até o teto máximo de 20.000 euros, imediatamente suscitou reações indignadas. Um quadro muito preciso das questões foi delineado rapidamente por Luciano Moia no dia 21, no jornal Avvenire (em um artigo pontual que pode ser lido em italiano aqui). As palavras claras desse texto também incorporam as declarações firmes de Dom Paglia, que soam assim:
“O matrimônio para a Igreja é um sacramento, e um sacramento não se compra. O fiel que escolhe a celebração do matrimônio na Igreja não se deixa convencer a esse passo por deduções econômicas.”
Não se deve esquecer, no entanto, como o próprio Moia bem evidencia na segunda parte de seu artigo, que essa “redução econômico-jurídica” do matrimônio não é apenas fruto de um “grosseiro descuido” de alguns parlamentares da Liga, mas é também o resultado de uma “história” pela qual a Igreja Católica deve assumir uma grande parte da responsabilidade. Há uma autocrítica eclesial que é intrínseca ao “relançamento saudável” da escolha matrimonial. O Papa Francisco disse isso claramente naquele “decálogo de autocrítica” que encontramos no início da Amoris laetitia, onde ele especifica:
“É verdade que não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade” (AL 35).
Essa autocrítica é particularmente árdua, porque colide com um “sistema” que fez do princípio de autoridade sua razão de ser, sua identidade e sua honra. Gostaria de me deter brevemente sobre esse ponto.
Duas palavras latinas nos são úteis para entender o desvio “jurídico-economicista” em que caímos, quase sem perceber. Luciano Moia ainda nos ajuda de modo elegante, quando, no início de seu artigo, lembra como o Pe. Abbondio, no capítulo 2 de “Os noivos”, propõe a Renzo uma pequena lição sobre o matrimônio:
“‘Você sabe quantos são os impedimentos dirimentes?’ ‘Como o senhor quer que eu saiba de impedimentos?’ ‘Error, conditio, votum, cognatio, crimen, cultus disparitas, vis, ordo, ligamen, honestas, si sis affinis…’, começava o Pe. Abbondio, contando na ponta dos dedos. ‘O senhor está brincando comigo?’, interrompeu o jovenzinho. ‘O que quer que eu faça com seu latinorum?’”
A cena está carregada daquela ironia que Manzoni sabia orquestrar com tanta habilidade. Mas representa uma compreensão do matrimônio que, há cerca de um século, tornou-se possível na Europa, após o decreto Tametsi (1563). Com este, a Igreja Católica assumia como critério de validade do sacramento do matrimônio sua “forma canônica”. Pela primeira vez, o matrimônio tornava-se totalmente interno a um “ordenamento jurídico”.
O projeto de lei da Liga permanece substancialmente nessa lógica: e pretende incentivar a escolha do casamento “religioso” por meio de um “bônus”. É curioso ler a definição que o Dicionário Treccani dá de “bônus”: “Desconto, abono, espec. em âmbitos como os seguros e os transportes”.
Que o matrimônio é tratado como um seguro ou como um contrato de transporte, isso não é novidade. Grande parte das políticas econômicas “em favor da família” funcionam assim: com descontos, deduções ou incentivos, criando as condições para que a união, a geração ou o cuidado-assistência possam ser economicamente mais vantajosas.
A redução “econômica” de um sacramento é certamente algo grave: mas não foi o Estado que começou a fazer isso, mas sim a Igreja, em um tempo totalmente diferente e com intenções bem diferentes. Porém, a sobreposição completa e tendencialmente totalizante entre “ordenamento eclesial” e “lógica matrimonial” nasceu precisamente em meados do século XVI, na reação da Igreja Católica às transformações modernas. Foi a modernidade católica que inventou essa possibilidade.
Um sacramento “não se compra” nem se submete a condições, diz-se com razão. Mas a “forma canônica” é precisamente uma “condição” para que o sacramento seja válido. A partir dessa escolha, discutida então e discutível ainda hoje, decorre uma série de consequências inesperadas: por exemplo, a aplicação tendencial, cada vez mais estendida, das “condições de nulidade” a todo vínculo matrimonial; a pretensão de que apenas o ordenamento eclesial funda um vínculo válido; a luta contra toda normativa civil acerca do casamento e a contraposição paralela entre ordenamento canônico e ordenamento civil, até a possibilidade – realmente extrema – segundo a qual o ordenamento civil constrói uma lei que favorece a escolha do ordenamento canônico (algo que, no plano civil, colide com o princípio constitucional da paridade de tratamento).
Pode ser surpreendente, mas é um bom sinal, o fato de vir do mundo eclesial católico o protesto contra um procedimento que atestaria “uma escolha discriminatória entre matrimônio religioso e matrimônio civil”. É uma boa notícia.
Mas, por trás da questão, permanece o problema estrutural e sistemático da “cegueira” do ordenamento canônico em relação aos outros ordenamentos. Esse ponto crítico permanece intacto, enquanto a lógica totalitária e totalitária do Tametsi continuar sendo o estilo de fundo do modo de pensar o matrimônio, com uma exclusividade atribuída ao ordenamento eclesial que custa a se compor com as lógicas da natureza e da cidade. E que, portanto, em caso de crise, prefere “declarar a nulidade do vínculo” a reconhecer suas outras formas.
Por outro lado, a própria nulidade não foi elaborada, desde a origem, assimilando matrimônio e contrato? Aí está o ponto fraco da tradição, que a Amoris laetitia começou a modificar.
Foi dito com razão que o matrimônio é uma escolha livre, que não pode ser condicionada por um “bônus”. Porém, isso vale para todo matrimônio. Mas as políticas de incentivo trabalham justamente sobre a “conveniência”. O que acontecerá se, como é provável, o bônus for estendido a todos os casamentos (religiosos e civis)? Talvez se pedirá ao católico, que decidir se casar em Cristo, que assine uma declaração de “renúncia ao bônus”? Ou o recurso ao bônus poderá ser usado amanhã como “motivo de nulidade”?
Na realidade, as políticas de incentivo à união e à geração assumem muitas vezes a figura da “vantagem econômica”. Não devemos nos escandalizar demasiadamente com isso. Pelo contrário, deve-se enriquecer a percepção das “diversas formas de vínculo familiar” e de suas diferenças, sem introduzir, por lei, formas de discriminação ou de disparidades maiores do que as que já existem de fato.
No entanto, parece-me que o fato de um sujeito poder deduzir, na próxima declaração de renda, as despesas que fez com as flores ou com o jantar de casamento é um modo para reduzir ainda mais aquela experiência de gratuidade que justamente um matrimônio religioso deveria garantir, quase como símbolo máximo de toda convivência de fato. O matrimônio “religioso” é uma diferença de graça, uma diferença gratuita.
Assim, o incentivo econômico, inventado para favorecer uma experiência, facilmente se inverteria em um esvaziamento simbólico mais radical do ato matrimonial, de suas linguagens contingentes e de sua potência vital. Não há festa sem consumo, sem perda, sem pura gratuidade.
Contradizer essa sabedoria humana e eclesial por um prato de lentilhas seria uma forma indireta, mas feroz, de sermos levados não pelo Pe. Abbondio, mas pelas nossas próprias mãos, quase inconscientemente, a “brincar com nós mesmos”.
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O casamento religioso e um “bônus” para pagar menos impostos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU