10 Novembro 2022
Reconhecer que hoje existem famílias cuja lógica jurídica não é controlada pela Igreja, mas que realizam formas do bem de caráter primário, impõe o abandono de “regulamentos autorreferenciais” e a elaboração de formas novas (procedimentais e substanciais) de reconhecimento do bem relacional.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Come Se Non, 08-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não gostaria que as discussões e as necessárias polêmicas em torno do “rito tridentino” fossem apenas um motivo de distração, para concentrar a atenção em um único ponto crítico da vida eclesial e, assim, desviar de aspectos igualmente urgentes de “reforma” da prática e da doutrina da Igreja.
As recentes intervenções de Emanuele Tupputi, que é um dos mais ativos na recepção dos estímulos provenientes da Amoris laetitia, me convenceram a intervir de modo claro sobre uma distorção interna à tradição, tão grave quanto a nostalgia pelos ritos “de antes”.
Em particular, o último artigo que o autor publicou na revista online (e que pode ser lido aqui) mostrou os limites das categorias empregadas para resolver a questão da “consciência” dos cônjuges em relação à sua história de relação matrimonial.
Para começar a discutir a abordagem, desejo partir de algumas premissas, com as quais ilustro a “estranha” analogia entre a nostalgia pelo rito tridentino e as discussões sobre a “nulidade matrimonial”.
O fato de que hoje uma pequena parte da comunidade católica queira se referir ao “vetus ordo” para celebrar a fé não é, acima de tudo, uma questão de liturgia, mas de identidade eclesial, de autorrepresentação dos sujeitos e de compreensão da tradição. A reforma litúrgica modificou profundamente a compreensão da Igreja que celebra, dos sujeitos nela envolvidos e da tradição a que eles reconhecem pertencer. O espaço de uma “actuosa participatio”, que o rito pré-conciliar havia esquecido profundamente, reaparece no centro da experiência e exige novos sujeitos, novas ações, novos espaços e novos tempos. Permanecer (ou retornar) a Pio V significa não ter compreendido essa profunda mudança e/ou querer contradizê-la explicitamente. Como bem diz o Papa Francisco, na Desiderio desideravi, número 31:
“Seria banal ler as tensões acerca da celebração, infelizmente presentes, como se de uma simples divergência se tratasse entre sensibilidades diversas em relação a uma forma ritual. A problemática é antes de mais eclesiológica. Não vejo como se possa dizer que se reconhece a validade do Concílio – se bem que me surpreenda que um católico possa ter a pretensão de o não fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que exprime a realidade da Liturgia em íntima conexão com a visão de Igreja admiravelmente descrita pela Lumen gentium.”
Isso, porém, não vale apenas para a liturgia. Vale também para a compreensão das dinâmicas fundamentais da inteligência da vida dos cristãos, incluindo a dinâmica matrimonial, sobre a qual não é possível continuar pensando e agindo como se fazia há 600, 400 ou 200 anos.
Por isso, não gostaria que, comprometidos justamente em defender a reforma litúrgica das rajadas nostálgicas que a ameaçam, acabássemos não nos dando conta das formas superadas e inadequadas de compreensão da realidade e de solução das questões. Vejamos melhor em que sentido a nossa compreensão da “nulidade matrimonial” é a herança de uma solução tridentina que hoje não se sustenta mais.
A reflexão sobre a “nulidade do vínculo”, que inicia com o pensamento jurídico e escolástico medieval e que sofre uma inevitável aceleração depois do decreto Tametsi, baseia-se em alguns pressupostos de um mundo que não existe mais. Tentemos listar os fundamentais:
- trata o matrimônio como um “contrato”. Assim como existe uma antiga sabedoria humana e jurídica em torno da “nulidade dos contratos”, baseada no defeito de elementos objetivos ou subjetivos, assim também por analogia foi elaborada uma sabedoria sobre a “nulidade matrimonial”, que marcou a experiência jurídica de todas as comunidades (civis e religiosas).
- assume o horizonte da “conclusão do contrato” como o objeto da avaliação. Tudo é levado de volta ao “momento original” da expressão do consentimento, em que o matrimônio, como qualquer outro contrato, permanece ou cai.
- Depois do Tametsi, essa competência eclesial adquiriu um valor ulterior, uma vez que a Igreja assumiu a autoridade de garantir o fundamento do consentimento, que antes do Tametsi era confiado às lógicas naturais e civis. Isso tornou o ordenamento eclesial ainda mais compacto e completo, e progressivamente obscureceu as diferenças entre a dimensão natural, a dimensão civil e a dimensão eclesial do matrimônio.
- Com os desenvolvimentos modernos, a lógica da nulidade entrou em conflito com a lógica do divórcio, ostentando a pretensão de “descobrir objetivamente” o que os desenvolvimentos modernos confiavam, em vez disso, à disponibilidade dos sujeitos.
- É evidente que, nesse âmbito, a irrelevância da “história do vínculo” e da dimensão da “consciência do sujeito” tornava-se progressivamente uma questão que levava à forçação das categorias medievais e modernas, a ponto de construir ficções e mistificações inevitáveis a fim de resolver as histórias de vida dos sujeitos envolvidos.
O que tentei resumir aqui é o progressivo embaraço da tradição católica diante da mudança da história dos sujeitos, do vínculo e das famílias. Obstinar-se em remeter tudo às lógicas da “nulidade contratual” me parece uma forma de resistência que não se justifica mais, senão em um sistema autorreferencial, que se imuniza da realidade e pensa em resolver as questões, pondo ordem na escrivaninha do canonista.
O grande mérito da Amoris laetitia é ter tomado consciência, de modo límpido, da presença no corpo eclesial de casais cuja história matrimonial fracassou e não pode ser reconstruída mediante o recurso à “nulidade originária” do vínculo. Não por acaso, o autor do texto do qual parti, ou seja, E. Tupputi, move sua investigação a partir do número 84 da Familiaris consortio, em que João Paulo II fala da situação canônica dos fiéis divorciados recasados que “estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimônio irreparavelmente destruído nunca tinha sido válido”.
Essa representação, que por si só permanece sempre possível, torna-se uma espécie de “gargalo” ou de “funil”, se pretender assegurar, como via principal, uma solução possível para todas as crises matrimoniais. A ideia de que o matrimônio “nunca foi válido” é a pretensão extrema e muitas vezes a forçação processual que orienta a reconstrução da história dos sujeitos para uma lógica distorcida.
Isto deve ser dito abertamente: aqui ou mudamos as categorias de interpretação da história dos sujeitos ou permaneceremos vítimas do sistema do qual se perdeu o controle. Honrar a história dos sujeitos significa predispor categorias novas e procedimentos diferentes da “nulidade reconhecível”.
O ponto-chave da novidade está na superação da “autossuficiência” do ordenamento jurídico eclesial. Inaugurado na aurora das modernidades pelo Tametsi e depois consolidado, em um mundo totalmente diferente, pelo Código de 1917, essa opção historicamente contingente não foi verdadeiramente superada pela versão “pós-conciliar” do Código (1983), mas apenas pelas palavras claras com as quais a Amoris laetitia abre mais um espaço para a pastoral matrimonial no que diz respeito ao espaço jurídico.
Esse é o ponto sobre o qual os desenvolvimentos posteriores à Amoris laetitia devem necessariamente trabalhar. Ou seja, superada a “mesquinha” pretensão (AL 304) de identificar a vontade de Deus com a lei objetiva, surge para a Igreja o dever e o poder de operar em um contexto em que, juridicamente, sejam reconhecidos “outros ordenamentos” (naturais e civis) diferentes dos eclesiais e nos quais se realiza, parcial, mas eficazmente, a vida cristã.
Só isso permitirá reconhecer que existem “fracassos matrimoniais”, fruto de histórias e de consciências, e não simplesmente de “nulidades originais ainda não reconhecidas”. É óbvio que sair da solução tridentina não é nada fácil, nem no plano litúrgico nem no pastoral. Mas o Concílio Vaticano II nos indicou com clareza um caminho a seguir, com paciência, mas também com audácia.
Reconhecer que hoje existem famílias cuja lógica jurídica não é controlada pela Igreja, mas que realizam formas do bem de caráter primário, impõe o abandono de “regulamentos autorreferenciais” e a elaboração de formas novas (procedimentais e substanciais) de reconhecimento do bem relacional. Isso passa necessariamente não pelo fato de colocar entre parênteses o aspecto jurídico, mas pelo exercício de uma profecia também por parte do direito canônico na configuração de uma presença eclesial não mais compreendida como um ordenamento jurídico autossuficiente.
Esse desafio certamente é muito mais profundo e importante do que o conflito com os nostálgicos da liturgia de Pio V. E a nostalgia do Tametsi – de uma competência totalizante da Igreja, que não sabe mais distinguir entre lógicas naturais, lógicas civis e lógicas eclesiais – parece ser muito mais insidiosa e paralisante do que o apego às liturgias que o Concílio Vaticano II quis explicitamente superar.
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Rito tridentino e nulidade matrimonial: as analogias inesperadas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU