09 Agosto 2022
"Na discussão atual sobre a contracepção, não é uma mudança de doutrina que está em jogo, mas uma melhor fidelidade à relação complexa que, no ato de gerar, une em um único nó a ação de Deus e a ação do homem. Respeitar o nó, ao invés que cortá-lo ou desatá-lo, é a tarefa dessa fase da melhor teologia sistemática católica", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado no blog Come Se Non, 07-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma analogia singular permite descobrir como, em torno da questão dos contraceptivos, a doutrina católica do casamento e da sexualidade tenha sofrido uma transformação e uma polarização completamente em contraste com quase dois milênios de história. Poderíamos dizer que, diante dos novos desafios que os séculos XIX e XX apresentaram à Igreja, a Igreja reagiu aceitando uma polarização e uma simplificação da doutrina matrimonial e sexual que quase desfigurou sua tradição.
Em particular, os slogans que guiaram a reação, primeiro no final do século XIX e depois na primeira metade do século XX, introduziram uma forma de olhar a realidade que criou uma distância absoluta entre Deus e homem. Na realidade, essa leitura foi guiada por uma urgência que não é teológica, mas político-eclesiástica, ou seja, pela necessidade de uma defesa total da autoridade eclesiástica sobre matrimônio e sexualidade. Desta forma, uma teologia puramente eclesiástica e, portanto, preocupada em operar no plano da autoridade e do poder, esqueceu em grande parte a riqueza de pensamento com que a tradição pensou esses temas.
O que acontece entre os séculos XIX e XX encontra sua premissa na grande virada constituída pelo decreto Tametsi, com o qual a Igreja Católica pretende requisitar para si toda a experiência matrimonial e sexual. É interessante que a palavra que dá título ao decreto – “tametsi” – sinalize que os Padres Tridentinos estavam cientes do risco que propunham, ou seja, de superar todas as formas de casamento irregular ou clandestino que sempre haviam sido reconhecidas como válidas. Nesse "tametsi" há o sinal de uma virada institucional que introduz uma competência totalizante para a Igreja, primeiro entre os Estados modernos a burocratizar a relação com casamento e sexualidade.
O que acontece 50 anos depois no Ritual de 1614 é surpreendente: enquanto antes o consenso permanecia em segundo plano e o ato eclesial era a bênção, agora o centro do rito matrimonial é o consenso e a bênção torna-se marginal. Essa é a premissa de uma autoconsciência eclesial que acredita ter em si as competências sobre todos os níveis de experiência matrimonial e sexual. Observe-se que isso é algo totalmente novo, começa 1500 anos após o nascimento da Igreja.
Com o aparecimento dos estados liberais, surge, em primeiro lugar, uma nova competência sobre a união entre os cônjuges. A primeira reação da Igreja é negar qualquer competência que não seja a sua própria. Do ponto de vista sistemático, no entanto, é interessante ver quais argumentos são usados para justificar essa negação. Chama bastante a atenção o fato que se diga que é Deus quem une os cônjuges e não o homem. Dessa forma, o embate entre Igreja e Estado é deslocado para o plano teológico: a Igreja guarda o primado de Deus, enquanto o Estado tenta impor o primado do homem.
O mesmo acontece algumas décadas depois, no início do século XX, no plano da geração: é Deus quem faz nascer as crianças, não o homem, portanto todo método contraceptivo é negação de Deus e afirmação do egoísmo humano. Essa forma de argumentar nunca é encontrada na tradição anterior e é fruto de uma pressão cultural e contingente em que a Igreja Católica perde a riqueza da tradição. Se há algo claro na tradição anterior, é que as lógicas de união e de geração nunca são completamente divinas nem completamente humanas. Dividir a realidade em duas é muito útil para lidar com as dificuldades, mas não é um grande exercício de inteligência e prudência.
Essa forma de raciocinar continua até hoje e pode ser lida no documento ao mesmo tempo trágico e cômico daquele teólogo estadunidense, se quisermos chamá-lo de teólogo, que diz que a contracepção é mais grave que o aborto: de fato, enquanto o segundo suprime o fruto da geração querida por Deus e realizada por Deus, a primeira ousa tirar de Deus a própria possibilidade de gerar. Os sofismas antimodernistas que atravessam essa região do saber teológico são muito perigosos.
Encontramos, portanto, uma série de posições oficiais que constelam o século passado e em que a contracepção ou paternidade/maternidade responsável é muitas vezes reconduzida a esses argumentos menores e frágeis. O ponto de vista sistemático pede uma nova coerência entre compreensão do fenômeno e resposta teológica. Para trilhar esse caminho é importante recuperar a grande tradição sobre casamento e sexualidade, que foi muito mais livre e ousada do que pensamos, se tentarmos lê-la sem os óculos do decreto Tametsi.
Em essência, trata-se de reconciliar de forma articulada os três níveis que a teologia sistemática escolástica identificou na geração: ser gerados pela natureza, ser gerados pela cidade e ser gerados pela Igreja são três experiências que não se deixam unificar em um único ponto. E é curioso que, na conhecida argumentação com que Paulo VI estruturou a Humanae Vitae, a dimensão eclesial pode encontrar uma pequena saída de seu embaraço apenas nos "métodos naturais", como se a experiência civil, com sua criatividade e sua autonomia simplesmente fosse um desvio suspeito e perigoso da geração.
Um modelo de homem naturalizado e, portanto, privado daquelas características de palavra, consciência e destreza que o tornam único, é usado para superar a crise. Mas mesmo aqui, como apontou Peter Hünermann, uma teologia simplificada do casamento implica uma leitura do homem demasiado estilizada e sem verdadeira subjetividade.
Na discussão atual sobre a contracepção, não é uma mudança de doutrina que está em jogo, mas uma melhor fidelidade à relação complexa que, no ato de gerar, une em um único nó a ação de Deus e a ação do homem. Respeitar o nó, ao invés que cortá-lo ou desatá-lo, é a tarefa dessa fase da melhor teologia sistemática católica.
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Preservativos sexuais e preservações eclesiais. A questão sistemática. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU