11 Outubro 2019
“As intercessões da oração eucarística nos convidam a refletir sobre a relação que existe entre liturgia e compromisso ético, ou entre oração e ação. Trata-se de dois modos complementares e estritamente interdependentes de viver a fé: sem liturgia, é difícil que haja um verdadeiro compromisso ético; sem compromisso ético, é impossível que haja verdadeira liturgia.”
A reflexão é do jesuíta italiano Cesare Giraudo, professor emérito do Pontifício Instituto Oriental, e ex-professor da Pontifícia Faculdade Teológica de Nápoles e da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Giraudo viveu muitos anos em Madagascar, na África, desenvolvendo seu ministério pastoral.
Em português, Giraudo é autor de “Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a eucaristia” (Loyola, 2001), “Redescobrindo a eucaristia” (Loyola, 2002) e “Admiração eucarística. Para uma mistagogia da missa” (Loyola, 2008).
Também é autor da Edição no. 50 dos Cadernos Teologia Pública, intitulado “Ite, missa est! A Eucaristia como compromisso para a missão”.
O artigo foi publicado por Religiosi in Italia, n. 10, 2005. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Propomos, a título de introdução, alguns esclarecimentos sobre as três palavras que assumimos como guia para esta nossa reflexão sobre a Eucaristia: explicando o que se entende por eucologia, daremos conta do método adotado; refletindo sobre ecologia e escatologia, focaremos o âmbito da investigação.
Com o termo eucologia, que provém do grego, os estudiosos designam o conjunto das orações, entendidas como expressão literária que veicula um conteúdo teológico. A convicção de que se deve reconhecer esse papel às orações litúrgicas é antiga e foi fixada no século V por Próspero de Aquitânia em um célebre axioma, com base no qual é a liturgia (lex orandi) que normatiza, isto é, que determina e especifica a fé (lex credendi).
Para nos atermos ao tema ao qual se aponta o nosso interesse, recordemos que a fé na Eucaristia se apoia, sobretudo, nas fontes do Antigo e do Novo Testamentos, nos testemunhos dos Padres da Igreja, no ensinamento dos concílios e dos pontífices. Depois, ela recebe um ensinamento de autoridade e complementar precisamente daquelas orações com as quais a Igreja celebra o sacramento do corpo e do sangue do Senhor.
Trata-se de formulários que, em continuidade com a estrutura da oração vetero-testamentária e judaica, são vividos no culto sem solução de continuidade desde a era apostólica até nós, para assumir rapidamente as configurações que conhecemos. As orações eucarísticas, mesmo estando distribuídas nas grandes tradições das Igrejas do Oriente e do Ocidente, confirmam-se, referem-se e enriquecem-se mutuamente. As próprias variantes estruturais e temáticas, que são acompanhadas por uma eloquente identidade de conteúdo, explicam-se pelo fato de que o cristianismo se difundiu entre povos depositários de culturas e sensibilidades diferentes.
Indubitavelmente, isso representa uma riqueza, que devemos saber aproveitar.
Sobre a palavra ecologia, poderíamos evitar de nos debruçar, uma vez que ela é repetida continuamente nos programas de televisão, nos artigos de jornal, nos discursos dos políticos, nas conversas comuns. Quem não ouve falar todos os dias de ecologia? Todos sabem que ecologia tem a ver com a natureza e o respeito pelo ambiente, aquele tesouro que o ser humano herdou, mas que corre o risco de comprometer de modo irreparável por avidez, insipiência e superficialidade. Essa percepção, correta, mas genérica, enriquece-se se prestarmos atenção ao significado original da própria palavra.
Ecologia deriva do grego oikologia, termo afim a oikonomía, do qual deriva “economia”. Ambos os vocábulos são construídos a partir de òikos, que significa casa. Enquanto economia, na acepção original, refere-se à observância das leis que presidem a gestão da própria casa, entendida limitadamente ao edifício no qual o indivíduo ou a família residem, ecologia expressa, em vez disso, aquilo que diz respeito à gestão de um ambiente mais amplo no qual o indivíduo, a comunidade local, o conjunto das pessoas vivem. Ora, a casa em questão não é só a natureza que nos rodeia, com todos os seus recursos de ar, água, luz, animais e plantas; ela inclui também o ambiente humano, isto é, as pessoas com quem vivemos e com quem nos encontramos ligados por vínculos de parentesco, de amizade, de trabalho, de cidadania em todos os níveis.
Essa ecologia ampliada está no coração de Deus, o primeiro interessado em uma reta gestão da sua casa. Ele no-la prescreve com sábia determinação, a partir da fórmula dos Dez Mandamentos, passando pelas exortações dos profetas, até os ensinamentos do Novo Testamento. Trata-se de uma ecologia em 360 graus, uma ecologia que deve ser realizada com as pessoas e pelas pessoas, que não pode, de modo algum, se limitar a chorar pela luta entre as espécies vivas, particularmente entre aquela espécie de animal ávido e destruidor que é o ser humano e as demais criaturas, que muitos consideram como guardiões ignaros dos equilíbrios naturais. A ecologia assim entendida adquire novos fundamentos, novas motivações, prevê tarefas nas quais indivíduos e sociedades, no respeito pelos direitos universais, são chamados a se fortalecer.
A última palavra a ser examinada é escatologia. Ela também provém do grego. Ela exprime e abraça as realidades últimas às quais a nossa vida tende, isto é, a vida eterna, o encontro definitivo com Deus, a habitação na casa do Pai, de onde não teremos mais que nos mudar, tendo finalmente nos reencontrado com todos aqueles que nos precederam.
Neste nosso estudo, queremos abordar o dilema que o ser humano, em todas as latitudes, em qualquer civilização viva, continua se fazendo: em que relação está a vida nesta terra, pela qual a ecologia se interessa, com a vida eterna, da qual a escatologia se ocupa? Estão talvez em uma relação concorrencial, a ponto de uma ter que ser sacrificada à outra? Veremos que a atenção à eucologia, isto é, ao magistério das orações eucarísticas, nos propõe e repropõe uma solução equilibrada, lembrando-nos que certamente devemos visar à felicidade eterna, não através de um misticismo desengajado, desencarnado e ingênuo, mas nos comprometendo ativamente, para que a nossa vida e a de todos seja, o máximo possível, cada vez mais humana, pacífica e justa.
Um forte estímulo para refletir sobre a Eucaristia nos foi oferecido pela carta encíclica Ecclesia de Eucharistia, que João Paulo II dirigiu a toda a comunidade dos fiéis na Quinta-Feira Santa de 2003. Nesse documento, mais ainda do que nos outros textos do magistério, o incipit é um programa inteiro, pois “a Igreja vive da Eucaristia” (n. 1).
No prolongamento do ano jubilar, anunciado e celebrado como ano intensamente eucarístico, em sintonia com os congressos eucarísticos nacionais e internacionais que levam pontualmente a Eucaristia novamente para o centro da nossa admiração, a encíclica Ecclesia de Eucharistia visa a reavivar em nós o estupor precisamente em relação ao sacramento no qual se cumpre com plenitude a promessa do Senhor: “Eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo” (Mt 28, 20).
Assim escreve o pontífice: “É este ‘estupor’ eucarístico que desejo despertar com esta carta encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta apostólica Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o ‘programa’ que propus à Igreja na aurora do terceiro milênio, convidando-a a fazer-se ao largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização” (n. 6).
João Paulo II, depois de recordar a grande luz que a reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II trouxe “para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa dos fiéis” (n. 10), refere-se à existência de zonas de sombra eucarística, que podem ser encontradas em graus variados nos vários contextos eclesiais. O pontífice lamenta um certo abandono da adoração eucarística fora da missa, deplora a presença de abusos no modo de celebrar, assinala os limites decorrentes de uma crescente desafeição à dimensão sacrificial da missa, fala de uma atenção insuficiente à necessidade do sacerdócio ministerial e de uma falta de clareza em certas iniciativas ecumênicas.
A lista das sombras poderia ser prolongada, pois, quanto mais alto é o presente, mais longo corre o risco de ser o cone de sombra relativo, que, neste caso, assumimos nas suas implicações negativas. Poderíamos nos perguntar: muitos abusos que se encontram no nível celebrativo não derivam, talvez, de uma apresentação da Eucaristia em uma dimensão exclusivamente convivial? Além disso, uma certa redução estático-devocional da Eucaristia não acabou obscurecendo, talvez, a sua imprescindível dimensão dinâmica, trinitária, pneumatológica, eclesiológica? E ainda: o hábito generalizado de viver a Eucaristia como experiência de fé privada não incentivou, talvez, um descolamento entre o momento celebrativo e as implicações éticas que dele derivam, tanto em nível individual quanto comunitário? “A Eucaristia é um dom demasiado grande – afirma o pontífice – para suportar ambiguidades e reduções” (n. 10).
Falando da Eucaristia no início do novo pontificado, gostaríamos muito de poder citar já alguns documentos solenes de Bento XVI [relembrando: o artigo foi originalmente publicado em 2005]. Embora não possamos fazê-lo, já que o [então] novo pontífice está apenas dando os primeiros passos como sucessor de Pedro, não esqueçamos que, tanto quanto sabemos, na redação da encíclica Ecclesia de Eucharistia, havia a mão forte e segura do cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Portanto, lendo essa encíclica, lemos o magistério conjunto de João Paulo II e do seu sucessor Bento.
Evidentemente, não podemos expor aqui todas as riquezas da oração eucarística. Aqui, nos limitaremos a algumas intuições sugeridas pela encíclica, com particular atenção a uma leitura escatológica da ecologia, aquela justamente que nos leva a entendê-la na dimensão global mencionada acima, ou seja, do compromisso ético dirigido a toda a casa de Deus que brota de toda participação nossa na Eucaristia. Para uma discussão detalhada, não apenas da liturgia propriamente eucarística, mas também da celebração inteira, remeto a um subsídio que preparei para o Ano da Eucaristia. Assim afirma o seu título programático: “Estupor eucarístico. Por uma mistagogia da missa à luz da encíclica Ecclesia de Eucharistia” ( LEV, 2004, 192 páginas). Nesse livro, o leitor interessado encontrará uma documentação abundante para estimular a sua reflexão.
Voltemos à encíclica. João Paulo II escreve: “A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história e vem iluminar o nosso caminho” (n. 19). Sabemos que o raio de luz nunca é um fim em si mesmo, mas está destinado a vivificar tudo o que ilumina. Assim é com a Eucaristia que do céu se abre sobre a terra para fecundá-la, ou seja, para alimentar e fazer crescer em nós aquela atenção aos bens futuros que deve moldar todo o nosso comportamento presente.
Assim continua a encíclica:
“Consequência significativa da tensão escatológica presente na Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de ativa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De fato se a visão cristã leva a olhar para o ‘novo céu’ e a ‘nova terra’ (Ap 21, 1), isso não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente. Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milênio, para que os cristãos se sintam ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e plenamente conforme ao desígnio de Deus. Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta pensar como é urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao seu término natural. E também que dizer das mil contradições de um mundo ‘globalizado’, onde parece que os mais frágeis, os menores e os mais pobres pouco podem esperar? É neste mundo que tem de brilhar a esperança cristã!” (n. 20).
Depois que, com a epiclese sobre os comungantes – isto é, com o pedido basilar da oração eucarística –, foi pedida a transformação “em um só corpo” para a assembleia reunida, com as sucessivas intercessões, esse mesmo pedido é ampliado a todas as outras porções da Igreja que, no momento da celebração, não estão fisicamente presentes.
O motivo da ampliação do pedido está no fato de que, em toda celebração eucarística, a Igreja inteira está envolvida. Segue-se daí que toda porção da Igreja – da Igreja hierárquica à Igreja que habita na cotidianidade do mundo, à Igreja purgante, à Igreja triunfante – deverá ser mencionada, para que cada grupo e cada indivíduo tenham a sua parte no processo da nossa sempre ulterior transformação no corpo místico.
O pedido de transformação “em um só corpo” é a constante que atravessa e interpenetra todas as intercessões. O que se pede, portanto, na intercessão pela Igreja universal, ou seja, pelo papa, pelo bispo, pelos presbíteros, pelos diáconos e por todo o povo de Deus? Que sejam transformados cada vez mais “em um só corpo”. O que se pede na intercessão pela cidade e pelo mundo em que vivemos? Que os seus habitantes sejam transformados “em um só corpo”, com todas as implicações éticas e sociais, familiares e profissionais, horizontais e verticais que esse pedido fundamental implica.
A resenha bizantina da anáfora de São Basílio formula assim a intercessão pela Igreja no mundo:
“Lembrai-vos, Senhor, do povo que está ao vosso redor e daqueles que, por um justo motivo, foram omitidos, e tende misericórdia delas e de nós, segundo a abundância da vossa misericórdia: enchei as suas despensas de todo bem; conservai as suas uniões conjugais na paz e na concórdia; criai as crianças, educai os jovens, fortalecei os idosos; consolai os fracos de ânimo, reuni os dispersos, reconduzi os errantes e reuni-os à vossa santa, católica e apostólica Igreja; libertai aqueles que são afligidos por espíritos imundos; navegai com os navegantes; caminhai junto com aqueles que caminham; cuidai das viúvas, protegei os órfãos, libertai os prisioneiros, curai os doentes; lembrai-vos daqueles que estão nos tribunais, nas minas, no exílio, em dura escravidão e em todas as tribulações e necessidades, e na perturbação; lembrai-vos também, ó Deus, de todos aqueles que precisam da vossa grande compaixão, daqueles que nos amam e daqueles que nos odeiam, e daqueles que pediram a nós, indignos, que rezássemos por eles.
E lembrai-vos também de todo o vosso povo, Senhor, nosso Deus, e derramai sobre todos a abundância da vossa misericórdia, concedendo a todos o cumprimento dos pedidos de salvação; e daqueles de quem não fizemos memória por ignorância ou por esquecimento ou pela abundância de nomes, lembrai-vos vós mesmo, ó Deus, que de cada um conheceis a idade e o nome, que conheceis a cada um desde o ventre de sua mãe.
De fato, Senhor, sois o cuidado dos que são negligenciados, a esperança dos desesperados, o salvador dos que estão agitados, o porto dos navegadores, o médico dos doentes; sede tudo para todos eles, vós que conheceis a cada um, e o seu pedido, a sua casa e a sua necessidade. E libertai, Senhor, este rebanho, e toda a cidade e região, da fome, da peste, do terremoto, do naufrágio, do fogo, da espada e da invasão estrangeira e da guerra civil...”.
De acordo com uma ordem que pode variar de uma oração eucarística para a outra, existe, depois, a intercessão dos Santos, que se apresenta hoje de modo bastante diferente do passado. Enquanto as liturgias mais antigas consideram os Santos como os líderes dos falecidos, e para eles – sem sequer excluir a Toda-Santa – não têm o temor de pedir uma transformação escatológica sempre maior, as liturgias subsequentes, em vez disso, preferem chamar a atenção para a comunidade reunida e pedir para ela um crescimento cada vez maior “em comum com” a Virgem Maria, os Apóstolos e todos os Santos. Em todo o caso, notamos a colocação privilegiada da memória da Mãe de Deus, para a qual as anáforas orientais não economizam ao elencar títulos: “santíssima, gloriosíssima, imaculada, repleta de bênçãos, nossa Senhora, mãe de Deus e sempre virgem Maria”.
Depois de ter feito memória dos Santos, assim reza a anáfora alexandrina de São Basílio na intercessão pelos Falecidos: “Do mesmo modo, lembrai-vos, Senhor, de todos aqueles que, pertencentes à ordem sacerdotal, já adormeceram e daqueles que estavam no estado de leigos: dignai-vos fazer repousar as almas de todos no seio dos nossos santos pais Abraão, Isaac e Jacó; afastai-os deste mundo, uni-os uns aos outros em um lugar verdejante, perto da água de repouso, no paraíso de delícias, de onde fugiu a dor e a tristeza e o gemido, no esplendor dos vossos Santos”.
Se nas orações eucarísticas orientais o conteúdo da intercessão pela Igreja no mundo é particularmente rico, nas orações eucarísticas romanas, em vez disso, ele é geralmente pobre e às vezes ausente. Comparadas com as orientais, as orações eucarísticas romanas são espirituais demais e muito pouco humanas. Para se ter uma ideia, podemos ler as intercessões da II Oração Eucarística romana em uma tradução de estudo diretamente modelada sobre o texto latino:
“Lembrai-vos, Senhor, da vossa Igreja espalhada por toda a terra, de modo a torná-la perfeita na caridade, junto com o nosso papa N. e o nosso bispo N., e com todo o clero. Lembrai-vos também dos nossos irmãos [N. e N.], que adormeceram na esperança da ressurreição e de todos os falecidos que estão na vossa misericórdia, e admiti-os à luz do vosso rosto. De todos nós – pedimos-vos – tende misericórdia, para que possamos merecer participar da vida eterna com a bem-aventurada Maria, mãe de Deus e virgem, com os bem-aventurados Apóstolos e todos os Santos que sempre vos serviram, a fim de vos louvarmos e glorificarmos, por Jesus Cristo, vosso Filho”.
A percepção dessa falta de sensibilidade pela cidade dos homens explica por que foi acolhida com tanto favor aquela que se tornou hoje a prex eucharistica pro variis necessitatibus, conhecida originalmente como “oração eucarística do Sínodo Suíço”, pois a sua primeira redação foi encomendada pela Conferência Episcopal Suíça. Esse texto soube abrir espaço para a adoção de uma linguagem mais humana, mais aderente ao hoje, inspirada principalmente em temáticas retiradas da constituição conciliar Gaudium et spes.
Assim recita a Variação I da primeira intercessão (Ecclesia in viam unitatis progrediens):
“Renovai, Senhor, com a luz do Evangelho, a vossa Igreja (que está em N.). Fortalecei o vínculo da unidade entre os fiéis leigos e os pastores do vosso povo, em comunhão com o nosso papa N. e o nosso bispo N. e os bispos do mundo inteiro, para que o vosso povo, neste mundo dilacerado por discórdias, brilhe como sinal profético de unidade e de paz” (Missale Romanum, 20023, 690).
Assim recita ainda a Variação III da primeira intercessão (Iesus via ad Patrem):
“Pela participação neste mistério, ó Pai todo-poderoso, santificai-nos pelo Espírito e concedei que nos tornemos semelhantes à imagem de vosso filho. Fortalecei-nos na unidade, em comunhão com o nosso papa N. e o nosso bispo N., com todos os bispos, presbíteros e diáconos e todo o vosso povo. Fazei que todos os membros da Igreja, à luz da fé, saibam reconhecer os sinais dos tempos e empenhem-se, de verdade, no serviço do Evangelho. Tornai-nos abertos e disponíveis para todos, para que possamos partilhar as dores e as angústias, as alegrias e as esperanças, e andar juntos no caminho do vosso reino” (Missale Romanum, 20023, 700).
Até agora, nenhuma oração eucarística tinha chegado a falar, por exemplo, “deste mundo dilacerado por discórdias”, dos “sinais dos tempos”, do propósito de “empenhar-se, de verdade, no serviço do Evangelho”, da vontade de “participar das angústias” de todos os homens e mulheres. Devemos ser gratos por esses enriquecimentos eucológicos aos redatores do cânone suíço original. Graças a eles, a inculturação – isto é, a atenção à nossa vivência e à linguagem chamada a expressá-la – que tanto apreciamos nas intercessões orientais começaram a abrir caminho nas orações eucarísticas do rito romano. Finalmente, o pulmão ocidental da Igreja também mostrou que sabe se dilatar em sintonia com a vitalidade do pulmão oriental.
Igualmente significativa é a situação que viu o surgimento da oração eucarística zairense/congolesa. Um ótimo exemplo de inculturação da linguagem, com uma sensibilidade requintadamente ecológica, nos é oferecido pelo prefácio dessa oração eucarística, sobretudo onde Deus é louvado pelo que ele é em si mesmo e pela obra da criação. Leiamos:
“... vós sois o sol sobre o qual não é possível fixar o olhar, sois a própria visão, sois o senhor dos homens, sois o senhor da vida, sois o senhor de todas as coisas, nós vos louvamos, vos damos graças pelo vosso filho, Jesus Cristo, nosso mediador... Pai santo, nós vos louvamos pelo vosso filho, Jesus Cristo, nosso mediador. Ele é a palavra que dá a vida. Por meio dele, criastes o céu e a terra; por meio dele, fazeis existir os rios do mundo, as torrentes, os riachos, os lagos e todos os peixes que vivem neles. Por meio dele, fazeis viver as estrelas, os pássaros do céu, as florestas, as savanas, as planícies, as montanhas e todos os animais que nelas vivem. Por meio dele, criastes as coisas que vemos e as que não vemos...” (Conférence Épiscopale du Zaïre, Missel Romain, 101-108).
Na tradição romana, a missa sempre terminava com palavras que todos sabiam de cor: “Ite, missa est”. Trata-se de uma fórmula problemática, sobre a qual os intérpretes se atormentaram ao longo dos séculos. Aqui, apoiar-nos-emos na explicação mais espiritual, proposta repetidamente e, para nós, mais estimulante, que entende o enigmático termo “missa” à luz de dimissio ou missio, ou seja, no sentido de envio em missão. Essa escolha – independentemente da confiabilidade ou não do nexo etimológico – nos permitirá tirar uma conclusão teologicamente certa. Portanto, o presbítero presidente, no momento de dissolver a assembleia, não se limitaria a uma saudação gentil, mas dirigiria um convite de comprometimento que soa assim: “Ide e realizai a missão para a qual sois enviados”. Os textos bíblicos lhe dão razão.
Sabe-se que o quarto evangelista se dispensou de nos narrar a instituição da Eucaristia. No entanto, João, no capítulo 6 do seu evangelho, nos deixou preciosas intuições de meditação sobre o pão da vida. Além disso, com o relato do lava-pés (cf. Jo 13,1-15), ele nos convida a prolongar no nosso cotidiano os compromissos decorrentes da fé eucarística.
A partir do relato de Justino, além disso, sabemos que, nas comunidades cristãs primitivas, a celebração eucarística se traduzia em um primoroso “socorro aos órfãos e às viúvas, e aos que são negligenciados por doença ou por outra causa, e aos que estão na prisão, e aos que permanecem como estrangeiros: em poucas palavras, (...) a todos aqueles que passam necessidade” (Prima Apologia 67,5).
Sob o perfil do compromisso ético, é exemplar a anáfora alexandrina de São Basílio que, na intercessão pela Igreja no mundo, pede a Deus que nos dê todo o necessário para que possamos compartilhá-lo com os outros. Leiamos ainda:
“Lembrai-vos, Senhor, também da salvação desta nossa cidade e daqueles que, na fé de Deus, nela habitam. Lembrai-vos, Senhor, do clima e dos frutos da terra. Lembrai-vos, Senhor, das chuvas e das sementes da terra. Lembrai-vos, Senhor, do crescimento comedido das água dos rios. Alegrai ainda e renovai a face da terra: inebriai os seus sulcos, multiplicai os seus rebentos; tornai-a aquilo que ela deve ser para a semente e para a messe (...) Governai a nossa vida: abençoai o ciclo do ano da vossa benevolência, por causa dos pobres do vosso povo, por causa da viúva e do órfão, por causa do forasteiro de passagem e do forasteiro residente, por causa de todos nós que esperamos em vós e invocamos o vosso santo Nome: pois os olhos de todos em vós esperam, e vós lhes dais o alimento no tempo devido (...) Enchei de alegria e de felicidade os nossos corações, para que, tendo sempre e em toda parte todo o necessário, abundemos em toda boa obra, para fazer a vossa santa vontade”.
Algumas dessas súplicas podem parecer pouco familiares para as sociedades do bem-estar, que felizmente não sabem mais o que é a precariedade da existência ligada aos cataclismos sazonais e às consequentes carestias. No entanto, se tentarmos sair dos nossos egocentrismos, perceberemos que uma parte consiste da humanidade do terceiro milênio, aquela à qual coube nascer em países eternamente provados, não tem dificuldade em se associar aos fiéis da Igreja de Alexandria que, em todas as Eucaristias, repetiam: “Lembrai-vos daqueles de nós que passam fome!”. O que dizer, depois, do pedido a Deus para se lembrar do “crescimento comedido das águas dos rios”? Essa súplica não parece, talvez, escrita para nós que, graças a uma exploração negligente do território, a cada estrondo de chuva, corremos o risco das inundações?
O teor desse pedido é significativo, sobre tudo porque ele não está voltado tanto a satisfazer as necessidades materiais de quem reza, mas sim a assegurar o sustento aos pobres, aos órfãos e às viúvas, aos forasteiros residentes, além dos forasteiros de passagem. Em suma, pede-se a Deus que faça a sua parte, ou seja, que abençoe as colheitas, para que aqueles que não são forçados pela necessidade possam se comprometer em favor daqueles que todos os dias, vivem a necessidade.
Seria interessante tentar atualizar o texto dessa intercessão pela Igreja no mundo, substituindo algumas categorias então em dificuldade – mas que hoje são tuteladas pelas leis civis – pelos grupos que a sociedade do bem-estar, da busca frenética pela vida vivida no nível mais intenso, continua excluindo, marginalizando. Para adequar mais essas expressões à linguagem – por exemplo – de muitos países da Europa de hoje, bastaria substituir “forasteiros residentes” por “extracomunitários com autorização de residência” e “forasteiros de passagem” por “imigrantes ilegais”. Em todo o caso, devemos reconhecer que a sensibilidade documentada por essas formulações permanece viva, cheia de frescor e tocante para nós.
A partir desses pedidos, brota de modo inequívoco a reflexão sobre o compromisso ético. De fato, pedir a Deus que abençoe as nossas colheitas e encha os nossos celeiros significa decidir-nos a um compromisso ativo em favor daqueles que, desprovidos de apoio, esperam tudo da benevolência do Senhor e da generosidade daqueles de nós que atendemos ao chamado.
As intercessões da oração eucarística de São Basílio nos convidam, portanto, a refletir sobre a relação que existe entre liturgia e compromisso ético, ou entre oração e ação. Trata-se de dois modos complementares e estritamente interdependentes de viver a fé: sem liturgia, é difícil que haja um verdadeiro compromisso ético; sem compromisso ético, é impossível que haja verdadeira liturgia.
Se isso vale para todo momento litúrgico, vale com mais razão ainda para a Eucaristia, que a tradição das Igrejas bizantinas chama de “Divina Liturgia”, ou seja, a liturgia por antonomásia. De fato, a transformação “em um só corpo”, que a epiclese requer e as intercessões prolongam e ampliam, é vertical e horizontal ao mesmo tempo. A dimensão vertical, ou seja, a nossa tensão e atenção a Deus, encontra a sua verificação natural na dimensão horizontal, ou seja, na nossa tensão e atenção àqueles a quem devemos nos fazer próximos.
Na Ecclesia de Eucharistia (n. 20), João Paulo II relata uma bela reflexão de João Crisóstomo:
“Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo’, [...] também afirmou: ‘Vistes-Me com fome e não me destes de comer’, e ainda: ‘Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com cálices de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta o altar com o que sobra’” (Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: in Patrologia Græca 58, 508-509).
Achamos reconfortante esperar intervenções extraordinárias de Deus, mas nos equivocamos. Deus não quer que sejamos espectadores, mesmo que admirados, do seu agir. Ele nos deu olhos para ver, ouvidos para ouvir, mãos para operar. Os nossos olhos devem ser aqueles com os quais Deus vê as necessidades; os nossos ouvidos, aqueles com os quais Deus ouve os lamentos; as nossas mãos, aquelas das quais Deus se serve para vir em socorro. Por isso, nas nossas Eucaristias, pedimos a sua ajuda, para ter o que dar, mas também e sobretudo para obter dele a atenção e a sensibilidade indispensáveis para nos colocarmos de novo, todos os dias, em ação.
Na carta apostólica com a qual convocada o Ano dedicado à Eucaristia, João Paulo II escrevia:
“Por que não fazer então deste Ano da Eucaristia um período em que as comunidades diocesanas e paroquiais se comprometam de modo especial a ir, com operosidade fraterna, ao encontro de alguma das muitas pobrezas do nosso mundo? Penso no drama da fome que atormenta centenas de milhões de seres humanos, penso nas doenças que flagelam os países em vias de desenvolvimento, na solidão dos idosos, nas dificuldades dos desempregados, nas desgraças dos imigrantes. Trata-se de males que afligem, embora em medida diversa, também as regiões mais opulentas. Não podemos iludir-nos: do amor mútuo e, em particular, da solicitude por quem passa necessidade, seremos reconhecidos como verdadeiros discípulos de Cristo (cf. Jo 13,35; Mt 25,31-46). Com base nesse critério, será comprovada a autenticidade das nossas celebrações eucarísticas” (Mane nobiscum Domine 28).
Obviamente, a mensagem do Ano da Eucaristia continuará nos interpelando muito além da sua natural validade cronológica.
Um convite premente para estabelecer intensas relações entre a lex orandi eucarística e a consequente lex agendi, ou seja, entre culto e vida, também nos é dirigido por Nicolau Cabásilas, teólogo bizantino do século XIV.
No seu tratado sobre a mística sacramental, ele assim escreve:
“Se contemplarmos realmente essas coisas e se esses pensamentos reinarem na nossa mente, acima de tudo, nada de mal abrirá caminho em nós (...) Não abriremos nossas bocas para uma língua malévola, se tivermos em mente a mesa eucarística e a qualidade do sangue que coloriu essa nossa língua. Como usaremos os olhos para fixar aquilo que não se deve, quando desfrutaram de tão imensos mistérios? Não moveremos os pés, nem estenderemos as mãos àquilo que é mau, se tivermos operante na alma essa consideração, isto é, que esses nossos membros são membros de Cristo, são sagrados e, como uma ampola, contêm o seu sangue” (A vida em Cristo 6,20, em Patrologia Græca 150, 647-648c).
Em Madagascar, para denunciar o comportamento de quem se gaba de ser um bom cristão pelo simples fato de ir à igreja, mas não se preocupa em viver de modo consequente aos compromissos assumidos, foi inventado um provérbio há mais de um século que diz: “Cristãos de domingo que roubam a galinha na segunda-feira”.
O profeta Amós já se lançava contra a hipocrisia daqueles que, embora respeitassem escrupulosamente os deveres religiosos do sábado, esperavam ansiosamente que chegasse o dia seguinte, para recomeçarem a fraudar o próximo (cf. Am 8,4-7). Jesus também condena a hipocrisia dos fariseus que, perfeitos observadores em nível formal da lei, se escandalizavam ao ver que ele curava o homem da mão paralisada no sábado (cf. Mt 12,1-14).
Entrando na igreja, nós trazemos toda a vivência de alegria e de angústia do mundo, para vivê-la ao máximo grau naquela particular relação com Deus e com os outros que é a celebração eucarística. Saindo da igreja, depois, levamos para a cotidianidade todos os compromissos assumidos e resumidos no ritmo das nossas Eucaristias. Se, ao entrar na igreja, não trazemos conosco as preocupações nossas e do mundo, é inútil que nela entremos. Do mesmo modo, ao sair da igreja, se não levarmos conosco compromissos específicos de vida pessoal, familiar, profissional, civil e eclesial, era inútil que nela entrássemos, pois uma Eucaristia sem a vontade de assumir compromissos éticos – sobretudo em relação ao próximo – é, para quem dela participa, uma Eucaristia nula. Se não quisermos ser, também nós, os fariseus de plantão, lembremos que, sem compromissos ativos, o culto permanece como uma distração cômoda, um culto vazio, uma aparência de culto.
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Eucologia, ecologia, escatologia: três palavras para entender a Eucaristia. Artigo de Cesare Giraudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU