28 Junho 2023
"O documento preparatório para o sínodo surpreende por sua audácia: há quem o acolha favoravelmente, quem o condena, quem o relativiza…" escreve René Poujol, jornalista, em artigo publicado por seu blog, 24-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O artigo é compartilhado pelo padre Jean-Pierre Roche, padre da diocese de Créteil, Val-de-Marne, através de seu jornal "Notre pain quotidien", recebido por mil assinantes
Considero muito bom que, em nossa Igreja tão desgastada, os leigos possam, sem carta de autorização e sem censura, expressar-se com plena liberdade e responsabilidade, e que os padres deem seu apoio a tais iniciativas compartilhando-as na própria rede. Há algo promissor nisso para o dinamismo das nossas comunidades).
O documento de trabalho (Instrumentum laboris) preparatório para a primeira Assembleia do sínodo sobre a sinodalidade em outubro próximo foi divulgado pelo Vaticano. Para quem acredita na importância desse sínodo, pedra angular do projeto do papa, a surpresa – positiva – é notável. O documento contempla quase a totalidade das questões, por vezes audaciosas, formuladas em todas as fases da consulta. Algo nunca visto! Um procedimento denunciado por alguns círculos como consternador e suicida para a Igreja, enquanto outros o censuram por não enfrentar o essencial: a doutrina hoje questionada em muitos pontos. Nessa etapa, Francisco manifesta sua determinação de ir até o fim de sua intuição para colocar a Igreja de volta nos trilhos…
O Instrumentum laboris, apresentado em Roma no dia 20 de junho, é uma leitura estimulante. O documento de trabalho agora disponível para os membros da primeira Assembleia Sinodal de outubro próximo (a segunda, final, está convocada para outubro de 2024) destaca a acolhida e compreensão oferecida por Roma da fase de consulta determinada pelo Papa Francisco. Essa fase se desenvolveu em três etapas: diocesana, nacional e depois continental (portanto europeia para a França). Com esta novidade em relação à prática habitual da Igreja Católica: que em cada etapa a "síntese" das contribuições conseguiu manter e elevar a um nível superior não apenas aquilo que "encontrava consenso", mas tudo o que era expresso, enfatizando se necessário os pontos de discordância. Isso dá ao Instrumentum laboris um tom de verdade que alegra uns e entristece outros, que veem nele uma traição, uma fragilização da Igreja em relação à verdade.
O documento começa especificando mais uma vez a definição de sinodalidade, pois é convicção de Francisco que não existe verdadeira Igreja Católica se não for sinodal, isto é, uma Igreja na qual todos os batizados caminham juntos e compartilham a mesma missão de evangelização. Na atual fase, isso efetivamente não coloca em causa a constituição hierárquica da Igreja, situação que representará, para alguns, o limite aos seus olhos inaceitável da "abertura".
Uma Igreja sinodal, explica o texto, exprime a comum dignidade batismal de todos (bispos, padres, diáconos, religiosos, leigos…). É uma Igreja “de escuta, encontro e diálogo com os crentes de outras religiões e com as culturas e sociedades em que se insere”; uma Igreja "que não tem medo da diversidade", "capaz de gerir as tensões sem ser esmagada por elas"; uma Igreja "aberta e acolhedora para todos", uma Igreja "que enfrenta uma compreensão mais profunda da relação entre amor e verdade" (pastoral e doutrina), finalmente uma Igreja "que promove a passagem do eu para o nós, visto que cada um é naturalmente inclinado a pensar ser – como indivíduo ou como grupo – o único detentor da verdade.
O texto insiste naquela que define como a “conversão no Espírito” apresentada como o método de trabalho profícuo das fases de consulta, proposta desde o Vade-mécum de 2021, e que continuará a prevalecer durante as Assembleias de 2023 e 2024. Porque serve da melhor forma para a natureza específica do diálogo que se impõe entre irmãos e irmãs na fé. É assim que o teólogo Arnaud Join-Lambert fala sobre isso num artigo dedicado à fase continental europeia do sínodo (phase continental européenne du synode, Praga 2-12 de fevereiro de 2023) publicado na revista Etudes [1]: “A ‘conversão espiritual’ é construída para deixar de maneira sistemática espaço para cada um e cada uma, mas também um espaço obrigatório para o silêncio. A expressão de cada um e de cada uma numa primeira rodada (sem debate) é seguida por um momento de silêncio, depois por uma segunda rodada na qual cada um e cada uma pode expressar o que a palavra de outra pessoa despertou nele/nela. É uma rodada decisiva em que se valoriza a palavra do outro e a escuta profunda. Depois chega o momento do debate. Uma terceira rodada obriga o grupo a entrar em acordo sobre o que será transmitido na assembleia plenária". É aí que a síntese deve integrar tanto aquilo em que todos concordam quanto o que é expressão minoritária e o que é objeto do desacordo.
O documento de trabalho dedica-se em seguida a apresentar as três prioridades que decorrem dessa fase de consulta e que estarão no centro dos trabalhos da Assembleia sinodal. Trata-se de três palavras: comunhão, missão, participação, sobre as quais o texto ressalta que não podem ser examinadas separadamente, mas em estreita correlação. A ideia de comunhão lembra que uma assembleia sinodal se diferencia de uma assembleia parlamentar.
Sua finalidade não é reunir uma maioria contra uma minoria, mas tentar superar as divisões para definir as etapas que poderiam levar a um novo acordo, percebido como mais fiel às exigências do Evangelho. Em segundo lugar, o texto especifica: “A missão não é a promoção de um produto religioso, mas a construção de uma comunidade, enriquecida pelo aporte dos carismas de cada um, que depois se torna missionária. Finalmente, a participação levanta a questão da natureza da autoridade na Igreja e das conversões pessoais e transformações institucionais a serem operadas de modo que, fugindo das tentações de poder, ela seja realmente "serviço".
Essa primeira parte, perfeitamente estruturada, serve naturalmente de introdução à segunda, apresentada sob a forma de fichas de trabalho para os membros da Assembleia sinodal, mas também para cada fiel que pretende entrar na compreensão e na dinâmica de uma cultura sinodal agora apresentada como chave da vida eclesial. Cada "prioridade" é retomada, contextualizada a fim de levar em conta das diversidades das situações das Igrejas locais nas várias partes do mundo, e explicitada em cinco temas, cada um dos quais se abre com alguns questionamentos submetidos ao discernimento da Assembleia. Isso será feito em duas etapas: primeira (em outubro de 2023) para aprofundar os desafios teológicos e canônicos; em seguida, depois um ano de reflexão e amadurecimento de uns e dos outros, na segunda Assembleia (outubro de 2024), na qual deverão ser definidas propostas concretas submetidas ao Santo Padre.
E é essa parte do documento que realmente surpreende pela audácia dos redatores. Eles escolheram respeitar escrupulosamente o conteúdo das "sínteses" continentais enviadas a Roma sem "domesticações" nem censura. A escolha foi feita (evidentemente com o aval do Papa Francisco) para não cancelar nenhuma das questões às vezes iconoclastas, que de fato podem se apresentar na Igreja, diferentes segundo as sensibilidades ou os contextos culturais. Isso dá a sensação de ter um documento que tem raízes na "vida verdadeira" das comunidades. O percurso não é mais, como frequentemente ocorre, tentar traduzir para a nova realidade do mundo moderno o ensinamento tradicional (e para alguns intangível) da Igreja, mas se perguntar qual discernimento operar, à luz do Evangelho, sobre as solicitações nascidas da experiência e da reflexão do povo crente.
Impossível e evidentemente inútil fazer aqui uma apresentação exaustiva. O texto, novamente, está acessível a todos.
Mas ainda é particularmente significativo ver um texto oficial
Sim, tudo que foi citado acima, até mesmo reafirmado, realmente figura na forma de pergunta perfeitamente identificadas no documento romano. No entanto, notamos que determinadas "linhas vermelhas" não são superadas, como, por exemplo, a obrigação do celibato presbiteral ou o acesso das mulheres ao presbiterado [3].
De forma mais geral, e sem surpresa, o documento de trabalho levanta questões sobre a pastoral ou o governo da Igreja Católica, não o conteúdo do dogma, da doutrina ou da moral que também são fortemente questionados. É a linha intangível do Papa Francisco desde o início do seu pontificado.
Alguns veem nisso, objetivamente e com pesar, um "limite" para a abertura, que também é bastante real, do texto. Outros já denunciam com violência inaudita uma vontade deliberada de destruir a Igreja. Raramente tanto ódio foi demonstrado em relação a um papa e seus partidários.
A mera ideia de que um documento da Igreja (que não reivindica valor magistral) possa ser articulado em torno de perguntas (130 de acordo com o site Aleteia) é interpretado como a renúncia herética da Igreja para proclamar e defender a única Verdade da qual ela, e somente ela, é depositária por vontade divina. Segundo o que alguns escrevem, no documento de trabalho haveria nada menos que a obra do diabo! Se vocês pensam que estou exagerando, aventurem-se nas redes sociais.
A questão do futuro desse texto permanece em aberto e, antes de tudo, sua capacidade de influir de maneira significativa sobre os trabalhos da Assembleia sinodal no próximo outubro. Desde abril passado sabemos que o "Sínodo dos Bispos", por decisão do Papa Francisco, acolherá 70 não bispos com direito a voto. Alguns apontam que a maioria ainda permanecerá do clero (300 contra 70) e que os não bispos não serão “eleitos” por seus pares, mas designados pela instituição. Significa dar pouca importância para duas realidades: introduzir setenta não bispos num cenáculo em que desde sempre havia somente bispos é suficiente para perturbar a natureza do diálogo dentro da Assembleia e favorecer aquela "conversão" à qual o papa chama; afinal, um exemplo recente, dentro da vida do Igreja Católica na França, mostrou que os membros designados dos nove grupos de trabalho organizados após o relatório Sauvé, souberam se mostrar particularmente livres em suas reflexões e em suas propostas, sob o risco de desagradar a um certo número de bispos...
Portanto, existe naquela escolha um progresso decisivo. Para Francisco "missão cumprida", para seu sucessor: "missão impossível"?
Fica a maior incógnita das propostas que serão retomadas e formuladas, da sua adoção ou da sua rejeição pelo Papa Francisco em sua exortação apostólica pós-sinodal, mas sobretudo da “recepção” daquele texto final eminentemente magisterial por uma parte do mundo católico.
O Instrumentum laboris revela a constatação feita pelas sínteses continentais da "dificuldade de envolver uma parte dos padres no processo sinodal”. Temos a lembrança da velocidade com que alguns, na França, especialmente entre os "jovens católicos" (jeunes catholiques) tomaram distâncias da síntese das contribuições diocesanas publicadas pela Conferência Episcopal Francesa, na qual diziam não se sentirem representados, considerando que haviam feito a opção da não participação.
O caminho proposto pelo Papa também vai se chocar com dois obstáculos importantes: a recusa de alguns clérigos de validar as mudanças que a eles parecerão recolocar em discussão seu “poder”; a impossibilidade para alguns católicos de admitir que a resposta aos males de que sofre a Igreja possa estar num aprofundamento do Concílio Vaticano II que eles continuam a perceber como a origem do desmoronamento da Igreja.
É por isso que tenho que esclarecer o título, deliberadamente provocativo, deste post (muito) longo. Sim, o Papa Francisco está jogando aqui todo o seu pontificado, que se encaminha para a conclusão. Sua convicção é que a Igreja deve imperativamente conseguir realizar uma inculturação que o Concílio Vaticano II, em sua implementação, não soube ou não conseguiu realizar. E que tal inculturação passa por uma descentralização da Igreja que lhe permita adaptar melhor a palavra de Deus às realidades diferentes dos povos e dos continentes.
Desde o outono de 2013, apenas seis meses após a sua eleição, escrevia na Evangelii Gaudium: “Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’” (EG 16). Esse longo processo do sínodo sobre a sinodalidade, dez anos depois de sua eleição, não tem outro objetivo senão fazer com que essa análise seja compartilhada pelos “Padres” sinodais, para que façam entrar essa abordagem no magistério oficial da Igreja Católica.
A continuação evidentemente caberá ao sucessor de Francisco. Um artigo recente do La Croix leva a pensar que já disporia dentro do colégio cardinalício de uma maioria de eleitores favoráveis à sua "linha" e, portanto, passível de se opor, por ocasião do próximo conclave, a um retrocesso esperado por alguns. O seu sucessor terá, portanto, a difícil tarefa de engajar a Igreja numa reforma "sinodal" que alguns não querem de forma alguma, e ao mesmo tempo enfrentar a reivindicação apresentada por outros, de novas mudanças em relação "finalmente" à doutrina e à moral… Algo que, claramente, é pertinente a um Concílio que poderia ser articulado em torno de fases continentais, seguidas de uma assembleia conclusiva em Roma, como para este sínodo, de alguma forma inaugural. E tudo isso evitando o cisma de uns e de outros.
Empreitada simples? O Espírito Santo terá um futuro muito desafiador!
[1] Arnaud Join-Lambert, Une nouvelle étape pour l’Église catholique, L’assemblée continentale de Prague. Rivista ETUDES, junho de 2023, p.82. O texto conclusivo em italiano da fase continental europeia foi traduzido para o francês e está disponível.
[2] A formulação do documento é a seguinte: “As Assembleias Continentais destacam a preocupação generalizada por um exercício do Ministério ordenado que não seja adequado aos desafios do nosso tempo, distante da vida e das necessidades das pessoas, muitas vezes limitado apenas ao âmbito litúrgico-sacramental". (B2-4b)
[3] Os franceses poderão se surpreender com uma pergunta que, para eles, parece já ter recebido resposta: "As responsabilidades no tratamento dos casos de abuso são individuais ou sistêmicas?
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O Papa Francisco aposta todo o seu pontificado no Sínodo. Artigo de René Poujol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU