23 Junho 2023
A pouco mais de 100 dias do início da primeira sessão da Assembleia Sinodal do Sínodo 2021-2024, foi divulgado esta semana o Instrumentum Laboris, um texto que "pretende ajudar ao discernimento, procurando sempre o bem da Igreja", segundo dom Luis Marín de San Martín, subsecretário do Sínodo.
Nesta entrevista, analisa os elementos presentes num texto que pretende "facilitar o trabalho que terá lugar na primeira sessão da Assembleia do Sínodo dos Bispos", destacando na primeira fase "a experiência do encontro, da escuta e do discernimento", bem como "o crescimento na corresponsabilidade" e o fato de se tratar de um processo.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Um processo sinodal que "pertence a todo o povo de Deus", e no qual "o grande desafio é renovar a Igreja", insiste dom Marín de San Martín. Um documento com "uma conotação eminentemente prática", e que "não oferece soluções, mas abre caminhos", sublinha o bispo agostiniano. Além disso, afirma que "em todo este processo, a comunhão é fundamental. Da comunhão se passa à pluralidade, e não o contrário".
Uma assembleia sinodal que é dos bispos, mas onde a presença do resto do povo de Deus, vinte e cinco por cento, pelo menos a metade de mulheres, é importante "para ajudar no discernimento", que será enriquecido pela interculturalidade que estará presente. Juntos trabalharão a partir das perguntas que aparecem no texto, utilizando o método do diálogo no Espírito, já presente no retiro de três dias antes de iniciar os trabalhos, "uma grande novidade, que talvez não tenha sido suficientemente sublinhada".
No dia 20 de junho, a Secretaria do Sínodo divulgou o Instrumentum Laboris para a primeira sessão da Assembleia Sinodal do Sínodo 2021-2024. Como definiria este documento?
O Instrumentum Laboris é, como o próprio nome sugere, um documento de trabalho. Destina-se principalmente a facilitar o trabalho que terá lugar na primeira sessão da Assembleia do Sínodo dos Bispos em outubro próximo. No entanto, pode e deve também ser conhecido e, se necessário, utilizado pessoal e comunitariamente nas Igrejas locais para continuar a reflexão iniciada. O objetivo é dar um impulso ao processo e encarná-lo na vida da Igreja. O texto baseia-se em todo o material recolhido durante o processo, especialmente nos documentos da Etapa Continental, e tem como objetivo ajudar o discernimento, procurando sempre o bem da Igreja.
É um Instrumento de Trabalho que, como o próprio texto afirma, marca o início da segunda fase do Sínodo, que não podemos esquecer que é um processo. Como avalia o caminho percorrido, algo que aparece no início do texto, nesta primeira fase?
Na primeira fase, sublinho sobretudo a experiência: do encontro, da escuta e do discernimento. Devemos ter sempre presente o carácter experiencial de todo este caminho, que provocou entusiasmo naqueles que se juntaram e participaram nele. Ao caminharmos juntos, com Cristo e com os nossos irmãos e irmãs, a Igreja sentiu-se viva.
Gostaria também de sublinhar o crescimento da corresponsabilidade, que nasce da realidade batismal e que depois se desenvolve segundo os diferentes carismas, ministérios e vocações. Hoje existe uma consciência muito forte de que o povo de Deus, todo ele, participa de Cristo, das suas funções e, portanto, é corresponsável na Igreja.
E o terceiro aspeto a ter em conta é a natureza do processo, que se desenvolve ao longo do tempo e que começou a partir de baixo (paróquias, grupos, comunidades). Não se trata de eventos pastorais desconexos. Trata-se de um processo interligado e dinâmico. E não está concluído, pois ainda está a desenvolver-se.
A sinodalidade veio para ficar porque remete para a essência da Igreja, para o que a Igreja é em si mesma: é chamada a aprofundar continuamente o conhecimento experiencial de Cristo e impulsiona a evangelização (caminhar); é comunhão em Cristo com os irmãos e irmãs (juntos). A Igreja é sinodal, como se vê na Igreja primitiva, nas primeiras comunidades, no ensinamento dos Padres, na história.
Um Sínodo que pertence ao povo de Deus, como afirmou o Cardeal Mario Grech, Secretário do Sínodo, quando disse que é um grande insulto pensar que o povo de Deus não tem os instrumentos para oferecer uma verdadeira contribuição ao processo sinodal. Podemos dizer que tudo o que experimentámos durante o processo de escuta apoia esta afirmação?
A sinodalidade afeta toda a Igreja e tudo o que é Igreja. Exprime-se e concretiza-se de diferentes formas e a diferentes níveis (conselhos pastorais, conselhos económicos, assembleias eclesiais, sínodos, concílios, etc.). Tivemos de deixar claro, sobretudo no início, que a sinodalidade não pode ser identificada apenas com o Sínodo dos Bispos, que é uma forma de exprimir a sinodalidade própria da colegialidade episcopal, mas que não a esgota. A sinodalidade pertence a toda a Igreja e assume muitas formas.
Dito isto, podemos compreender que o processo sinodal é de todo o povo de Deus. Todos podem contribuir. E os pastores devem facilitá-lo. O clericalismo é profundamente injusto e errado. É uma corrupção nociva conceber o ministério como poder, como domínio que mantém o resto do povo de Deus passivo e submisso. O ministério é um serviço que se exerce sempre no seio do povo de Deus e não fora dele. Onde o pastor acompanha e se envolve, o processo sinodal funciona e a contribuição é viva e profunda. Esta foi uma das grandes conquistas da primeira fase.
Dom Luis Marín de San Martín. (Foto: enviado por Luis Miguel Modino)
O Cardeal Hollerich, relator do Sínodo, citando o Instrumentum Laboris, diz que não se trata de ler, mas de fazer. De acordo com o que diz o documento, que insiste em que não se trata de produzir documentos, poderíamos dizer que o grande desafio é estabelecer esta dinâmica sinodal na Igreja?
O grande desafio é renovar a Igreja. É um trabalho de coerência como cristãos. O Instrumentum Laboris insere-se nessa dinâmica e tem uma conotação eminentemente prática. Não é uma reflexão meramente teórica, mas nasce da experiência; não oferece soluções, mas abre caminhos. É um elemento adicional para ajudar o discernimento. Articula as prioridades que emergiram da escuta e exprime-as sob a forma de perguntas dirigidas à Assembleia Sinodal, que deverá discernir. Tem em conta dois aspectos fundamentais. O primeiro é que devemos escutar o Espírito, que fala no povo de Deus e, por isso, é essencial ser capaz de captar as suas intuições e compreender a sua linguagem. O segundo é o impulso evangelizador a partir do próprio testemunho. Só assim podemos levar esperança ao nosso mundo, espalhando o entusiasmo de Cristo.
É por isso que o Cardeal Hollerich disse que este é um documento não só para ler, refletir, alimentar a mente, mas para nos ajudar na nossa vida, na nossa existência cristã. O processo sinodal é orientado para a identificação com Cristo, a fim de dar testemunho dele. É este o objetivo.
No documento, aparece a realidade do mundo e da Igreja e afirma-se abertamente que há diversidade e tensões, que podem tornar-se fontes de energia para não cair em polarizações destrutivas. Pode a Igreja tornar-se uma referência de diálogo, não só para si mesma, mas também para um mundo cada vez mais dividido e conflituoso?
Este é um dos grandes desafios, uma das questões fundamentais: conjugar unidade e pluralidade. Temos o depósito da fé, que ninguém pode alterar ou modificar: um só Senhor, uma só fé, um só batismo. E temos a diversidade: uma variedade de vocações, sensibilidades diferentes, diferenças geográficas e culturais, e assim por diante. São João XXIII já dizia que não é o Evangelho que muda, somos nós que o compreendemos melhor. E São João Paulo II falava de "unidade pluriforme". O desafio, portanto, é integrar as tensões e as diferenças. Isso só é possível a partir da realidade do amor (caritas).
Infelizmente, vivemos num mundo muito polarizado, dividido e conflituoso. E altamente ideologizado. O problema também se instalou na Igreja. Afeta-nos ao ponto de chegarmos à contradição do confronto dentro da Igreja, movidos por interesses ideológicos ou outros: quem não pensa como eu é meu inimigo; quem é diferente deve ser deixado de fora; quem não serve os meus interesses é marginalizado. E esquecemo-nos que não há unidade sem amor (Deus, na sua essência, é Amor). Sem caridade, tornamo-nos um movimento político, social ou econômico. Mas não é a Igreja de Cristo.
O Instrumentum Laboris recorda que a comunhão não é uma reunião sociológica como membros de um grupo identitário, mas um dom de Deus e, ao mesmo tempo, uma tarefa sem fim que conduz ao "nós". Como integrar então as tensões sem as quebrar ou resolver na uniformidade?
Nas primeiras comunidades cristãs, havia divergências, tensões e problemas, mas havia a caridade fundamental, a união em Cristo. As tensões e as diferenças existem e não são más, tal como existem numa família, mas é preciso saber integrá-las, procurando o bem comum à luz do Evangelho.
É por isso que a comunhão é fundamental em todo este processo. Da comunhão passamos à pluralidade, e não o contrário. Tem que haver a experiência de Cristo e a caridade como eixo. A partir daí podemos dialogar e integrar as diferenças. Podemos até discordar e discutir, mas não de forma agressiva e amarga, mas amando o outro. A correção cristã deve ser uma expressão da caridade.
É isso que o povo de Deus deseja. Em muitas assembleias, encontros e reuniões sinodais, constatámos o cansaço, o cansaço das tensões destrutivas, que são vividas como um escândalo. Há um desejo de uma Igreja que seja verdadeiramente a família de Deus. Acolhedora, fraterna, inclusiva. É urgente reforçar ou, talvez, recuperar o sentido da comunhão. Esta é a chave da Eucaristia.
A diversidade estará presente na própria composição da Assembleia Sinodal: bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, diáconos, leigos e leigas, provenientes de diversas partes do mundo, com experiências eclesiais e culturas diferentes. Como é que esta catolicidade e multiculturalidade podem ajudar no desenvolvimento da Assembleia Sinodal?
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a Assembleia de outubro é uma Assembleia do Sínodo dos Bispos e nela se exprime a colegialidade episcopal. Não podemos desnaturalizá-la. Poderão ser criadas outras estruturas (como a Assembleia Eclesial na América Latina) ou talvez se procurem outras expressões, mas o que se celebra em outubro é a Assembleia do Sínodo dos Bispos.
Se em todas as fases, desde a diocesana até à continental, dissemos que o discernimento só é possível escutando o povo de Deus, e procurámos fazê-lo. Nesta fase própria dos bispos, deve haver também a presença de representantes do resto do povo de Deus para ajudar no discernimento. Tal como numa paróquia o pároco deve ouvir o povo de Deus e o bispo através das estruturas diocesanas, também os bispos no Sínodo devem ouvir o resto do povo de Deus.
Quisemos que eles estivessem presentes numa percentagem de vinte e cinco por cento, para que a Assembleia do Sínodo dos Bispos não seja desvirtuada, mas, ao mesmo tempo, de uma forma muito significativa, com voz e voto. Toda a realidade do povo de Deus estará representada: sacerdotes, leigos, religiosos, religiosas, diáconos. E pelo menos metade deles serão mulheres. O objetivo, como já disse, é ajudar no discernimento. Penso que a presença de não-bispos, de representantes do resto do povo de Deus, pode ajudar muito, porque alarga os horizontes.
Outro elemento a destacar é a interculturalidade, ou seja, a presença de diferentes sensibilidades e culturas. Isto enriquece o conjunto, ajuda-nos a superar o monopólio da cultura latino-ocidental e faz-nos avançar na conjugação do binómio unidade-pluralidade, essencial-acessório.
Na apresentação do Instrumentum Laboris, o Padre Giacomo Costa fez um amplo esboço do que poderia ser a Assembleia Sinodal, insistindo na importância do diálogo no Espírito. Para isso existem as fichas de trabalho apresentadas no Instrumentum Laboris, com a intenção de chegar a decisões concretas através do discernimento comunitário, que é o que foi sublinhado. Como é que isso vai marcar o desenvolvimento da Assembleia Sinodal?
Por um lado, o Instrumentum Laboris oferece muitas questões, agrupadas em três blocos: comunhão, missão, participação. Não quisemos elaborar um texto de base sobre o qual os bispos pudessem trabalhar e depois, com algumas modificações, apresentá-lo como conclusões da Assembleia a submeter ao Papa. Optámos pelo esboço de perguntas, para encorajar um amplo diálogo e discernimento.
Um método que funcionou bem foi o da conversa no Espírito, muito valorizado em todas as assembleias continentais. Não se trata de iniciar um debate, uma troca de opiniões, para ver quem tem mais poder ou como convencer o outro. Trata-se de nos escutarmos uns aos outros e de escutar o Espírito Santo. É por isso que este método é simples e eficaz. Embora não seja de fato obrigatório, penso que é uma proposta válida.
Começa com um momento de oração e de preparação pessoal, escutando a Palavra de Deus; depois vem uma primeira ronda de opiniões em que cada um exprime a sua opinião sobre o argumento; segue-se outro momento de silêncio e de oração; depois vem o momento em que cada um partilha as ressonâncias que lhe surgiram e também as resistências, sem entrar em debate; outro momento de silêncio e de oração; há um diálogo para recolher as intuições, as convergências e as discrepâncias; termina com uma oração de ação de graças.
Este método insiste na escuta do Espírito Santo e na dimensão orante. Pode ajudar-nos muito a desenvolver o trabalho da Assembleia Sinodal, especialmente nos círculos menores.
Faltam cerca de 100 dias para o início da assembleia. Quais são os desafios a enfrentar nesta contagem decrescente?
Já estamos muito perto da Assembleia do Sínodo dos Bispos, e agora o que está a demorar mais tempo é a preparação prática da assembleia: a logística, o local onde se vai realizar, etc. Também as questões organizativas: inscrições, alojamento. Mas, a par disso, estamos a insistir que deve haver uma preparação pessoal de todos os participantes no Sínodo, uma preparação interior. Pedimos que todos os documentos que foram publicados neste processo sejam lidos, que haja reflexão, oração. Isso é essencial.
Uma grande novidade, que talvez não tenha sido suficientemente sublinhada, mas que me parece fundamental, é que vamos começar com três dias de retiro espiritual para todos os participantes no Sínodo. E sublinho "todos". De 1 a 3 de outubro, num lugar perto de Roma, vamos ter estes três dias de retiro espiritual, todos juntos, para escutar o Espírito Santo, para rezar, para nos sentirmos realmente parte de um grande projeto de renovação profunda da Igreja, orientado para a coerência e o dinamismo evangelizador. Estes três dias de retiro espiritual serão fundamentais e já farão parte do Sínodo. Os trabalhos da Assembleia iniciar-se-ão no dia 4.
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Dom Luis Marín: Instrumentum Laboris “não oferece soluções, mas abre caminhos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU