22 Junho 2023
"Não querer ir em frente rumo a uma vida maior e a uma abertura maior na Igreja significa retroceder, ou seja, escolher o caminho que conduz à morte", escreve Christiane Guès, em artigo publicado no dossiê "Rester dans l'Église catholique?" ('Permanecer na Igreja católica', em tradução livre), publicado por Garrigues et Sentiers, 14-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A comunidade Saint Luc de Marselha, tratada no texto a seguir, é uma associação pública de fiéis regida por um estatuto aprovado pelo cardeal Robert Joseph Coffy no Pentecostes de 1993.
Para muitas pessoas, assistir a batizados, casamentos e funerais de membros de suas famílias significa ser católico e estar na Igreja. Fora desses eventos particulares da vida, eu me pergunto se essas pessoas estejam à procura de viver uma fé em Jesus Cristo e vivê-la todos os dias…
Hoje, tendo a secularização concluído a sua obra, essa busca vital quase não aparece mais. Continua-se a ser cristão por adesão, mas não por convicção. Desanimados, a longo prazo, por uma prática desprovida de sabor, um grande número de cristãos acabou jogando fora o bebê junto com a água do banho. Para eles, a Igreja tornou-se um ambiente obsoleto, destinado a desaparecer em algumas décadas.
No entanto, algumas pessoas ainda fazem um percurso de fé, pedem o batismo e, sem chegar a uma prática eclesial, questionam os Evangelhos, descobrem a pessoa de Jesus e a sua mensagem universal de amor a Deus e ao próximo.
Foi precisamente a partir da pergunta feita por uma amiga judia por volta dos 16 anos: "Por que você vai à missa?", que me dei conta de não ter uma resposta para lhe dar, porque de repente ficou claro para mim que acreditava na Deus de uma maneira muito vaga e acreditava menos ainda naqueles ritos maçantes durante os quais eu ficava terrivelmente entediada esperando que acabassem. E eu me perguntava se todas aquelas pessoas (naquela época as igrejas estavam cheias) sentiam o meu mesmo sentimento, de estar ali como um dever, para garantir a sua salvação, porque ainda se defendia o slogan: “Fora da Igreja não há salvação".
Depois comecei a trabalhar, fiz algumas leituras, aquelas que a Igreja proibia ou aconselhava apenas com muita prudência. Tive alguns encontros, como aquele de um jovem, ateu, mas em busca, com quem tive oportunidade de conversar fora do trabalho. Eu via nele uma liberdade que os crentes e as crentes que frequentavam as missas não tinham, sendo demasiados submissos à autoridade e à moralidade eclesial.
Depois houve o Concílio Vaticano II e aquele jovem me disse um dia: “Na realidade, aquilo do que você foge é do fechamento da Igreja sobre si mesma, sobre seus ritos, sobre seus dogmas, mas o Concílio oferece uma abertura real e não reduz mais a salvação apenas aos praticantes. Há um retorno às fontes que trará um rejuvenescimento da Igreja”. Ainda era o tempo da Esperança para a Igreja, falava-se daquela primavera que superaria todos os invernos eclesiais.
Então eu tinha que voltar para as fontes. Então, comecei a leitura dos Evangelhos e descobri a Palavra, descobri que aquela Palavra era viva, desde sempre inscrita no mais profundo de mim. Não era mais eu que lia, mas alguém que falava comigo e me ditava as palavras a partir da minha leitura. Alguém surgia daquelas palavras e me abria um espaço de diálogo e fé.
Simplesmente, eu encontrava Jesus Cristo. Mas não chegava a relacionar esse encontro com a Igreja-Instituição com todos os seus mandamentos, as suas proibições, os seus sacramentos. Essa relação, eu nunca cheguei a fazer plenamente.
Tentei desajeitadamente voltar à Igreja, pois era o único lugar que fazia referência a Jesus Cristo e ao universo que ele havia me aberto. Mas voltava-me à memória todo um passado de gestos repetitivos, de termos passivos, de leis ambíguas, porque, embora tivesse acontecido o Concílio, nem os gestos nem os padres tinham mudado. Somente o padre havia mudado de posição, não mais voltado para o altar durante as missas.
Assim, fui e voltei várias vezes durante vários anos, até meu encontro com a comunidade de Saint-Luc em Marselha. Foi uma descoberta abrasadora. Eu havia finalmente descoberto um lugar onde a Palavra do Evangelho era realmente vivida, onde "não se assistia mais" passivamente, mas se "participava" com alegria e em verdade.
Não se vinha mais buscar o alimento semanal. Fazia-se parte de uma comunidade na qual todos se tornavam membros ativos. Era possível se expressar, mesmo que se saísse um pouco fora dos esquemas. Podia-se assumir responsabilidades, encorajados pelos padres acompanhantes. E a definição de que somos todos "sacerdotes, profetas e reis" assumiu todo o seu sentido ali.
Na época acreditava ingenuamente que essa experiência iria se estender a outras paróquias e que haveria assim uma renovação da Igreja, uma primavera, como se dizia então. Mas não foi assim. Havia padres que recusavam a abertura, como se isso lhes tirasse algumas funções. Jovens que traziam algo novo com a música ou a expressão artística eram rejeitados.
Os tradicionalistas, com a conservação do latim e o padre voltado para o altar, tentavam mobilizar os cristãos nostálgicos do passado e assumir o controle. E a Instituição, mesmo desconfiando deles, desconfiava ainda mais da novidade, da criatividade, da assunção de responsabilidades pelos leigos. Era algo suspeito, dava a ideia de seita e sobretudo tocava a perda de um poder cristalizado sobre a Eucaristia, âmbito reservado apenas a padres homens e celibatários, e sobre os tabus da sexualidade.
Pouco a pouco, aquelas posições assumidas, as várias encíclicas das quais emergiam apenas proibições, afugentaram os jovens. Muitos cristãos foram embora, a maioria criou seus filhos sem batizá-los, dizendo que depois os próprios filhos escolheriam, mas sem orientá-los para a fé em Jesus Cristo ou pelo menos para a existência de Deus. E o ateísmo tomou então o controle sobre todas as formas de fé. As igrejas foram assim abandonadas, frequentadas apenas por poucas pessoas idosas habituadas a submeter-se ao antigo regime.
Felizmente, a comunidade de Saint Luc me permitia viver a minha fé. Mas será que duraria? Evitava pensar nisso.
É grave a recusa em mudar, o entrincheiramento na “Tradição” que leva ao desprezo e rejeição dos padres casados (“reduzidos ao estado laical”), à excomunhão dos divorciados recasados. É grave a expressão: “Prefiro ver morrer a Igreja e os cristãos a renunciar ao nosso status hierárquico". É muito grave "preferir salvar a Instituição em vez da mensagem do Evangelho", ainda que Jesus tenha querido fundar uma organização em torno da sua mensagem: "Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". O que resta se apenas as pedras forem salvas?
Jesus, por outro lado, não se recusa a mudar ou a romper com a tradição de seu tempo. O episódio da Cananeia que o torna consciente da sua missão tanto para com os pagãos como para com os judeus, diz-nos que também nós estamos na terra para mudar o nosso modo de pensar, de acolher a Palavra, no sentido do melhor e do bem para os outros.
No episódio da mulher adúltera, Jesus não hesita em se posicionar contra os escribas e os fariseus. Ele não pega nenhuma pedra na mão para apedrejar a mulher, mas se abaixa e começa a escrever na areia com o dedo. Naquele gesto de não violência está todo o peso da reflexão e da renúncia, não só ao julgamento, mas ao sexismo e à hipocrisia dos escribas e dos fariseus. Duas vezes ele faz o gesto de se abaixar para escrever na areia com o dedo, como se a lei de Moisés tivesse que ser reescrita, levada a cumprimento no sentido do amor e do perdão... E é isso que ele inscreve em sua mente, porque nada de importante se escreve na areia, principalmente com um dedo, a não ser aquela lei de apedrejamento destinada a ser cancelada.
Marcos 10,9: “O que Deus uniu, o homem não deve separar”. Claro, isso foi dito, mas o episódio da mulher adúltera mostra que cada caso é particular, que a situação de um é diferente daquela de outro. O episódio da Samaritana é outro caso especial com aqueles cinco maridos de seu passado. Mas nem uma nem a outra foram julgadas. Além disso, Jesus nunca ligou a Ceia a casos de repúdio que levasse ao adultério. Só com o gesto de lavar os pés dirá (Jo 13,11): “estais limpos, mas não todos”, tendo presente a traição de Judas. No entanto, também a este último será oferecido o pão embebido que ele comerá na presença dos outros discípulos. Jesus, portanto, não relaciona a traição de Judas com a possibilidade de tomar o pão e o vinho, e menos ainda a liga aos divorciados recasados.
Diz-se que os divorciados recasados estão em estado de "pecado contínuo". Mas estamos todos nesse estado! Quem pode afirmar que nunca repetiu seus erros? A prova é que, diante da imensidão do amor de Deus, só podemos nos reconhecer como pecadores e isso vale para todos. Basta que nos voltemos para Deus com as nossas fraquezas expostas diante dele.
“As portas dos sacramentos não deveriam fechar-se por nenhum motivo. A Eucaristia não é um prêmio destinado aos perfeitos, mas um alimento para os fracos”. É o Papa Francisco quem diz isso, mas nada é feito nesse sentido. Se a Instituição tivesse razão em sua proibição, por que o Espírito Santo se manifestaria nos divorciados recasados sem levar em conta a situação deles?
Por espírito de superioridade, a Instituição suprimiu as Assembleias dominicais na ausência de padres, sob o pretexto de que tais reuniões de cristãos tendiam demais a substituir o padre ausente nas celebrações. Que pena que a Instituição tenha perdido assim a oportunidade de encontrar o Espírito Santo!
Mas por que os cristãos obedecem? Muitas vezes ficam do lado da instituição, querem um pároco como se fosse uma tábua de salvação. Não viram o perigo por trás dessa injunção da Instituição, não viram que por trás da sacralidade dos padres rejeitada por Jesus se escondia uma retomada de poder a seu favor?
O fato é que aqueles cristãos foram demasiadamente “formatados” na passividade da submissão! Mais ainda, alguns leigos assumem o direito de condenar até os divorciados e não casados de novo, enquanto os padres estariam inclinados a ser mais indulgentes. Se eu não tivesse conhecido a comunidade de Saint Luc que aceita todas as situações, teria feito como muitos cristãos, teria ido embora em silêncio porque a Instituição veicula muitos contratestemunhos.
A comunidade de Saint Luc envelheceu nesse meio tempo, apesar da nossa abertura a todos, apesar da corresponsabilidade padres-leigos vivida em comunidade, apesar da criatividade que a caracterizou. Tudo o que constituiu a nossa primavera ficou para trás. Os mais idosos já morreram ou estão em casas de repouso, os jovens foram embora por motivações diversas que não a Igreja, muitas vezes mais próximos a escolhas humanitárias, o que é bom de qualquer maneira.
Dado o pequeno número de sobrou, Saint Luc corre o risco de fechar, apesar de tudo o que fizemos para tornar a liturgia mais viva. Mas será a liturgia o futuro da Igreja? A Instituição se recusa a prever uma mudança para o futuro porque os velhos demônios da Tradição renascem continuamente para se opor a ela.
Mateus 22:32: "Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos". Não querer ir em frente rumo a uma vida maior e a uma abertura maior na Igreja significa retroceder, ou seja, escolher o caminho que conduz à morte.
Vou deixar Saint Luc com grande pesar, mas não irei a outro lugar, porque não posso aceitar a ideia de reencontrar uma Igreja de antes do Vaticano II. No entanto, não perderei de vista a Igreja, especialmente nas festas importantes, porque dela aprendi a existência e a mensagem de Jesus, mesmo que ela não as respeite plenamente. O duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo permanecerá inscrito em mim talvez por causa do meu batismo, mas também está inscrito no mundo até o fim dos tempos. Será sempre a nossa bússola, de nós cristãos, mesmo que naveguemos sem poder encontrar paz.
Simplesmente guardemos dentro de nós estas duas palavras que Jesus nos deixou: Mt 24,35: "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar!" e Mt 28,20: "estou convosco até ao fim dos tempos".
E depois, quem sabe? Talvez um dia renasçam pequenas comunidades de leigos como nos primeiros tempos da Igreja e o Espírito Santo, que se acreditava estar definitivamente escondido, ressurja para novos Pentecostes.
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Deixo a Igreja, mas sem perdê-la de vista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU