20 Fevereiro 2023
A unidade da Igreja é uma questão importante demais para se pensar que abrange, aceita e abençoa tudo e o seu contrário. Se a divisão contradiz a mensagem evangélica, o que deve ser considerado não é a divisão, mas o que a produz e que parece não poder ser objeto de acordos, concessões ou renúncias.
O comentário é de Patrice Dunois-Canette, jornalista francês especializado em aconselhamento e formação em laicidade e religiões, publicado por Saint-Merry Hors-les-Murs, 07-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Unidade, a que preço?
A unidade desejada não é um dado, mas um caminho e para empreendê-lo existem condições nas quais temos que ser claros e não transigir. A comunhão não pode existir em detrimento da figura de Cristo e sua mensagem libertadora não pode existir em um remanejo ideológico da mensagem a fim de preservar uma ordem do mundo religioso, social e política felizmente superado, um mundo de dominantes e dominados, de obrigações, de exclusões, de abusos e de influências. Existem "linhas vermelhas" além das quais a Igreja não pode se aventurar, mesmo quando a crise que a sacode e os golpes que está sofrendo a levariam a encontrar conforto nos ambientes mais conservadores, mas fundamentalmente mais hostil à mensagem.
Não é possível construir a unidade dando crédito a uma hermenêutica do concílio que na realidade parece ser uma ação de desconstrução e que afirma sem pestanejar que o Vaticano II não disse nada de inovador, nada de novo em relação ao que sempre foi dito. Seria um insulto ao Concílio e aos Padres Conciliares admitir como discurso católico aceitável dizer que o Concílio foi niilista, destrutivo, ou mesmo que o que foi recebido foi apenas um “concílio das mídias” e não uma ação da Igreja. Seria ingênuo acreditar que a comunhão seja possível com aqueles que, mesmo jurando fidelidade ao Concílio, querem torná-lo um Concílio como outros, e trabalham arduamente para que o Concílio seja posto na linha.
A instituição romana e as Igrejas locais, e particularmente a nossa (francesa), erram quando se mostram indecisas em escolher dar todo o espaço que merece a este concílio na história da Igreja, dar toda a sua importância a um concílio que, por suas escolhas corajosas, representa uma ruptura com os concílios anteriores e com o clima em que a Igreja se movia até aquele momento. Essa atitude, esse posicionamento suscita perplexidade, incompreensão, desorientação, deserções.
A pusilanimidade, a vacilação, os adiamentos, o duplo jogo, não constroem unidade e não dão futuro à Igreja.
O mais ou menos autorizado "deixar fazer" ao desdobramento de práticas retrógradas, os comentários complacentes sobre uma possível "interpretação errada" do Concílio ou sobre o seu "esquerdismo" parecem concessões aos mais conservadores e "anteparos" para tentar não irritar ninguém, e enfim, sobretudo uma falta de coragem para se questionar sobre as noções de tradição, de doutrina e de historicidade dos ensinamentos. Dizer que os problemas atuais da Igreja derivariam de uma má recepção, tanto formal quanto prática, do concílio, negar o significado histórico do Vaticano II e não querer ver o seu ensinamento se não for inscrito na linha da tradição como corpus de enunciados, práticas e hábitos, ritos e usos, significa recusar-se a ver o que o Concílio inaugurou. Significa rejeitar o Concílio como evento inédito que antecipou uma nova figura da Igreja e do Cristianismo. Em última análise, significa dar as costas a um Concílio que é referência, movimento, bússola para inventar uma Igreja reformada, nova e capaz de exprimir em relação a todos uma bênção eficaz e performativa.
As injunções do Concílio de Trento que queriam a recepção do concílio, sua interpretação fosse reservada à autoridade suprema e aos seus "mediadores" clericais e obrigatórios, fazem parte do passado. O confisco por parte de autoridades temerosas ou conservadoras da recepção do Concílio é um confisco da Igreja. Acolher o Concílio como evento e movimento é amar uma Igreja ao serviço da esperança, é construir a Igreja de hoje.
Percorrer o caminho de uma "desossamento", por mais "soft" e silencioso que seja, do Concílio Vaticano II significa, em última análise, rejeitar uma Igreja sancta simul et semper purificanda, chamada por Cristo a uma reforma permanente da qual tem perpétua necessidade como instituição humana e terrena. O Vaticano II não é um concílio como os outros, é um concílio novo que não se caracteriza por definições cristológicas, que não é influenciado pela controvérsia antiprotestante ou pelo restabelecimento da disciplina eclesiástica.
É um concílio que optou pela forma pastoral da doutrina, um concílio que, em outras palavras, optou por promover:
- uma doutrina que diz respeito ao ser humano completo e à sua humanização,
- uma doutrina inscrita no momento presente da história,
- uma doutrina transmitida para a felicidade do ser humano na situação presente da história.
O que, de fato, representa uma ruptura em relação aos concílios anteriores e ao clima em que o catolicismo evoluía no momento em que se realizou o concílio. Com João XXIII e com o Concílio, a Igreja inicia a transformação do dogmatismo, se interessa com os destinatários e com o contexto histórico e cultural em que se movem.
Escuta do Evangelho e a tradição para os reinterpretar e transmissão do Evangelho num novo contexto: eis o projeto, a dinâmica de um Concílio diferente, inédito, de um Concílio acontecimento, de um Concílio que não deve ser só acolhido, mas ele mesmo recebe os fermentos que atuam na sociedade como um todo.
O Vaticano II é o concílio que, assimilando os progressos teológicos (movimento litúrgico e ecumênico, retorno às fontes bíblicas e patrísticas, renovação da eclesiologia, teologia do laicato), a fez passar:
- do comando ao convite,
- da lei ao ideal,
- da ameaça à persuasão
- da constrição à consciência,
- do monólogo ao diálogo,
- do comando ao serviço,
- da exclusão à inclusão,
- da hostilidade à amizade,
- da suspeita à confiança,
- da rivalidade à parceria,
- da busca da culpa á apreciação,
- da mudança de comportamento à apropriação interior. (John O'Malley)
Façamos tudo para que o Concílio Vaticano II seja recebido como futuro e façamos desta escolha uma linha vermelha na busca da comunhão.
A agitação que se seguiu à morte de Bento XVI e as ações que preparam uma sucessão de Francisco e que, fingindo uma valorização querem acabar com o Concílio Vaticano II e a sinodalidade que é sua filha, não devem nos levar a compromissos ou silêncios que agem contra a Igreja e seu futuro na cultura de hoje.
Giuseppe Alberigo. La storia del Concilio Vaticano II.
Joseph Famerée et Gilles Routhier. Penser la réforme de l’Église, Cerf, coll. Unam sanctam
John O’Malley. Che cosa è successo nel Vaticano II.
Gilles Routhier. Il concilio Vaticano II. Recezione ed ermeneutica
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Igreja: as “linhas vermelhas” da comunhão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU