Padre, teólogo e sociólogo, o bispo Tomáš Halík é uma figura importante da Igreja tcheca. Vários de seus textos tiveram forte influência em muitos países durante a pandemia. A sua experiência de Igreja sob o regime comunista, bem como os últimos acontecimentos, levaram-no a ter um olhar penetrante sobre o futuro do cristianismo na Europa.
A entrevista é de François Euvé e publicada por Études, janeiro de 2022. A tradução é de André Langer.
Você pode nos apresentar seu itinerário, ainda pouco conhecido do público francês? Quem são os principais autores que importaram para você?
Eu nasci em uma família de intelectuais laicos em Praga em 1948, mesmo ano em que os comunistas tomaram o poder na Tchecoslováquia. Minha conversão ao cristianismo aconteceu em etapas. No início, havia o apelo intelectual e estético da cultura católica proibida pelo regime: a arquitetura das igrejas de Praga, a música sacra, os livros de autores como G. K. Chesterton, C. S. Lewis, François Mauriac, Graham Green, Julien Green, Léon Bloy, Georges Bernanos e muitos outros.
Foi apenas por volta da Primavera de Praga de 1968 que conheci alguns padres proeminentes que haviam acabado de voltar das prisões stalinistas, depois de passarem quinze anos atrás das grades. Alguns deles viam a perseguição comunista como uma pedagogia divina – uma purificação da Igreja de seu antigo triunfalismo. Na prisão, onde fizeram a experiência do ecumenismo prático, eles sonharam com outro tipo de Igreja, uma Igreja verdadeiramente ecumênica, pobre, aberta, a serviço das pessoas.
Essas pessoas me ajudaram a compreender o espírito das reformas do Concílio Vaticano II. No início dos anos 1970, alguns dos livros de Pierre Teilhard de Chardin caíram nas minhas mãos e abriram um mundo totalmente novo para mim. Teilhard escreveu sobre a necessidade de uma analogia entre o padre e o trabalhador: padres para o mundo da ciência e da cultura. Recebi isso como minha vocação.
Mas o caminho para isso não passou pelo seminário então controlado pelo poder comunista. Então entrei para a “Igreja clandestina”. Estudei teologia em segredo em cursos clandestinos e fui ordenado secretamente na capela particular do bispo Hugo Aufderbeck em Erfurt (na antiga Alemanha Oriental) em 1978. Depois trabalhei como padre na clandestinidade durante onze anos. Minha profissão civil era a de psicoterapeuta para alcoolistas e viciados em drogas. Conto isso no livro From the Underground Church to the Labyrinth of Freedom, traduzido para vários idiomas.
O que a experiência de alguém que viveu sob o regime comunista pode aportar para nós ocidentais do século XXI?
Meus alunos, nascidos por volta do ano 2000, já são cidadãos do Ocidente. O comunismo é para eles como a monarquia dos Habsburgo foi para a minha geração, um passado distante. Eu vivi a minha infância sob o stalinismo, minha juventude na década de 1960, quando nossos professores da faculdade de filosofia passaram do marxismo-leninismo para o “euromarxismo”, para o existencialismo, para a fenomenologia e para a psicanálise. Esse desenvolvimento culminou durante a Primavera de Praga e terminou sob os tanques soviéticos em agosto de 1968. Depois vieram os próximos vinte anos de comunismo, durante os quais ninguém acreditou na ideologia comunista, nem mesmo os mais altos funcionários do Partido: eles eram apenas apparatchiks cínicos do poder. Depois de 1968, havia muito mais marxistas no Ocidente do que no Oriente. Depois veio o “annus mirabilis de 1989”. O comunismo não foi derrotado por nós, os dissidentes, e não fomos libertados pelo Ocidente. Estou convencido de que o principal papel no colapso do sistema comunista foi desempenhado pelo processo de globalização. Quando um mercado global livre para bens e ideias foi criado, os sistemas comunistas, com suas economias planejadas pelo Estado e pela censura cultural, foram rapidamente varridos pelos ventos ferozes da competição.
Sob a presidência de Václav Havel, tivemos uma lua de mel com a liberdade. Éramos cidadãos europeus orgulhosos e felizes. Depois veio a era do capitalismo selvagem. Os últimos comunistas, os únicos a dispor de um capital de dinheiro, contatos e informações depois de 1989, tornaram-se os primeiros capitalistas. O ideólogo do “marxismo invertido”, Václav Klaus, o oposto de Havel, tornou-se o sucessor deste último à presidência. Ele adorava a “mão invisível do mercado” e abriu a porta para a mão invisível da corrupção por meio de seu descaso com o lado ético da política e da economia. Hoje, nosso presidente é o fantoche de Vladimir Putin, o populista cínico Miloš Zeman. O que aqueles que viveram tudo isso podem dizer ao Ocidente? Talvez a democracia não seja apenas um sistema político, mas uma certa cultura de relações humanas que é muito vulnerável e deve ser constantemente alimentada. Mas vocês sabem disso por experiência própria.
O que você aprendeu com o contato com os ateus? Por que o diálogo com pessoas de todas as crenças é essencial para os cristãos?
Uma distinção deve ser feita entre o ateísmo crítico e o ateísmo dogmático. O ateísmo dogmático é tão estúpido quanto o fundamentalismo religioso, eles são gêmeos.
Eu saúdo o ateísmo crítico porque pode ser uma ancilla theologiæ [“serva da teologia”], ele pode ser um fogo purificador útil para aprofundar a fé. O ateísmo é como o fogo, um bom servo, mas um mau mestre. Pode ser útil ao crente porque aplaina e corrige sua fé, mas pode ser perigoso para o ateu porque, se não for corrigido pela fé, pode tornar-se uma religião dogmática sui generis.
O ateísmo não é necessariamente um adversário da fé: muitas vezes é a negação de um tipo particular de teísmo. E há inegavelmente muitos tipos de teísmo (concepções ingênuas e às vezes destrutivas de Deus) que merecem ser rejeitadas. Nesse sentido, os cristãos da Roma antiga eram considerados ateus porque rejeitavam a religio política dos romanos.
Que papel a dúvida desempenha junto à fé?
Fé e dúvida são duas irmãs que precisam uma da outra. A fé sem pensamento crítico e sem dúvida honesta pode levar ao fundamentalismo e ao sectarismo. A dúvida que é incapaz de duvidar de si mesma pode levar ao cinismo e ao niilismo.
Não estou falando sobre duvidar da existência de Deus. Um Deus que pode não existir, um Deus como um ser contingente, não é o Deus da minha fé. Creio em um Deus em quem, nas palavras do apóstolo Paulo, vivemos, nos movemos e existimos (Atos 17, 28), embora não usemos a palavra “Deus” para descrevê-lo. Duvido da minha própria capacidade de compreender e expressar este mistério. Essas dúvidas me ajudam a manter um espaço aberto para o Deus que é, repito (com Santo Inácio também), Deus semper maior, “Deus sempre maior” do que minhas ideias religiosas.
Quais são os “sinais dos tempos” hoje? Como podemos reconhecer o kairós, o tempo presente?
Em um momento em que a retórica, as emoções e os símbolos religiosos estão sendo usados como armas nas guerras culturais, o poder pacífico e curativo da fé deve ser mobilizado. A sociedade multicultural e pluralista de hoje e de amanhã enfrenta uma escolha: “choque de civilizações” ou civitas oecumenica. A mera “tolerância”, no sentido da indiferença mútua, não é suficiente. Devemos ensinar uns aos outros uma abordagem contemplativa dos acontecimentos no mundo e em nossas próprias vidas: “encontrar Deus em todas as coisas”. Devemos desenvolver a arte do “discernimento espiritual” ensinada por Inácio de Loyola e numerosos mestres espirituais.
Santo Agostinho criou sua teologia da história quando Roma estava em colapso e a civilização romana estava sendo abalada pelas “invasões bárbaras” e pelo choque de civilizações. O período atual não é um desafio para a emergência de uma nova teologia da história contemporânea?
Uma das faces mais credíveis e convincentes do cristianismo é o ecumenismo. Se a Igreja Católica quer ser verdadeiramente católica, deve completar a mudança iniciada no Concílio Vaticano II, do catolicismo para a catolicidade. Para que a Igreja seja uma Igreja, e não uma seita, ela deve chegar a uma nova compreensão de si mesma e desenvolver mais plenamente a sua “catolicidade”, a universalidade da sua missão, esforçando-se para ser verdadeiramente “tudo para todos”. Ao fazê-lo, no entanto, ela não deve perder sua identidade. Mas a identidade do cristianismo não é algo estático, dado de uma vez por todas de forma imutável. O cristianismo é uma continuação do mistério da Encarnação, o Verbo de Deus se encarnando continuamente no corpo da história, da sociedade e da cultura humanas.
Os esforços de democratização da Igreja durante a Reforma contribuíram de maneira significativa para a democratização de toda a sociedade da época. Os esforços ecumênicos dentro do cristianismo também devem transcender as fronteiras das Igrejas e inspirar esforços para quebrar as fronteiras em toda a família humana. É urgente transformar o processo de globalização em um processo de comunicação cultural e de partilha mútua. Recordemos a visão de Teilhard segundo a qual a missão do cristianismo é inserir no processo de planetarização da humanidade a energia do amor ilimitado e incondicional ensinado pelo Evangelho.
As histórias de vida dos cristãos e a história da Igreja são uma participação mística no mistério da Páscoa, no mistério da morte e ressurreição. As histórias de vida dos cristãos e a história da Igreja têm suas Sextas-feiras Santas, seus sofrimentos e suas descidas aos infernos, o silêncio do Sábado Santo e a alegria da manhã da Páscoa. O drama da Páscoa é a chave para entender o drama de nossas vidas, e nossas experiências, por sua vez, nos abrem para uma compreensão mais profunda do mistério pascal.
Quais são as ameaças mais sérias às nossas sociedades? Quais são as expectativas espirituais hoje?
A única coisa a temer é o medo. Até Søren Kierkegaard sabia que a angústia é a vertigem da liberdade diante de suas infinitas possibilidades.
A ansiedade típica da era da globalização é o medo da perda de identidade, tanto nos indivíduos quanto nos grupos. Esse medo engendra um novo tipo de nacionalismo agressivo, um nacionalismo que muitas vezes recorre à retórica, às emoções e aos símbolos religiosos. Durante muito tempo, o Ocidente acreditou que o perigo de uma união entre a religião e o poder político era evitado pelo princípio da separação entre Igreja e Estado. Mas a situação mudou, pois os Estados-nação agora perderam o monopólio da política; e as Igrejas, o da religião. Forças supranacionais estão agora se envolvendo na vida política na forma de poderosas corporações econômicas, de iniciativas cívicas internacionais e de organizações não governamentais.
Os símbolos religiosos que se emanciparam de seu contexto cultural original tornaram-se um recurso acessível ao público. A “mão invisível do mercado” responde prontamente ao interesse pela espiritualidade, oferecendo mercadorias baratas, esoterismo e kitsch religiosos de todos os tipos. Quando os populistas pragmáticos usam uma retórica religiosa, por exemplo, posando como “defensores de uma civilização cristã ameaçada”, trata-se mais de sacralizar a política do que de politizar a religião. Quando os símbolos religiosos, que contêm energia emocional insuspeitada, são usados como armas em guerras culturais e as disputas políticas são retratadas como batalhas apocalípticas entre o bem e o mal, as consequências podem ser verdadeiramente desastrosas.
Os populistas dos países do Grupo Visegrád (Polônia, Hungria, Eslováquia e República Tcheca) costumam usar uma retórica cristã e, quando estão no poder, tentam corromper a Igreja oferecendo-lhe vários benefícios materiais e privilégios. Apelações para um “retorno à Europa cristã” e a substituição da democracia liberal por uma “democracia não liberal”, isto é, um Estado autoritário, ressoam hoje especialmente na Hungria e na Polônia. Os populistas de direita chegaram ao poder em ambos os países e estão tentando gradualmente paralisar a liberdade e a independência do judiciário, da mídia, da educação, da cultura e das organizações sem fins lucrativos.
O regime de Jarosław Kaczyński na Polônia causou muito mais danos à Igreja Católica nos últimos anos do que o regime comunista conseguiu fazer em meio século. Hoje, a secularização mais rápida da Europa está ocorrendo na “Polônia católica”. Os jovens e os intelectuais estão se afastando da Igreja. A convergência dos políticos populistas e determinados círculos da Igreja é apoiada não apenas por nacionalistas da Europa Ocidental, como Marine Le Pen, mas especialmente de maneira muito sofisticada pela Rússia. O esforço sistemático de propaganda russa para minar a confiança na União Europeia no mundo pós-comunista visa especificamente os círculos católicos conservadores. O Ocidente é hoje tão ingênuo em relação à Rússia de Putin quanto era sobre a Alemanha na década de 1930.
O que os países da Europa Central podem aportar para a Europa Ocidental, e vice-versa?
Deveríamos dizer uns aos outros: Não repitam nossos erros, cometam os seus! O que o Ocidente deveria oferecer às Igrejas nos países pós-comunistas é a experiência de como se sustentar em uma sociedade aberta e pluralista. As Igrejas nos países pós-comunistas ainda precisam realizar uma reflexão teológica aprofundada sobre a sua experiência durante o período de repressão.
Os muitos anos de supressão da religião em nome do ateísmo, que se tornou uma pseudo-religião militante sob os regimes comunistas, nunca resultou em uma “sociedade ateia”, mas a religião tradicional mudou sob essas condições. A perda de privilégios sociais e a queda do número de praticantes convencionais com uma fé apenas superficial libertaram a Igreja de muitas maneiras, aprofundando e intensificando a fé dos fiéis, e o testemunho dos mártires trouxe muitos simpatizantes e convertidos. Nesse sentido, tornou-se realidade a experiência secular de que “o sangue dos mártires é a semente da Igreja”.
No entanto, deve-se acrescentar ao mesmo tempo que a perseguição e a “exculturação” também tiveram consequências destrutivas. Embora algum grau de perseguição seja benéfico para a Igreja, uma perseguição severa a longo prazo, e especialmente o isolamento da evolução do pensamento teológico, é prejudicial a ela. Em alguns casos, quando a religião se transforma em uma contracultura, o resultado é uma guetização doentia. Às vezes, a perda da comunicação livre com toda a sociedade e sua cultura, bem como com o mundo exterior e a Igreja no mundo livre, inclusive com os desenvolvimentos da teologia, leva a uma rigidez intelectual. A necessidade de estar constantemente na defensiva diante da pressão externa leva à falta de autocrítica, enquanto a necessidade de cerrar fileiras cria a ilusão de uma real unidade de opinião; onde quer que o ar fresco da livre troca de opiniões esteja ausente durante muito tempo, há o risco de que as coisas fiquem mofadas.
Após o colapso dos regimes comunistas, grande parte da sociedade esperava muito da Igreja... e ela se decepcionou. Muitos cristãos se viram incapazes de viver sem um inimigo e, depois que o comunismo desapareceu, procuraram um novo. O “liberalismo ocidental” começou a preencher esse papel aos seus olhos. A “síndrome do prisioneiro libertado” assumiu muitas formas nas sociedades pós-comunistas. Em alguns círculos cristãos, assumiu a forma da “agorafobia”, para usar um termo da psicopatologia, em outras palavras, o medo irracional de espaços abertos.
Se a atual onda de populismo nos países pós-comunistas, bem como em alguns países da Europa Ocidental, eventualmente passar e se a União Europeia e a democracia liberal sobreviverem aos atuais ataques e crises, pode-se supor que os países pós-comunistas da Europa Central e Oriental acabarão se parecendo cada vez mais com a Europa Ocidental.
Estou convencido de que, se realmente procuramos superar a crise em que as Igrejas se encontram “nos dois pulmões da Europa”, não devemos nos deixar seduzir pelo sucesso das seitas fundamentalistas, que oferecem um caminho religioso rápido, fácil e barato sem a cruz do espírito crítico. Devemos resistir à tentação de fornecer respostas simples a perguntas complexas ou de oferecer uma imagem em preto e branco do mundo. Estou convencido de que a missão dos cristãos neste momento da história e nesta cultura europeia não é oferecer certezas, mas ensinar a coragem de entrar na nuvem do mistério e viver com as questões abertas e os paradoxos da vida. Sob o regime comunista, precisávamos principalmente da virtude da coragem, agora precisamos principalmente da virtude da sabedoria.
O serviço mais importante que a Igreja pode prestar hoje às pessoas é desenvolver a arte do discernimento espiritual na vida pessoal e na vida da sociedade, bem como a hermenêutica teológica da cultura contemporânea ou, em termos tradicionais, “ler os sinais dos tempos”.
Onde podemos encontrar as sementes da esperança? Onde está “a Galileia onde podemos encontrar o Cristo vivo”?
Em muitos países, as igrejas, os mosteiros e os seminários estão se esvaziando. Tomei as igrejas vazias e fechadas durante a pandemia de coronavírus como um sinal de alerta profético: é assim que a Igreja poderá ser em breve se não se reformar. As igrejas vazias, durante as duas silenciosas épocas da Páscoa de 2020 e 2021, pareciam um túmulo vazio. (Afinal, até mesmo o louco do Friedrich Nietzsche, precursor da “morte de Deus”, comparou as igrejas aos túmulos de Deus.) Enquanto lamentamos o túmulo vazio, não devemos permanecer surdos à voz que clama: “Por que buscais o vivente entre os mortos? Ele não está aqui, ele ressuscitou. Ele vos precederá na Galileia, é onde o vereis”. Esta Galileia de hoje, a Galileia dos gentios, penso que está além das fronteiras visíveis das Igrejas, no mundo dos buscadores espirituais.
O Papa Bento XVI havia proposto a abertura de um “pátio do gentios” dentro da Igreja, um espaço para os agnósticos e os buscadores espirituais, assim como o Templo de Jerusalém tinha um espaço para os gentios simpatizantes do judaísmo. Mas isso não é suficiente hoje. Nos últimos tempos, a forma da Igreja como templo, que foi abalada desde o Iluminismo, entrou em colapso. Às vezes me parece que resta apenas um “Muro das Lamentações”.
Na véspera do conclave, o cardeal Jorge Bergoglio havia citado as palavras de Jesus: “Estou à porta e bato”. Mas acrescentou: “Hoje, o Cristo está batendo de dentro da Igreja e quer sair. E devemos segui-lo”. O papa nos convidou para ir atrás dos feridos nos campos de batalha de hoje e dos que estão à margem. Devemos chegar às pessoas que se encontram à margem da sociedade, mas também às pessoas à margem da Igreja ou além das fronteiras visíveis das Igrejas.
As pesquisas sociológicas indicam que o número “daqueles que acreditam (em algo)” está diminuindo. Isso inclui tanto aqueles que se identificam plenamente com o ensino e com a práxis das instituições religiosas tradicionais quanto aqueles que encontraram um lar no ateísmo dogmático. Ao mesmo tempo, aumenta não apenas o número de agnósticos e indiferentes, mas também o número dos “buscadores” espirituais. O futuro do cristianismo na Europa provavelmente dependerá sobretudo da capacidade dos cristãos de se aproximarem desses buscadores. Mas a comunicação com eles deve renunciar ao proselitismo e a uma atitude de “possuir a verdade”. Não tentemos empurrá-los para os limites institucionais e mentais existentes, mas vamos expandir esses limites e avançar para novos horizontes, em parceria com eles. O cristianismo de hoje precisa de um novo tipo de ecumenismo, de uma superação de si mesmo. A questão de saber em que consiste a identidade do cristianismo deve ser feita repetidas vezes. Cristo é semper maior, “sempre maior” do que a nossa imaginação.
Para você, quais são os traços que caracterizam o Papa Francisco? Qual é a contribuição mais significativa que ele deu?
O Papa Francisco não é um revolucionário que quer mudar a doutrina da Igreja. As pessoas que o conhecem bem há décadas dizem que ele não é um progressista teológico; ele é antes misericordioso. A misericórdia é a chave para entender sua personalidade e sua reforma. O Papa Francisco não muda os dogmas, nem derruba as estruturas externas; por outro, transforma a práxis e a vida. Ele não muda a Igreja a partir de fora. Ele a transforma muito mais profundamente, espiritualmente, a partir de dentro. Ele a transforma pelo espírito do Evangelho: é uma “revolução da misericórdia”. Sua reforma, portanto, tem o potencial de mudar a Igreja e trazê-la de volta ao coração da mensagem de Jesus mais profundamente do que muitas reformas do passado.
Com seu exemplo pessoal de bravura cristã, o Papa Francisco nos encoraja a não sermos intimidados ou desencorajados por certos eventos que ocorreram na Igreja. Pelo contrário, chama-nos a agir como filhos livres de Deus, exercendo responsavelmente a liberdade que Cristo nos deu e não voltando ao jugo da escravidão da religião legalista, como ordenou o Apóstolo Paulo.
Você escreveu: “Um capítulo na história do cristianismo está chegando ao fim”. O que deve morrer no cristianismo hoje?
Grande parte da forma de cristianismo que os europeus durante muito tempo consideraram certa está expirando irrevogavelmente. Os teólogos e os pastores da Igreja hoje precisam da coragem de São Paulo, que permitiu que o cristianismo primitivo entrasse no novo e mais amplo contexto da civilização helênica e romana, ao declarar ultrapassado ou mesmo prejudicial muito do que os cristãos da época, inclusive autoridades de destaque entre os Apóstolos, consideravam características essenciais da sua identidade religiosa, especialmente a circuncisão e outras regras da lei de Moisés.
Durante vários séculos, o cristianismo assumiu a forma de uma religião – religio no sentido de uma força integradora da sociedade. Nesse sentido, o substantivo religio é derivado do verbo re-ligare, “reunir”. Nos tempos modernos, na era da fragmentação do mundo, a fé cristã perdeu essa “função religiosa”, sendo o cristianismo e a religião vistos como uma “visão de mundo” entre outras. Acho que a forma futura do cristianismo será a religião no sentido de re-legere, “reler”. Devemos reler cuidadosa e criticamente as duas “fontes da fé”, a Bíblia e a tradição.
Estou convencido de que a forma tradicional da Igreja e seu papel pastoral, a rede de paróquias territoriais, estão se tornando coisas do passado. Creio que os centros da fé (as várias comunidades cristãs, paróquias, comunidades religiosas, movimentos eclesiais, etc.) devem tornar-se “escolas de sabedoria cristã”, lugares de encontro para as “novas leituras”, a meditação comum, a escuta e a partilha das experiências de fé.
Estou convencido de que o ministério do acompanhamento espiritual, que tem uma dimensão pedagógica e terapêutica (no sentido mais amplo), será uma forma fundamental do trabalho da Igreja no futuro. Provavelmente será mais necessário do que as duas atividades nas quais a Igreja se empenhou até agora, a saber: a pastoral paroquial e a atividade missionária no sentido clássico da palavra. O ministério do acompanhamento espiritual é para todos e não apenas para os devotos. Isso se aplica hoje ao ministério de capelães em hospitais, prisões, militares e educação. Estou convencido de que isso deve se aplicar em um futuro próximo ao ministério da Igreja como tal. Se a Igreja deve ser uma Igreja, e não uma seita introspectiva, ela deve passar por uma mudança radical na percepção que ela tem de si mesma e de seu ministério junto a Deus neste mundo.