03 Mai 2019
"Uma base sólida em filosofia ensinará a respeito de valores e princípios. Lewis denuncia a contradição e a incoerência do atual governo brasileiro: eleito com uma proposta de não se envolver em corrupção, mas que deseja que a educação seja apenas técnica", escreve Carlos Caldas, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas em Belo Horizonte.
No último dia 26 de abril o Brasil foi surpreendido por (mais) uma declaração polêmica do Presidente Jair Bolsonaro. Pelo Twitter Bolsonaro declarou que “o Ministro da Educação Abraham Weintraub estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”. Disse mais: “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”.
Não se sabe ao certo o que Bolsonaro e Weintraub querem dizer por “descentralizar investimento”. “Descentralizar” significa “tirar do centro”. Só que tradicionalmente as humanidades nunca receberam prioridade de investimento da parte de nenhum governo. Estranha a argumentação de Bolsonaro. Mais estranha ainda é sua tentativa de justificativa desta decisão. Ao tentar explicar, o presidente aponta para o que ele e Weintraub entendem que são prioridades: aprender a ler, a escrever, as quatro operações matemáticas básicas e um ofício “que gere renda”. Em outras palavras, o propósito do governo é oferecer aos jovens brasileiros uma educação mínima, algo técnico e completamente básico, nada mais que isso. Faz lembrar a cena antológica do clássico Tempos modernos, de Charles Chaplin, de 1936, em que um funcionário de uma fábrica que funciona em regime fordista fica totalmente surtado. O funcionário aprendeu um ofício que gera renda. Limita-se a apertar parafusos. E enlouquece ao fazê-lo repetidamente. A crítica feita por Chaplin em seu filme continua relevante.
Por detrás da implicância, e mais que isso, do desprezo da dupla Bolsonaro e Weintraub em relação às humanidades encontram-se alguns pressupostos. Um deles, a que filosofia e sociologia são inúteis. É compreensível um homem simples do povo pensar assim. Mas é inadmissível, e mesmo imperdoável que um Ministro da Educação e um Presidente da República pensem desta maneira. Nada no mundo justifica um anti-intelectualismo destes em figuras que ocupam posições de tanta importância na vida da nação. Outro pressuposto é que faculdades de filosofia e sociologia, especialmente nas universidades federais, seriam, ou são, centros de reflexão a partir de pressupostos teóricos rejeitados pelo atual governo brasileiro. Um terceiro pressuposto é que estudantes das humanidades nas federais em geral dedicam-se a atividades não muito acadêmicas, por assim dizer, o que seria um desperdício do dinheiro público, na visão dos mencionados líderes governamentais. Daí que, ao decidir reduzir investimentos nestas áreas o governo age como o homem daquela conhecida anedota que, ao descobrir que a esposa o traía com o vizinho no sofá da sala, resolveu vender o sofá...
Ao ler a mensagem presidencial veiculada pelo Twitter fiquei a pensar no que o intelectual norte-irlandês C. S. Lewis (1898-1963) diria a respeito. Lewis era um verdadeiro humanista: lecionou literatura medieval e renascentista nas universidades de Oxford e Cambridge. Escreveu muito, em campos do saber tão diversos como teoria da literatura e teologia, além de obras de ficção, fantasia e literatura infanto-juvenil. Em A abolição do homem, texto teórico sobre educação, Lewis desenvolve uma argumentação que constitui-se em crítica contundente à iniciativa do atual governo brasileiro de querer oferecer uma educação que seja apenas técnica. O governo fala em uma educação que está mais para um adestramento em massa, uma educação que não produz cidadãos críticos e conscientes.
A tese central de A abolição do homem é a seguinte: a educação nunca pode ser apenas técnica. Educar não é apenas passar informações. A educação pressupõe valores morais absolutos. Uma educação que se concentra apenas na técnica levará uma sociedade à “abolição do homem” que dá título ao livro. Para comprovar e ilustrar sua tese, Lewis recorre a uma quantidade imensa de textos provenientes de tradições antigas tão distintas uma da outra quanto a chinesa, a babilônia, a indiana, a egípcia, a escandinava e a hebraica. Para se referir a estes valores morais e princípios éticos compartilhados por todas estas tradições Lewis usa a palavra Tao, que vem da tradição chinesa clássica. O Tao no entender de Lewis é o caminho (e é exatamente este o sentido da palavra chinesa, que em textos recentes no Brasil tem sido transliterado pela forma Dao) da nobreza, da justiça, e da honra, com o qual concordariam pensadores aristotélicos, estóicos, platônicos, orientais e cristãos.
Para Lewis, a educação deve, além de ensinar a respeito dos seus conteúdos, ensinar a respeito do que é objetivamente bom, belo e verdadeiro. Claro que uma educação que se limita apenas à técnica jamais se preocupará com estes princípios. Lewis critica um modelo de educação que trata os educandos como se estes fossem animais amestrados, que aprendem a fazer um truque, mas não sabem a razão pela qual fazem o que foram ensinados a fazer. No que talvez seja o trecho mais conhecido de todo o livro, Lewis afirma:
Mal podemos abrir um periódico sem topar com a afirmação de que nossa civilização precisa de mais ímpeto, ou dinamismo, ou auto-sacrifício, ou criatividade. Numa espécie de mórbida ingenuidade extirpamos o órgão e exigimos sua função. Produzimos homens sem peito e esperamos deles virtude e iniciativa. Caçoamos da honra e nos chocamos ao encontrar traidores entre nós. Castramos e ordenamos que os castrados sejam férteis.
Como conseguir uma educação que leve em conta princípios e valores morais objetivos abrindo mão da filosofia? Impossível. A educação não pode de modo algum ter como alvo apenas princípios de natureza econômica, tal como afirmado pelo atual Presidente do Brasil. Filosofia, que é scientia scientiarum (“ciência das ciências”), especialmente por meio da ética, ensina a pensar. Veterinária, engenharia e medicina, citadas por Bolsonaro em sua mensagem como sendo supostamente mais necessárias à sociedade que a sociologia e a filosofia, ou qualquer outra das ciências da saúde, da terra ou das exatas, jamais podem abrir mão da sociologia, que mostra como uma sociedade se organiza, e mais ainda da filosofia, que ensina a pensar. Mais ainda, como Lewis defende, uma base sólida em filosofia ensinará a respeito de valores e princípios. Lewis denuncia a contradição e a incoerência do atual governo brasileiro: eleito com uma proposta de não se envolver em corrupção, mas que deseja que a educação seja apenas técnica.
Lewis escreveu A abolição do homem em 1943. 75 anos depois de publicado, o livro continua com uma atualidade impressionante. Ainda mais no Brasil contemporâneo, em que mais que em outras épocas, a educação é vista como mercadoria, e é tida pelo governo apenas como potencial fonte de lucro.
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O que C. S. Lewis diria da proposta de redução de investimentos em Filosofia e Sociologia no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU