12 Abril 2019
“Um papa que não entende mais o Concílio, do qual foi um pai, só pode fazer uma coisa: despedir-se. E deixar a palavra para um filho do Concílio. Ser bem-sucedido nesse ato de serviço e de humildade resgata nele toda possível falta, anterior ou sucessiva.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 11-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Deve-se atribuir um valor considerável a este texto de J. Ratzinger, que intervém – a partir do silêncio interrompido do seu retiro – sobre o tema dos abusos. Tema que, com a sua atualidade, solicitou expressamente o bispo emérito de Roma a tomar a palavra.
Eu dizia “texto considerável” porque permite apreciar, de uma forma totalmente convincente, uma grande continuidade entre o pensamento do atual “emérito”, o do Papa Bento XVI, mas também o do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
De fato, a continuidade poderia ser estendida até o arcebispo de Munique: mais de 40 anos aparecem marcados por uma leitura traumatizada e traumática da virada conciliar e do 1968, como causa de todos os males da Igreja, incluindo os abusos.
Já em outros lugares, e não muito tempo atrás, eu havia chamado a atenção para a leitura “apocalíptica” com que J. Ratzinger havia apresentado, na sua autobiografia, no início dos anos 1980, a história conciliar como uma verdadeira “tragédia” para a Igreja. Mas, nesse juízo, falava nele, já à época, mais um preconceito do que um juízo. Ele confundia, com muita facilidade, o efeito com a causa e a causa com o efeito. Como naquela época, ainda hoje, a mudança teológica e pastoral que começa com o Concílio não é lida como a “resposta a uma crise”, mas como “a causa da crise”. Idealiza-se o pré-Concílio e, assim, comete-se violência contra o Concílio.
Se a reforma da liturgia, dos seminários, da teologia moral é interpretada desse modo unilateral e visceral, é inevitável, hoje ainda mais do que há 40 anos, que o diagnóstico se incline à “nostalgia de um tempo bom que não volta mais”. Esse não é um raciocínio teológico, mas sim um apego do sentimento, uma nostalgia do coração.
Alguns flashes do texto iluminam perfeitamente esse horizonte, de modo bastante unilateral:
- lamenta-se que, nos anos 1980, os textos de Ratzinger foram “censurados” em alguns seminários. Mas não se lembra que, 50 anos antes, eram os textos de Agostinho ou Ambrósio que sofriam o mesmo destino;
- retrata-se a história da teologia moral pós-conciliar como se apenas Veritatis splendor resistisse à deriva, sem dizer nada sobre a unilateralidade com que esse texto teve que esperar a Amoris Laetitia para ser finalmente redimensionado na sua pretensão fundamentalista no campo moral;
- recorda-se a demanda de “limites máximos de penas mais altos” contra os culpados de pedofilia, debitando ao “garantismo conciliar” quase a proteção dos pedófilos. Mas não se leva em conta que as reformas do direito penal não são feitas elevando os limites máximos, mas sim os limites mínimos da pena.
- volta-se o olhar para o abuso, como se fosse uma luta entre a proteção do acusado e a proteção da fé. Mas não entra no olhar do texto aquele sujeito decisivo que é a vítima do abuso e que exige da Igreja uma leitura não autorreferencial da questão.
São diversas as passagens do texto em que a reconstrução histórica dos 30 anos pós-conciliares se torna uma caricatura, subjetivamente significativa, mas objetivamente insustentável. O texto apocalíptico conclusivo retoma uma imagem que já tínhamos escutado, na noite da comemoração do 50º aniversário do Discurso da Lua do Papa João XXIII.
Naquela ocasião, em 11 de outubro de 2012, a “festa do Concílio” havia se transformado em um desafogo quase desesperado e havia congelado a praça embaixo. E, no lugar do Concílio, apareceu a barca da Igreja obstaculizada pelos ventos contrários, os peixes ruins na rede, o joio que cresce no campo...
Nada mudou hoje desde aquela noite. Um papa que não entende mais o Concílio, do qual foi um pai, só pode fazer uma coisa: despedir-se. E deixar a palavra para um filho do Concílio. Ser bem-sucedido nesse ato de serviço e de humildade resgata nele toda possível falta, anterior ou sucessiva.
Por isso, J. Ratzinger também pode concluir essa palavra de desespero, agradecendo ao seu sucessor, que reacendeu a esperança. O texto que ele nos entregou nessa ocasião, por um lado, torna ainda maior o gesto profético de seis anos atrás, mas, por outro, nos faz entender até o fim em que meandros do ressentimento e da nostalgia poderíamos ter caído se ele não nunca o tivesse feito.
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O trauma e a nostalgia: continuidade entre prefeito, papa e emérito. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU