01 Junho 2023
Esqueça a propaganda ocidental. Os sinais mostram que as forças de Kiev estão se esgotando – e por isso a anunciada “contraofensiva” tarda tanto. OTAN tenta reverter o quadro com armamento pesado. A China não quer ser a próxima vítima.
O artigo é de Rafael Poch, jornalista espanhol, autor de livros sobre o fim da URSS, Rússia de Putin e China, publicado por CTXT e republicado por Outras Palavras, 30-05-2023. A tradução é de Rôney Rodrigues.
O exército russo, ou melhor, o grupo Wagner associado a ele, completou a conquista de Bakhmut esta semana. Até 2016, aquela cidade arruinada do Donbass se chamava Artiomovsk, em homenagem ao líder bolchevique Fyodor Sergeyev (cujo nome de guerra era Artyom). Sergeyev inspirou a República de Donetsk durante a guerra civil e lutou em 1918 contra intervencionistas estrangeiros, russos brancos e nacionalistas ucranianos. Quando a população do Donbass proclamou a República Popular de Donetsk em 2014, como reação à mudança de regime patrocinada pelos Estados Unidos e pela União Europeia no calor da revolta popular em Kiev, a nova república declarou-se sucessora daquela primeira república de 1918. Assim, em 2016, o presidente ucraniano Petro Poroshenko mudou o nome da cidade como parte da campanha para remover nomes, monumentos e símbolos soviéticos e substituí-los pela narrativa nacionalista do novo regime.
Na guerra em curso, a cidade foi declarada uma “fortaleza inexpugnável” pelo governo de Kiev, que construiu ali uma de suas três linhas fortificadas de defesa. A imprensa ocidental e ucraniana comentou há alguns meses sobre a “importância estratégica” de Bakhmut/Artiomovsk. Agora que foi tomada pelos russos, em uma refrega militar iniciada em fevereiro passado, a mesma mídia e pessoas se referem à cidade como “estrategicamente irrelevante”. Com Bakhmut aconteceu o mesmo que com o jornalista Seymour Hersh, “jornalista brilhante e premiado” e “vencedor do Pulitzer” até revelar em detalhes como os Estados Unidos explodiram os gasodutos NordStream por ordem do presidente Biden; então Hersh tornou-se um “jornalista polêmico”. Agora, a conquista russa de Bakhmut mal foi noticiada por aqui.
A tomada de Bakhmut, onde a Ucrânia destacou unidades de elite que planejava usar em sua anunciada “contraofensiva”, é um indicador de que a Ucrânia está perdendo a guerra e registrando muito mais baixas em combate do que o exército russo, de acordo com as análises mais confiáveis.
Analistas russos levam muito a sério a anunciada – e não se sabe muito se já iniciada – “contraofensiva” ucraniana. Eles sabem que as coisas podem dar errado, mas os números não batem. Ao contrário do ano passado, a Rússia tem agora superioridade numérica em tropas e artilharia, a arma que decide uma campanha que seria mais parecida com as da Primeira Guerra Mundial do que com as da Segunda, não fosse o fato de Moscou praticar uma clara economia de vidas humanas em suas fileiras. Claro, não é isso que a propaganda de guerra ocidental e seu grupos midiáticos de propaganda, com sua imagem da guerra como um moedor de carne russo, nos explicam. Não nos enganemos, muito menos celebremos: quem mais mata agora nesta dramática carnificina são os ucranianos. E a disponibilidade de novos soldados é muito menor do que a russa.
A atual Ucrânia, com seu êxodo de oito milhões de cidadãos para o exterior, mais de três milhões deles para a Rússia (outro dado revelador que é escondido), deve ter uns 25 ou 30 milhões de habitantes, contra os 145 milhões da Rússia. A Ucrânia está recrutando desesperadamente nas ruas cidadãos que não querem ir para as frentes de batalha. Em Kharkiv, há meses, homens em idade militar evitam se refugiar no metrô quando há alarmes, como fizeram no ano passado, por medo de tomarem um enquadro que os leve a morrer na linha de frente em 48 horas. Muitos evitam sair de casa pelo mesmo motivo. Centenas de milhares de jovens russos fugiram do país para não serem convocados, e o mesmo se aplica à Ucrânia, onde em dezembro o serviço de fronteira relatou 12 mil pessoas detidas tentando cruzar a fronteira para a Romênia, de forma ilegal. De acordo com relatórios de organizações antimilitaristas alemãs, existem mais de 175 mil desertores e opositores conhecidos na Ucrânia. E isso num país onde a isenção militar se compra com alguns milhares de dólares convenientemente entregues à pessoa certa.
É uma visão bastante difundida, tanto na Rússia quanto no Ocidente — difundida, mas pouco divulgada — que os tanques e aviões fornecidos pela Otan ou outros apetrechos mudarão essa correlação de forças. Estamos perante uma guerra de desgaste para a qual a Rússia, apesar da manifesta desproporção de forças diante da Otan, parece bem equipada do ponto de vista industrial. Possui um bom sistema de defesa antiaérea e um bom sistema de mísseis que, ao que tudo indica, já derrubou alguma das caríssimas baterias estadunidenses Patriot, como sugere, e, para além das respectivas propagandas, há o fato de a cotação de ações da empresa que fabrica essas armas terem caído mês em reação às notícias sobre sua ineficácia, o que terá consequências dramáticas para a venda e exportação dessas armas vendidas como “infalíveis”.
Tudo isso não quer dizer que as coisas estejam indo bem para a Rússia. Novas armas ocidentais, mísseis britânicos, tanques alemães e, mais de longe, aviões americanos estão alimentando a escalada bélica e certamente tornarão possíveis ataques mais concentrados contra a Crimeia. Por outro lado, as incessantes bravatas e acusações do chefe do grupo Wagner, Evgeni Prigozhin, contra o exército russo, insultando seus generais e o próprio ministro da Defesa e jogando na cara que ele não fornece munições, retratam muito bem o convulsões internas da Rússia.
Além do estritamente militar, a Rússia perdeu a maior parte do capital russófilo que tinha na Ucrânia antes da invasão. O nacionalismo étnico ucraniano, anteriormente dominante apenas na Galiza e nas regiões ocidentais do país, avançou muitas posições em todo o território ucraniano. Fora da Crimeia e do Donbass, o ressentimento dos ucranianos que falam russo em relação à Rússia cresceu irreversivelmente. Essa é a única vitória alcançada pelo nacionalismo ucraniano nesta guerra, e os russos a serviram de bandeja.
A pressão ocidental, política e midiática, apoiando os setores mais delirantes da Ucrânia que sonham com uma “vitória total”, com a reconquista de tudo o que os russos anexaram, incluindo a Crimeia, é extremamente perigosa. Tal reconquista ainda parece impossível sem a intervenção militar direta dos soldados da Otan no conflito, e nesse caso a hipótese nuclear russa teria grande probabilidade.
Quanto à sociedade russa, ainda não está em pé de guerra. O conflito não é perceptível em Moscou e São Petersburgo, para além da dura repressão contra uma oposição marginal nos raros casos em que se manifesta. Neste contexto, mais envolvimento militar do Ocidente, bem como ações e ataques ucranianos contra o território russo, como o ataque militar de “voluntários russos de extrema direita” na região fronteiriça russa de Belgorod, apenas cimentará o apoio a uma sociedade em geral muito pouco apaixonado pela guerra.
Os ataques ucranianos na Rússia contra figuras civis que apoiam a guerra já são abertamente reconhecidos por seus perpetradores. “O que eles chamam de terrorismo, nós chamamos de libertação”, disse Kiril Budanov, o jovem general responsável por esses ataques no Ministério da Defesa ucraniano. “Isso não começou porque eu enlouqueci e comecei a matar pessoas em Moscou, mas porque eles invadiram nosso país desde 2014. Não vou me estender sobre isso, mas vamos matar russos e continuaremos matando russos em qualquer lugar do mundo, até a vitória completa da Ucrânia”. Dezenas de “colaboradores” em regiões ocupadas pela Rússia foram mortos: o escritor Zakhar Prilepin, em 6 de maio em Nizhny Novgorod, que sobreviveu a um ataque com carro-bomba que matou seu guarda-costas e motorista; o blogueiro ultradireitista Vladlen Tatarski, morto por uma bomba em 2 de abril em um café de São Petersburgo durante uma palestra na qual dezenas de participantes ficaram feridos; e a jovem jornalista Daria Dúgina, filha de um filósofo de direita em agosto passado, por uma bomba colocada em seu carro. “Esses casos aconteceram e vão continuar, essas pessoas vão receber um merecido castigo que só pode ser a sua eliminação, uma promessa que eu vou cumprir”, proclama Budanov, um russo de 37 anos de Odessa.
No ano passado, a posição declarada dos Estados Unidos era dissuadir os ucranianos de ataques em território russo, enquanto os ucranianos não reconhecerem a responsabilidade por suas ações. Este ano, as coisas mudaram, Budanov já disse claramente e até o tímido ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, descreve as operações ucranianas em solo russo como “completamente normais”.
“Sabemos muito bem que as decisões sobre esses ataques terroristas não são tomadas em Kiev, mas em Washington”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Estes acontecimentos, bem como as várias sabotagens contra linhas ferroviárias e outras cometidas na Rússia, vão virar-se contra a Ucrânia e o Ocidente, porque vão fortalecer o consenso social interno da Rússia para uma guerra que hoje continua sem entusiasmo e, eventualmente, para a plena mobilização, com grande adesão de russos, caso a Otan intervenha diretamente. Ao mesmo tempo, esses ataques são um anúncio do que espera a Rússia nas regiões ucranianas que ocupa, no caso de uma “vitória” militar com o congelamento do conflito.
No plano internacional, a última cúpula do G7 em Hiroshima insistiu na escalada: capitulação e retirada incondicional e total das forças armadas russas, além de “apoio inabalável à Ucrânia pelo tempo que for necessário para alcançar uma paz justa” e luz verde para o entrega de aviões de guerra modernos, enquanto do outro lado se adquire uma posição dura contra a China. A resposta tem sido uma maior cooperação industrial e militar entre Moscou e Pequim, com uma visita a Pequim esta semana do primeiro-ministro russo Mikhail Mishutin, acompanhado por um terço de seus ministros, e uma visita a Moscou do oficial de Chen Wenqing, responsável pela área de segurança do Politburo do partido chinês (ou seja, o número um em segurança, muito mais que um ministro).
Os chineses estão bem cientes de que Washington quer “reproduzir a crise ucraniana na região da Ásia-Pacífico”, diz o jornal chinês Global Times. O objetivo é uma guerra por procuração contra a China e a formação de uma Otan asiática, diz ele. Os chineses estão se preparando contra a extensão da guerra que os Estados Unidos claramente defendem e pediram aos russos que transferissem seus sistemas de defesa aérea mais modernos, incluindo os modelos S-400 e S-500 recém-fabricados e aprimorados. Obviamente, a Rússia receberá em troca apoio industrial/militar da China, que será muito mais intenso caso a Otan se envolva militarmente contra ambos.
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A guerra da Ucrânia após a queda de Bakhmut - Instituto Humanitas Unisinos - IHU