07 Março 2023
No mês passado, o regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo, o casal que governa a Nicarágua, enviou 222 oposicionistas do regime para os Estados Unidos, banindo-os e privando-os de sua nacionalidade e bens. Também privaram de sua nacionalidade 94 ativistas, feministas, militantes de direitos humanos, defensores socioambientais, escritores/as como Gioconda Belli e Sergio Ramírez. Espanha, Argentina, Chile, Colômbia e México ofereceram cidadania aos exilados, colocando em prática a solidariedade internacional. Dora María Téllez, mítica líder da revolução sandinista e uma das exiladas, conversa com Las12 sobre este cruel momento político.
A entrevista é de Claudia Korol, publicada por Página/12, 03-03-2023. A tradução é do Cepat.
Em 21 de fevereiro de 1934, Augusto César Sandino, o general de Homens Livres, que liderou a luta antiimperialista contra a intervenção dos Estados Unidos, foi assassinado na Nicarágua por ordem de Anastasio Somoza. De lá para cá, as lutas patrióticas e antiimperialistas por justiça social, liberdade, terra e dignidade constituem o ideário das revoluções latino-americanas. A vitoriosa Revolução Sandinista de 1979, que suscitou apoios em diversos cantos do continente, hoje se converteu em um regime autoritário que acaba de exilar muitas das figuras emblemáticas da luta e da cultura desse país. Uma delas é a escritora feminista Gioconda Belli.
“Viva ou morta, voltarei para a Nicarágua, porque é a minha terra”, afirmou a poetisa. Com raiva contida, rasgou o passaporte na frente das câmaras da televisão pública da Espanha, e recorreu à poesia para gritar pelo amor que lhe foi negado. “O crepúsculo cai sobre o perfil pontiagudo / do vulcão ao longe / as nuvens, espalhando tinta vermelha e roxa pelo céu. / O falar desbocado, rápido e brincalhão do meu povo. / E tudo o que em ti amaldiçoo e desdigo se me desfaz / E irrompe em mim o amor / Como se cavalos corressem em meu peito / e te contemplo atravessado por corticeiras e cortesias / por medronheiros e palmeiras / e te amo, pátria dos meus sonhos e das minhas dores / e levo-te comigo para lavar secretamente as tuas manchas / sussurrar-te esperanças / e prometer-te curas e encantos que te salvem”.
Dói ver a Nicarágua despovoada de centenas de líderes e poetas, expulsos a patadas. Entre as ativistas atingidas estão defensoras e defensores dos direitos humanos como Vilma Nuñez, diretora do CENIDH (Centro Nicaraguense de Direitos Humanos), que aos 80 anos se recusa a ser expulsa, Gonzalo Carrión, Pablo Cuevas, feministas como Sofía Montenegro, Azahalea Solís, Ana Quirós, Elvira Cuadras e Tamara Dávila.
Algumas das pessoas exiladas e que perderam a nacionalidade foram quadros guerrilheiros na luta revolucionária. É o caso de Dora María Téllez, lendária comandante da luta sandinista, conhecida como Comandante 2 no assalto ao Palácio Nacional – que permitiu a libertação de Tomás Borge e de outras lideranças sandinistas. O general Hugo Torres – que esteve em 1974 na tomada da casa de Chema Castillo, ação pela qual Daniel Ortega foi libertado – também participou dessa ação.
Hugo Torres morreu há um ano no cárcere, devido à negligência médica na prisão de El Chipote. Companheiros na luta revolucionária contra a dinastia dos Somoza, receberam como resposta a prisão e inclusive a morte. Dora María esteve em 1979 à frente das forças sandinistas que derrotaram o exército somocista na libertação de León, na ofensiva final. Depois da vitória, foi ministra da Saúde, vice-presidente do Conselho de Estado e deputada. Em 1995, afastou-se da Frente Sandinista e fundou o Movimento Renovador Sandinista (MRS), partido com posições socialdemocratas. Em junho de 2021, foi encarcerada na prisão de El Chipote, em Manágua, acusada por Ortega de "traição à pátria" e "conspiração". Permaneceu um ano e meio no isolamento e na escuridão, mas não conseguiram quebrá-la.
Pode-se discutir suas posições no caminho político para a Nicarágua, ou seu olhar sobre outras revoluções no continente. (Da mesma forma, pode-se discutir se o projeto político autoritário encarnado por Daniel Ortega tem algo a ver com aquela Nicarágua rubro-negra pela qual nos apaixonamos em 1979.) Mas não se pode apagar da memória coletiva que Dora María é uma heroína da Revolução Sandinista, e que na Revolução convergiram diversos pensamentos, muitos dos quais agora se quer negar pela repressão. Las12 conversou com Dora María Téllez nestes dias sobre sua vida na prisão e suas perspectivas atuais.
É um momento muito difícil. Por um lado, estou feliz porque estou livre, mas por outro lado, estamos exilados, sem possibilidade de voltar legalmente, sem passaporte. Tenho que discernir em que país vou morar. Quero estar em um lugar perto da Nicarágua, onde também possa trabalhar, porque preciso me sustentar e tenho que gerar renda como os 222 que viemos naquele avião. Estou tramitando minha autorização de trabalho nos Estados Unidos e ainda preciso resolver alguns problemas de saúde.
Também solicitei a nacionalidade espanhola, já que o governo espanhol quase imediatamente a ofereceu em conjunto para aqueles de nós que quiséssemos adquiri-la. Aguardo essa resposta, a autorização para o trabalho e o visto humanitário que nos Estados Unidos é de dois anos. Este momento é como uma encruzilhada avaliando as opções do país e das condições de trabalho. Esta é a minha situação.
Como vê a oferta de nacionalidade de vários países e as reações dos povos do continente?
A opinião pública internacional, o movimento popular, social, em geral, os povos da América Latina e do continente têm sido extraordinariamente solidários. Encontrei-me com pessoas de igrejas que nunca tinham me visto, que não conheciam nenhum de nós, e rezavam por nós. Encontrei muitas pessoas que reivindicavam nossa liberdade, em diferentes fóruns internacionais: governos, movimentos sociais, movimentos feministas, organizações de direitos humanos. O movimento de solidariedade que nos acolheu é realmente imenso. Estou impactada e profundamente agradecida por essa solidariedade e sinto que o isolamento de Ortega-Murillo é maior a cada dia.
E o que sente em relação ao castigo do exílio?
Estar fora da Nicarágua na condição de exilada é muito mais que a perda da nacionalidade no sentido formal, é mais que perder um passaporte. É uma ação que me impede de voltar à Nicarágua. Esse é o objetivo de Ortega-Murillo: impedir que voltemos como nicaraguenses com plenos direitos. É um rompimento, porque se trata de arrancar de cada exilado sua pátria, suas raízes culturais, seu vínculo umbilical com a Nicarágua.
Os Ortega-Murillo fazem isso porque, como não podem mais nos punir com a prisão, escolhem outro método: "Vou arrancá-la do seu país". Mas eles não podem fazer isso, porque cada exilado tem seu país em seu coração, em seu sangue, em seu corpo. Eles só podem tirar nosso passaporte. Eles podem emitir um decreto absolutamente ilegal de perda de nacionalidade, de confisco da nacionalidade. São momentos difíceis. Ser arrancado das suas raízes é uma circunstância muito difícil. Eu sinto assim.
Na prisão, você tinha muito tempo para pensar sobre o que viveu. Como analisa o que aconteceu com a Revolução Sandinista?
Sinto que minha geração conseguiu derrubar a ditadura dos Somoza e abrir caminho para uma transição democrática na Nicarágua. Mas é uma transição muito complexa. Eu refleti muito. Fizemos uma reforma constitucional em 1995 para democratizar as instituições. O que deu errado? As letras nem sempre falham. Há uma falha estrutural que tem a ver com o fato de que uma parte da sociedade nicaraguense quer e tem desejado um homem forte, uma ditadura mesmo, mas "sua" ditadura. Não há neste segmento da sociedade uma profunda convicção democrática. Vejo na Frente Sandinista uma organização que não tem compromisso democrático. É uma pena.
Por que, então, o debate sobre a democracia ou a ditadura não estaria na mesa como está agora? A Frente Sandinista tornou-se a espinha dorsal de uma ditadura de cunho familiar. A gente pensa e repensa: como esses fenômenos são construídos? Quais são os principais problemas? Qual é o papel que alguém como eu tem que desempenhar ou desempenhou ou deve continuar a desempenhar? São muitas as perguntas que numa prisão são respondidas em desordem, porque não se pode sistematizar numa condição como a que me encontrei, tentando sobreviver às pressões particulares da prisão, do entorno, da escuridão, de tudo. Estar em total isolamento. Portanto, esses são fragmentos sobre os quais se reflete.
Sinto-me mais leve agora do que quando fui para a prisão. Esse tempo me permitiu fazer um processo de reflexão profunda sobre a minha vida, as minhas relações familiares, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão, os meus laços com Matagalpa, sobre as minhas opções educativas. Alguém coloca toda a sua vida na mesa e você debate consigo mesma, analisando e às vezes resolvendo questões críticas. Então me sinto mais leve agora do que quando fui para a prisão. Isso é uma vitória para mim. A um custo muito alto, certamente, mas também não tinha outra escolha. A outra coisa seria que a prisão conseguisse me quebrar emocional, psicológica e fisicamente. Eles não conseguiram.
Como se conseguiu manter inteira em total isolamento?
Eu sou disciplinada. Eu sei que sempre tenho que cumprir meu objetivo, meu programa, o horário que eu estabeleci para mim. No momento em que você para de fazer isso, você começa a se abandonar, a ficar deprimida, a ficar doente. No final das contas, a luta naquela prisão era entre o poder dos Ortega-Murillo tentando destruir cada um de nós, tentando nos destruir física, psicológica e emocionalmente. A minha resistência era manter-me física, emocional e mentalmente bem naquela cela... Era dizer: "Tenho que resistir a essa pressão, a esse modelo de isolamento, e sair o mais íntegra possível".
Quebrar-nos teria sido o ganho dos Ortega-Murillo. Mas eles não conseguiram que nenhum dos prisioneiros pedisse misericórdia. Ninguém. Absolutamente ninguém, e essa é a derrota que eles realmente tiveram.
O governo de Ortega-Murillo tornou-se um regime profundamente misógino e patriarcal.
É um caudilho que governa como dono e com poder total, acompanhado por Rosario Murillo que cultiva essa imagem, porque ela deriva seu poder desse modelo autoritário, que não reconhece a lei, limites, não tem escrúpulos, não cumpre nenhuma regra. É um poder completamente arbitrário e discricionário que é usado para manter a população sob controle e silenciosa. Mais de meio milhão de nicaraguenses foram para o exílio.
Eles são um casal de poder, com um ódio particular ao movimento de mulheres, às feministas, o que se refletiu no fato de quatro das mulheres que estivemos presas estarem em situação de isolamento total, cada uma em uma cela. É um ódio misógino que tanto Daniel Ortega como Rosario Murillo têm. As condições em que estive presa dependiam diretamente da decisão deles. Eles têm esse ódio ao movimento de mulheres e ao movimento feminista, e o manifestaram com julgamentos contra líderes feministas, com a destruição de organizações, a invasão da sede do movimento autônomo de mulheres, com a perseguição de todas as mulheres que têm liderança, que são jornalistas.
Sua figura de jovem guerrilheira tem sido icônica. Como você vê isso à distância?
Bem, vou colocar da seguinte maneira: se Daniel Ortega, o velho tirânico de hoje, se encontrasse com o Daniel Ortega de ontem, provavelmente não conseguiriam ter uma conversa. Porque aquele jovem Daniel Ortega estava lutando contra uma ditadura. Este é um ditador. Eu sinto que posso ter uma conversa com a jovem que eu fui, que lutou contra uma ditadura e agora luta contra uma outra ditadura. Sinto-me orgulhosa por não ter falhado com a jovem que fui. Por não ter falhado com seu idealismo, sua postura perante a vida, perante a ditadura de Somoza.
Eu posso estabelecer, sem me sentir envergonhada e constrangida, uma conversa com aquela jovem. Porque ela lutou contra uma ditadura antes e agora luta contra uma outra ditadura. Isso é muito importante para mim. Sentir-me coerente comigo mesma. Sentir que não me traí. Sentir que tenho estado disposta, em meio a grandes dificuldades, a pagar os custos que implica ter um cargo político para que a Nicarágua estivesse em melhores condições. Eu me sinto confortável com isso. Sinto-me totalmente orgulhosa de não ter falhado comigo mesma, parece-me que as pessoas que dão voltas tão grandes que deixam de se reconhecer a si mesmas são uma das coisas mais terríveis.
Como vê o futuro para as e os jovens, para as mulheres e os povos?
Acredito que os jovens têm uma grande oportunidade. É um momento muito particular na história da humanidade. Temos uma capacidade enorme de nos comunicar de um lado ao outro, de um extremo ao outro do mundo simultaneamente. Temos uma capacidade enorme de nos informar, de ouvir outras pessoas em todas as partes do mundo, de conhecer os problemas que as mulheres têm. Acredito que as mulheres têm que ampliar seus espaços, temos espaços que não conquistamos e temos que conquistar, enfrentando a discriminação e a violência.
Você quer retornar para a Nicarágua?
Sim, pretendo voltar para a Nicarágua em algum momento. Devemos abrir caminho para a transição democrática na Nicarágua e isso implica o retorno daqueles que foram exilados. É uma realidade que a família Ortega-Murillo não poderá deter. Não sei quando será, não sei em que dia, em que mês, em que ano, mas sim, temos que voltar à Nicarágua para continuar a promover a luta para melhorar as condições do país.
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A Nicarágua quer apagar sua própria história. Entrevista com Dora María Téllez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU