29 Mai 2018
Gioconda Belli foi a poetisa erótica da revolução sandinista. Escritora, filha de uma família burguesa, autora de La mujer habitada e El país bajo mi piel, é uma das intelectuais mais importantes de seu país, ao lado de Sergio Ramírez. Assim como ela, um a um, os sandinistas foram abandonando o casal presidencial Daniel Ortega e esposa que lhes confiscou o sonho revolucionário. Após acompanhar Ramírez para receber o prêmio Cervantes na Espanha, Belli concedeu esta entrevista.
A entrevista é de María Laura Avignolo, publicada por Clarín-Revista Ñ, 25-05-2018. A tradução é do Cepat.
Estão diante de uma revolução sandinista confiscada pelo casal Ortega?
Sim. Chamou-me muito a atenção ouvir nas manifestações “Pátria livre ou morrer”. Há um sentimento sandinista nas pessoas. Há muitos sandinistas que são contra Daniel e Rosario porque, assim como eu que sou sandinista, sentimos que isto não é sandinismo. Roubaram-nos uma conquista, que foi tirar Somoza após 45 anos de ditadura, para nos colocar outra ditadura. Há uma sensação de traição, fúria e frustração que está se manifestando de uma maneira bastante sub-reptícia. Daniel e Rosario Ortega e esse sentimento orteguista acreditavam que tinham a faca e o queijo na mão, e aqueles que estavam contra eles eram apenas um grupinho. Eles não viram chegar isto porque durante as eleições houve uma abstenção enorme, que já era sintomática. Isto demonstra que as pessoas estavam atemorizadas. Mas, em determinado momento, a ofensa e a agressão foi tal que perderam o medo.
Por que Daniel e Rosario Ortega traíram o espírito revolucionário?
Acredito que eles têm uma visão bastante arcaica e errante da política. Quando se perderam as eleições nos anos de 1990, Daniel Ortega quis ficar sozinho com o comando da Frente Sandinista. Foi eliminando pessoas, acusando-as de direitistas, burgueses ou imperialistas. Ele foi ficando com uma parte da Frente Sandinista e na qual mandava absolutamente. Quando chega ao poder, começa a mandar de forma absoluta. Acredita que é a única maneira na qual pode garantir que haja um progresso na Nicarágua. Isto é o que acontece com muitos ditadores, quando acreditam que só eles têm a verdade e que apenas eles são os que podem fazer o melhor para a nação. Também é assim que começam a ingressar os interesses econômicos e já eles são um poder econômico. A família Ortega é um poder econômico.
Como os outros sandinistas, seus pares, intelectuais como você, estão reagindo?
Realmente, na Nicarágua, foi muito interessante ver como a velha guarda sandinista se opôs por completo. Do sandinismo orteguista já não resta ninguém. O partido se acabou porque o poder de Rosario e Daniel é tão absoluto que já não existe sequer discussões partidárias. Aqui, o que existe é uma “ordeno e mando”. Na Nicarágua, nós, intelectuais, fomos muito críticos durante muito tempo deste desdobramento. Ramírez, Ernesto Cardenal e eu saímos do congresso da Frente Sandinista de 1994, quando Daniel Ortega estava atropelando tudo, e não pensava em um partido mais moderno e mais de acordo com as necessidades do país. Daí vem esta divisão.
Acredita que Ortega pode cair?
Gostaria de acreditar nisso. Custa-me um pouco porque possuem um enorme nível de controle, especialmente sobre as Forças Armadas. O exército e a polícia se profissionalizaram. Contudo, ele se empenhou em recuar todos os códigos militares e conseguiu que só respondam a ele. A repressão poderá ser maior. No entanto, as pessoas estão muito determinadas em continuar nas ruas. Supõe-se que irá haver diálogo, amparado pela Igreja Católica. Não acredito que esse diálogo tenha alguma importância. Acredito que é uma manobra para deter a fúria das pessoas e a insurreição popular na Nicarágua. Já estão buscando desvirtuar o movimento estudantil.
Ao mesmo tempo, existe a conjunção que derrubou Somoza. Existem os estudantes, os empresários, os autônomos, os camponeses. Todos unidos contra os Ortega. Eu acredito que é uma oportunidade importante. Já vimos na Venezuela como trataram de sufocar as rebeliões e levantes populares com os diálogos que não chegam a parte alguma. Acredito que com Daniel e Rosario Ortega não há capacidade de diálogo. Eles têm o desejo de que tudo volte ao status quo anterior e as pessoas sabem disso. A maioria das pessoas sabem que isto não se resolve com um diálogo. O povo da Nicarágua está desarmado e não queremos mais uma guerra. Não queremos mais violência, tampouco uma ditadura.
Os bairros e cidades rebeladas são as mesmas que se rebelaram contra Somoza: León, Manágua, Estelí, Matagalpa. Irá se repetir o mesmo fenômeno político e social que derrubou Somoza?
Claro que sim, é possível ocorrer. É impressionante porque eu sinto que está voltando a acontecer a revolução. É produzida de outra maneira, de uma forma cívica e física, mas está voltando a ocorrer. Trinta e nove mortos em uma semana é muita gente morta. Em sua maioria são garotos jovens e estudantes. Muitos perderam seus olhos porque receberam essas balas de borracha. Temos que pensar positivamente. Eu tenho confiança em que o povo pare fortemente e não permita que todo este esforço se perca. Espero que reste no coração de Daniel e Rosario Ortega algo da revolução, porque não podem continuar governando quando ninguém mais os quer.
Como acreditam que vão se reencaminhar para a democracia? O que a Nicarágua espera da América Latina, que está bastante silenciosa diante da crise que estão sofrendo?
Necessitamos que as pessoas percebam o que está acontecendo, que os organismos internacionais nos apoiem. Mas, isto dependerá de nós, de nossa atuação e de nosso fazer. O que irá acontecer? Acredito que se Daniel e Rosario saírem, teremos que ter um governo de transição, enquanto a vida política se reorganiza. É possível organizar uma eleição livre e supervisionada, como não tivemos nos últimos onze anos.
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Nicarágua. “Não queremos violência, nem ditadura”. Entrevista com Gioconda Belli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU